Carta à minha mãe, que não me protegeu do abuso

US. Department of Defence/Domínio Público

O jornal britânico The Guardian, publicou o comovente relato de uma professora, mãe de três filhas, que escreve à própria mãe lembrando do momento em que a contou que havia sido abusada por um membro da família e foi recebida com incredulidade. A autora, cuja identidade não foi revelada, expõe o amor que sente pela mãe, apesar de todo o ressentimento, e como o fato influenciou o restante de sua vida. Na internet, as reações são as mais diversas, mas a mulher tem recebido apoio de todas as partes do mundo, a maior parte deles emocionado, por identificação.

Nossos primeiros cinco anos juntos foram ótimos. Eu era sua segunda filha, você me amava e eu te amava, eu não tenho dúvidas sobre isso. Minhas memórias são nebulosas, mas elas são memórias felizes e eu também sei que estava feliz.

Então aconteceu, algo que eu não conseguia entender, algo que eu não conseguia explicar, algo que eu sabia que não era certo. Mesmo agora, adulta – casada, com três filhas, professora – ainda me esforço para encontrar as palavras certas.

Com cinco anos, meu próprio avô me roubou a inocência, minha confiança nas pessoas e no mundo, e meu amor pelo desconhecido. Como qualquer criança em uma família amorosa faria, eu contei a você em confiança. Lembro claramente, como se fosse a hora do banho; me sentindo suja, confusa e culpada. Chorei e acreditei que você iria me salvar. Eu queria que você me fizesse sentir melhor.

Mas não. Você saiu e não voltou.

Por quê?

Vocês dois são covardes. Sou chocada com sua reação. Acho inimaginável, como mãe, que nada foi feito.

Devo ter bloqueado tudo no meu inconsciente. Voltou uma vez, quando minha irmã mais velha disse: “Lembra quando você inventou aquelas coisas sobre o vovô?”

Então, já adolescente, caiu a ficha. Não era certo. Você me decepcionou.

Avança até hoje. Anos de depressão, desesperança e transtornos alimentares têm me atormentado. Há seis anos, descobri que uma prima mais velha tinha sofrido tortura semelhante. Havia alguém lá para ela? Não, o nome da família precisava ser protegido. Imagine a vergonha para a família. Ele teria sido preso. Um idoso não poderia passar os últimos anos por trás das grades.

Por que não? Tenho vergonha de ser parte desta família.

Estou feliz que ele esteja morto. Estou feliz que ele sofreu em seus últimos dias. Mas a punição deveria ter sido maior. Isso não é justiça.

Hoje, você me diz que não visito o bastante. Que não vê suas netas o bastante. Não há amizade entre mãe e filha. Minha casa não é boa o suficiente. Minha carreira não progrediu como você esperava. Não me preocupo o suficiente com minha aparência. Meu estilo de vida não é tão bom quanto o da minha irmã, que aparentemente tem tudo. Você tem qualquer vergonha em expor que não sou boa o bastante para você. Você não me conhece, nem quer me conhecer. Você quer uma versão sua de mim.

Espero que um dia você diga que sente muito, mas, no fundo, sei que esse dia não virá. Eu quero que você explique porque não me protegeu, mas sei que você não tem coragem. Eu quero que você assimile toda a dor que isso continua a me provocar, mas eu não acho que você tem a força.

Em vez disso, eu quero que você saiba o quanto eu te amo. Eu vejo sua crescente vulnerabilidade à medida que vocês envelhecem e os desejo felicidade para o resto de suas vidas. Não vou desejar realização ou contentamento, porque eu não acho que mereça.

Quanto a mim, vou me certificar de escutar o que minhas filhas têm para me dizer. Eu as amo como um todo. Vou protegê-las. Vocês não são meus modelos; Construí meu próprio modelo de maternidade.

Lamento que esta seja a forma como a história termina para você. Um abraço teria sido um bom começo. Um abraço que dissesse que tudo daria certo e que não tinha feito nada de errado. Mas eu não posso mudar o passado.

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