No coração de Brasília Teimosa, vive uma Rainha da Sucata

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Foi pela força dos braços e dos laços familiares que Maria Tereza conquistou a liberdade. No processo, criou quatro filhos ensinando-os a fazer do lixo, um meio de vida

 

Dona Maria Tereza parece divindade no meio das garrafas, latas e ferros retorcidos. De vestido longo, turbante no cabelo e luva nas mãos, ela separa plástico de metal e chora. É um dia quente na cooperativa de catadores criada por ela e pelo marido, Jorge Amaro, no bairro de Brasília Teimosa, no Recife. A simplicidade no local vai da fachada descaracterizada à balança rústica para pesar as dezenas de sacos, enchidos pelas mãos e carregados pelas costas de pessoas ainda mais humildes. Tem um casal lá pelos 20, uma mãe com filha pequena, um idoso com 73… Todos moradores da Brasília, ponta esquecida de uma Zona Sul tão rentável para a capital pernambucana.

Quando chegou no bairro, a mulher somava 26 anos e três filhos pequenos. O mais velho, Nielson, tinha apenas dez. Da frente de casa, na rua estreita que dá direto para o mar, era possível observar as palafitas, hoje inexistentes. Todos os dias, Tereza, mulher, negra e analfabeta, enviava os filhos para a Escola Estadual João Bezerra. Eles teriam uma vida melhor do que a dela, nascida em Lagoa do Itaenga, na Zona da Mata, e enviada ao Recife com sete anos para trabalhar. “Me mandaram para cá para eu lavar, cozinhar, passar. Eu não prestava para trabalhar na roça porque era muito pesado”, lembra. Foi quase uma década de sofrimento diário em trabalhos semelhantes à escravidão até encontrar aquele que chama de “príncipe encantado”. Em Antônio, achou mais do que a liberdade da submissão aos patrões: encontrou um companheiro para a vida toda, inclusive para todos os perrengues que ainda viriam.

Foi mãe cedo e, por um bom tempo, morou no bairro do Pina, em local onde hoje existe um shopping. Após mudança para Brasília Teimosa, tudo parecia melhorar: as crianças estudavam, tinham teto para dormir e comida no prato, o marido tinha um emprego. Um dia isso ruiu. O provedor da família fora demitido. Não podiam passar fome. “Meu pai percebeu que a empresa dele lucrava muito com recicláveis, aí a gente começou a catar”, conta Nielson, o primogênito. Demoraram alguns meses carregando tudo nos próprios braços até conseguirem comprar o primeiro carrinho de mão. Tereza guarda ele até hoje. “Dividi em duas parcelas”, lembra. Com ele, a produção aumentou: a família se revezava para carregar sucata, limpando as ruas de Brasília Teimosa e ainda faturando o ganha pão. Alguns iam de manhã, outros, de madrugada. Sempre conciliando o trabalho da reciclagem com as outras dezenas de bicos que sustentavam os seis.

Desta forma, a vida seguiu por mais de ano. Dona Tereza e Seu Amaro, porém, não ficavam satisfeitos com pouco. Montaram um depósito. Aos poucos, foram ganhando clientes, aumentando o negócio. Chegaram até a comprar um caminhãozinho azul, hoje completamente desgastado pela maresia agressiva do bairro, que resiste entre rio e mar. Assim como a Brasília, o casal muito tem de teimoso. Caminharam em passos curtos até onde estão hoje: uma cooperativa que recebe mais de 20 toneladas de lixo reciclável produzido no bairro de Brasília Teimosa todos os meses.

Na cooperativa, em pouco mais de trinta minutos aparecem uma dezena de pessoas. A maioria vem pesar o apurado do dia. Era por volta das 11h quando, sob a lona preta do espaçoso galpão alugado, Tereza não conteve as lágrimas. Emociona-se sem qualquer vergonha. Mostra orgulho semelhante ao de uma mãe que vê o filho se formar doutor quando fala das conquistas da família. Ela, que sempre teve tão pouco, hoje tem um trabalho de todo dia. Os quatro filhos trabalham: uma menina, como atendente de restaurante, outra, com eventos. Os dois rapazes, como técnico de refrigeração e motoristas de Uber. “Com o carro que a gente ajudou a comprar. Com dinheiro da reciclagem”.

Marlon Diego / DP
Lorena Barros

Lorena Barros

Repórter

Lorena é jornalista formada pela Universidade Federal de Pernambuco. Integra a equipe do CuriosaMente desde maio de 2016.

Marlon Diego

Marlon Diego

Fotógrafo

Marlon integra a equipe de fotografia do Diario de Pernambuco desde setembro de 2016.