Analfabeto, prefeito pernambucano aplicou 37% do orçamento em educação
Antônio Ramos da Silva, de 69 anos, foi prefeito, presidente da câmara municipal e acaba de se reeleger vereador de Quixaba, cidade do sertão pernambucano com 7 mil habitantes. Ele não esconde: é analfabeto. “Quando eu era criança, meu pai precisava dos filhos trabalhando na roça e não me deixou estudar”.
Pela lei, os analfabetos não podem se eleger. Silva pôde tornar-se político por saber copiar palavras e assinar o nome, o que bastou para a Justiça Eleitoral. Ele sempre teve assessores de confiança para ajudar na leitura dos documentos. Para Silva, os analfabetos deveriam ter o direito de ser votados: “Tem muito doutor por aí que não tem nem a metade da minha honestidade”.
Silva se elegeu prefeito em 1992. Até então, a cidade só tinha escolas caindo aos pedaços e professoras sem diploma. Tudo mudou. A educação chegou a receber 37% do orçamento municipal, acima do piso constitucional de 25%. “Fiz tanto pela educação porque sempre senti na pele o quanto ela faz falta”, afirmou.
Voto de analfabetos proibido por um século
Apesar da incompatibilidade ideológica, João Goulart e Castello Branco concordavam em um ponto. Papéis históricos sob a guarda do Arquivo do Senado mostram que tanto o presidente de esquerda derrubado pelos militares quanto o marechal de direita alçado pelo golpe à Presidência tentaram dar aos analfabetos o direito de votar.
Eles não tiveram sucesso. Os iletrados só depositariam o voto na urna em novembro de 1985, na primeira eleição após a ditadura, para escolher prefeitos de capitais, estâncias hidrominerais e cidades em área de segurança nacional. Nestas três décadas, entre as eleições municipais de 1985 e as do mês passado, o total de brasileiros incapazes de ler e escrever caiu de 19 milhões para 13 milhões — de 25% para 8% da população adulta.
Na mensagem presidencial enviada ao Congresso em março de 1964, Jango escreveu: “Considerando-se que mais da metade da população é constituída de iletrados, pode-se avaliar o peso dessa injustiça. O quadro de eleitores já não representa a nação”. Castello recorreu a outro argumento na proposta que apresentou aos congressistas em junho do mesmo ano: “Em nossos dias, pelas novas técnicas da comunicação e da convivência, o analfabeto já se informa, já tem consciência de colaborar na existência coletiva pelo seu trabalho e já pode participar da vida cívica”.
Não era contraditório que o primeiro presidente do regime militar defendesse o sufrágio universal. No início, os artífices do golpe não pretendiam eliminar a eleição direta nem implantar a ditadura. O plano era afastar o perigo comunista e devolver o poder aos civis em 1966. O desejo de Jango não vingou porque ele foi destituído duas semanas após enviar a mensagem. O Congresso rejeitou a proposta de Castello. Os analfabetos votaram durante a maior parte da história do Brasil. Na Colônia, as Ordenações Filipinas diziam que, não sabendo os eleitores escrever, “ser-lhes-á dado um homem bom que com eles escreva” e “que não descubra o segredo da eleição”.
Elite sem escola
Após a Independência, continuaram votando. Isso não quer dizer que os pobres fossem aceitos na vida política do Império. O principal requisito para ser eleitor era dispor de uma renda líquida de pelo menos 100 mil réis por ano. De qualquer forma, seria um absurdo estabelecer a alfabetização como exigência, porque até a elite seria impedida de ir às urnas. Mais de 90% dos brasileiros eram iletrados no início do Império.
A guilhotina caiu sobre os analfabetos em 1881, depois que a Câmara e o Senado aprovaram a Lei Saraiva, com a exigência do letramento. “A ignorância, porque se generaliza, adquire o direito de governar?”, argumentou o ministro da Justiça, Lafayette Rodrigues Pereira, em 1879. “Se há no Império oito décimos de analfabetos, direi que eles devem ser governados pelos dois décimos que sabem ler e escrever”.
O projeto que deu origem à Lei Saraiva foi redigido pelo jovem advogado e deputado geral Ruy Barbosa (BA). “Ruy dizia que escravos, mendigos e analfabetos não deveriam votar porque careciam de ilustração e patriotismo e não sabiam identificar o bem comum”, diz Walter Costa Porto, ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral e autor de A Mentirosa Urna.
Entre 1881 e 1985, todas as tentativas de acabar com a exclusão dos iletrados naufragaram. A proposta feita por Castello Branco em 1964 era cautelosa. Para vencer a resistência, liberava o voto do analfabeto só nas eleições municipais. Não adiantou. “Jamais se deve premiar o analfabeto”, argumentou o senador Miguel Couto (PSD-RJ). “Antes de se consentir que o ignorante decida os destinos do Brasil, mesmo que restrito ao pleito municipal, com todas as forças deve-se obrigá-lo a ler e escrever, tirá-lo das trevas da ignorância”.
Cédulas adaptadas
Os analfabetos só tornariam a votar graças a uma emenda à Constituição aprovada por deputados e senadores em maio de 1985. A histórica liberação figurou entre as primeiras medidas democratizantes tomadas pelo Congresso após a ditadura. Fazia três semanas que Tancredo Neves morrera.
Na votação, o deputado Ronan Tito (PMDB-MG) disse: “Precisamos dar ao analfabeto escola, mas também força para que reivindique escola para si e para os seus. Como passará a ser cidadão pleno e ter direito? Quando tiver acesso ao voto. Aí passará a ter forças inclusive para reivindicar, exigir escola. Hoje é cidadão de segunda classe”.
O deputado Gerson Peres (PDS-PA) lembrou que o Código Civil via o iletrado como totalmente capaz: “O analfabeto é responsável pelo pátrio poder, presta serviço militar, fecha contrato de compra e venda, testamenta antes de morrer. A legislação até lhe permite votar e ser votado no sindicato. Por que não pode votar nas eleições para o poder público?”
Muitos parlamentares reclamaram que a emenda aprovada deu ao analfabeto só metade do direito. Ele votaria, de forma facultativa, mas não se candidataria. A Constituição de 1988 manteve os termos da decisão de 1985. As cédulas foram adaptadas. Como os analfabetos têm mais familiaridade com números do que com letras, a votação passou a ser por meio de algarismos.
O cientista político José Carlos Brandi Aleixo, autor de O Voto do Analfabeto, cita uma razão para que os iletrados tenham demorado tanto para recuperar o voto e até hoje não possam disputar eleições: “Eles têm vergonha da sua condição, se escondem e, por isso, têm dificuldade para se unir e lutar por direitos. Aos olhos do país, são invisíveis”.