Vovó da Unicap, Dona Margarida esconde passado revolucionário e um desejo de mudar o mundo
Comerciante que se tornou um dos símbolos da Rua do Lazer conta sua diária por dignidade e história que se cruza com Zumbi, Vargas e milhares de universitários
Com 85 anos de muita história para contar, Margarida Oliveira Silva é um rostinho bem conhecido entre os que circulam pela Rua do Lazer, nos arredores da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Há 53 anos com seu fiteiro de balas, doces e salgadinhos montado, Vovó, como é, carinhosamente, chamada pelos alunos, carrega um passado de muita luta e longos capítulos, e, no presente, é dona de uma mente fértil e longeva. Neta de indígena, nasceu na década de 1930 e faz questão de contar onde. “Nasci em 27 de novembro de 1932, em União dos Palmares, a terra onde nasceu o Quilombo dos Palmares. O nosso rei era Zumbi. Primeiro Deus, depois Zumbi”, frisa.
Quem vê o semblante frágil de Dona Margarida se surpreende ao descobrir a história de uma juventude cheia de aventuras, movimentos políticos e lutas intensas, mas percebe que ela lida com todo tipo de adversidade. Por todas as complicações físicas e dificuldades de locomoção, muitos dos estudantes da Unicap a ajudam sempre que podem. A universitária Gabriela Borba, 23, comenta que observa a rotina da idosa. “Em 2015, a conheci devido a uma campanha que alguns alunos fizeram para ajudar a pintar a banca dela. Ela sempre está carregando uma bolsa extremamente pesada, que deve ter em torno de 10kg. Sei disso porque uma vez a ajudei a carregar”, explica com preocupação a aluna. “Ela sempre vem sozinha e mal consegue olhar pra frente, porque é a bolsa sendo carregada de um lado e a bengala do outro lado. Quando ela se cansa, se escora na parede para aliviar o peso”, acrescenta.
Apesar de receber ajuda de seus “amigos”, como ela mesma diz, isso não tem sido suficiente. Margarida, que vai de casa, em San Martin, até a Rua do Lazer de ônibus tem o desejo de se mudar e morar mais próximo ao fiteiro devido às suas dificuldades de locomoção. Além disso, ainda tem as questões da violência urbana, que já fez a idosa ser alvo de três assaltos. “Aqui alguns amigos me ajudam. Carregam meus pertences, às vezes, e ajudam com caronas. Eu queria alugar uma casa na Rua do Príncipe, porque fica muito melhor pra eu conseguir me locomover. Estou viva porque Deus está permitindo”, afirma. Apesar de saber que precisa de melhores condições de vida, ela não nega o carinho pelos universitários. “Todos os meninos que passam por aqui, deixam um pedacinho deles comigo. É por isso que ainda estou aqui”.
Embora muito idosa, ela ainda é responsável por todos os cuidados de sua filha Norma, de 67 anos, que, depois de um AVC, tornou-se completamente dependente da mãe. “Minha bebê Norma tem 67 anos. Ela precisa de uma cuidadora, mas eu não posso pagar. Eu vou morrer agarrada com ela. Sempre digo ‘minha filha, a gente não sabe quem vai primeiro, se sou eu ou se é você, mas enquanto você respirar, a gente luta juntas'”, comenta. Margarida tem que deixar a filha sozinha em casa, na Zona Oeste do Recife, para abrir a banca e conta com a ajuda de um neto para fechar. “Quando eu estou aqui trabalhando, quem fica com ela é Deus e os anjos”, afirma.
No local, vende mais que doces ou lanches. Sem conseguir se desvincular de seu hábito de leitura e sempre querendo propagá-lo as pessoas, em sua banca, ela também vende livros, muitos dos quais ela já leu. “Os livros que tenho aqui são pra vender. Tem de história, de geografia, de engenharia, etc. Eu lucrava muitos livros, mas depois da internet, minhas vendas desse tipo caíram bastante”, lamenta, sobre o caminho que o mundo anda tomando – mundo este que ela sempre sonhou mudar. “Nunca me filiei a nenhum partido político, porque eu quero o que Deus quer e não o que o homem quer. Não deveria existir partido. Partido come tudo e desmoraliza o povo. O projeto de Deus é para que todos vivam com dignidade. Deus sonha com o bem-comum. Não é o bem de alguns, eu ficar rica e o outro na miséria. Ele quer o bem-comum. Se os 10 mandamentos da Bíblia fossem os 10 artigos de uma Constituição, esse país mudava. Não há como mudar as estruturas sem mudar a mentalidade de um povo”, defende.
A história revolucionária de uma Margarida que ninguém conhece
Identificada com o governo Vargas e com o movimento de luta dos anos 1930 por culminarem nos Direitos Trabalhistas, Margarida se orgulha porque já nasceu tendo como referência um pai e uma mãe que não retrocederam diante da luta e se lançaram no campo de guerra. “Minha família desde sempre foi envolvida na luta pelo direito à vida. Não se trata de política. É a luta pela vida, pelo trabalhador, pois ainda não existiam leis de proteção a eles”, explica ela, que ainda muito jovem perdeu o pai e cresceu sob os cuidados da mãe. “Eu não tive infância. Meu pai morreu quando eu tinha 5 anos. Eu, minha mãe e meus dois irmãos ficamos desamparados. Não existia nenhuma lei para nos dar suporte. O que nos ajudou foi o fato de meu pai ser católico vicentino. Entre os vicentinos existia a prática de quando um deles morresse, os outros deveriam prestar ajuda à família desamparada. Sobrevivemos assim”, lembra.
Sem acesso à escola e sem dinheiro para comprar livros didáticos, Margarida foi alfabetizada por sua mãe, semi-analfabeta. “Minha mãe é tudo. Ela é uma guerreira e também me ensinou a ser”, declara. Como não tinha acesso ao material, aproveitava qualquer oportunidade de aprendizado. Para exercitar a leitura, eu lia papel velho e jornal que voava. Até que uma pessoa me deu uma Bíblia de presente. Criei um hábito de leitura com ela e, aos 14 anos, eu já tinha lido a até o livro de Romanos”, conta.
Os filhos são um capítulo à parte. “O que saiu com menos estudo da minha casa, saiu ainda com o segundo grau completo. Criei todos os meus filhos com o sustento do que eu recebia na fábrica”,conta. Dos 11, três não eram biológicos. Sois foram sobrinhos e uma foi um “presente especial” que chegou, literalmente, na porta da idosa. “Criei uma menina que chegou na porta da minha casa numa caixa de sapato. Eu não sabia quem eram os pais, por isso, não pensei duas vezes; adotei e, hoje, ela carrega o meu nome. Chamei-a de Ester, em homenagem à personagem da Bíblia Ester, que arriscou a sua vida pelo seu povo. Pôs sua vida em perigo e esteve disposta a se sacrificar pelos seus. Ela está viva ainda e mora em São Paulo”, frisa.
Laís Leon
Repórter
Laís é estudante de Jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco e escreve para o Diario desde 2016, passando pela editoria de Redes Sociais antes de integrar a equipe do CuriosaMente.
Nando Chiappetta
Fotógrafo
Nando integra a editoria de Fotografia do Diario desde 2010.