Juiz faz poesia em sentença para decidir sobre estátua de artista brasileiro

Chico Ribeiro/Governo de MS

David de Oliveira Gomes, juiz da 2ª Vara de Direitos Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos de Campo Grande (MS), escolheu um jeito inusitado de preparar a sentença sobre o destino da estátua do poeta Manoel de Barros: uma poesia, inspirada em obra poética de Carlos Drummond de Andrade, o que surpreendeu a muitos. “Eu só tinha feito poesia uma vez na minha vida, há 15 anos, para minha esposa, e depois nunca mais, mas pensei que podia fazer assim”, contou David em entrevista ao G1.

Intitulada E agora, Mané, remetendo ao E agora, José, de Drummond, a poesia surgiu a partir da necessidade do julgamento de uma ação que envolvia o poeta Manoel de Barros. Falecido em 2014, na cidade de Campo Grande, o artista foi homenageado com uma estátua sua, de 400kg, encomendada pelo governo do Mato Grosso do Sul, ao custo de mais de R$ 232 mil. Porém, o Ministério Público estadual (MP-MS) entrou com uma ação visando impedir a fixação do monumento no local, sob justificativa de que a área é tombada como patrimônio histórico e cultural, não podendo sofrer intervenções.

Diante das dificuldades burocráticas, o caso entrou na justiça e precisou ser julgado. “Dei uma olhada no processo e fiquei durante dias pensando em qual seria minha decisão. A questão, quem estava sendo homenageado, o Manoel de Barros, a poesia, isso acabou me remetendo ao trabalho de outro poeta, o Drummond”, afirmou o jurista. A ideia poética pareceu muito diferente e, por um momento, fez com que David hesitasse. ““Quase que eu não mando o texto. É muito diferente e a classe jurídica é muito tradicional. A sentença é um veículo para você empregar o direito. Então não é comum que você use poemas, poesias e versos”, completou.

Leia a sentença em forma de poesia:

E agora, Mané?
A festa nem começou,
as luzes não acenderam,
o povo não chegou,
a homenagem parou,
e agora, Mané?
e agora, você?
você que quer homenageá-lo,
você que quer proteger o patrimônio histórico,
você que faz obras,
você que faz processos,
e agora, você?
A base de concreto está sem estátua,
o Mané sem homenagem,
o sítio arqueológico militar sem respeito,
o homem sem reflexão,
a mulher sem compreensão,
e a noite esfriou,
o dia não veio,
não veio a utopia,
e tudo parou,
e tudo esperou,
e tudo judicializou,
e agora, Mané?
E agora, Mané?
sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
sua simplicidade – e agora?
Com a caneta na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer atirar no mar,
mas o mar secou;
quer ir para casa,
casa não há mais.
Juiz, e agora?
Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você abandonasse…
mas você não desiste,
você enfrenta, juiz!
Sozinho no escuro
qual bicho do mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você decide, juiz!
Juiz, para onde?

A conclusão sentencial determina que o local inicialmente pensado para receber a escultura seja recomposto dentro de 60 dias e que haja um acordo comum entre a Secretaria de Turismo do município (Sectur) e o Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul (Ihgmgs), podendo resultar em multa de R$ 100 mil em caso de descumprimento. O juiz espera que o problema burocrático se resolva o mais rápido possível. “Manoel teve uma vida tão tranquila, tão correta, que acho que o único processo que teve na vida dele é esse, justamente no que seria uma homenagem”, declarou David.

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