Medo: um fantasma que persegue e transforma vidas
Independente do sexo ou idade, quem passa por situação traumática pode abrir portas para o fantasma do medo. Alguns, porém, fazem dele um impulso para mudar
Às vezes, sobreviver a um acontecimento doloroso é o maior fardo para carregar em uma vida. O fantasma das memórias, vestido com cada detalhe e sensação, faz visita todos os dias. Não importa a hora. A cegueira da ignorância pode até chamar de “frescura”, mas a dor psicológica é real. Apesar da inexistência de um motivo concreto, o trauma é uma ferida que parece nunca fechar. De acordo com a Fundação Oswaldo Cruz, uma em cada cinco pessoas que se envolvem em episódios de violência, abuso, terrorismo, tortura, acidente ou catástrofes podem desenvolver estresse pós-traumático, cujos efeitos, se registrados na infância, podem durar a vida inteira.
A estimativa é que, em média, a duração do transtorno seja de três a cinco anos – causando modificações permanentes em uma a cada três vítimas. Para Francisco*, 40, entretanto, o pesadelo já dura 14 anos. Após sofrer um acidente de moto, no qual passou todo tempo lúcido e quase perdeu dois membros, ganhou – como diz ironicamente – uma síndrome do pânico. O medo de morrer foi tão intenso que essa sensação se repete mesmo que não haja motivo aparente. Até hoje, não faz longas viagens e o trânsito lhe dá taquicardia, sudorese e mal estar.
O que mais o entristece por sua condição é não conseguir passear com sua filha, de 13 anos. “Perdi muita coisa, inclusive a gravidez da minha então mulher. Acabei me separando e não consigo manter relacionamentos amorosos. Até trabalhar é complicado”, contou. Corretor de imóveis, uma das piores situações que vivenciou foi participar de um almoço de negócios e precisar terminar sem fechar acordo. “É muito constrangedor quando meu cliente repara minha crise e pergunta se está tudo bem”, relatou. E passa longe de ser caso isolado.
* Nome fictício
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é aproximadamente o número de pessoas que desenvolveram estresse pós traumático
anos é o tempo que se leva, normalmente, para se curar
Quando o medo vem em forma de pesadelo
Um melanoma que se desenvolveu no abdome de Luiz Felipe Moraes, 43, foi o começo dos transtornos. Mesmo depois de curado, o medo tomou conta da sua vida. Desenvolveu depressão. Fisioterapeuta, ele passou em um concurso público em Goiás, mas precisava mudar de ares como forma de terapia. Foi quando decidiu morar com sua família em Nova Friburgo, na região serrana do Rio de Janeiro. Em janeiro de 2011, da laje da sua casa, apesar da escuridão causada pela falta de energia, Moraes ficou a madrugada em claro. Escutou os gritos por socorro dos seus vizinhos, gemidos de agonia e casas desabando por causa da chuva. Não pôde fazer nada.
Quando o sol raiou, participou da equipe de resgate. Foram 913 pessoas mortas. “Eu vi as caçambas dos caminhões transportando os corpos empilhados”, relembra. Um deles, inclusive, era o de um grande amigo. A lembrança recente tirava seu sono e, um mês depois da tragédia, deixou tudo para trás – mulher, casa e filho. Veio buscar sua paz no Recife. Os pesadelos com a casa caindo ainda o atormenta e, quando chove, seu corpo fica tenso. Depois de tanto tormento, espera que o “pegador de sonhos” em sua parede seja o filtro dos seus maus pensamentos.
Lidar com esse tipo de cenário não pode ser considerado fácil. A primeira lição, no entanto, é a mais comumente infringida: não subestimar a dor do outro. E esse é o primeiro passo para alguém que quer ajudar uma pessoa com transtorno decorrente de traumas. Segundo a psicóloga clínica da área de traumas do Hospital Getúlio Vargas (HGV) Kamila Lúcia dos Santos, a atitude de quem lida com alguém com sintomas traumáticos é fundamental para sua cura. “Não auxiliar ou menosprezar seus sentimentos pode até piorar o estado emocional do indivíduo”, explica.
O trauma consiste em um evento que impacta fortemente a vida de alguém e a intensidade causa uma espécie de ferida psicológica. Essa energia depende de como o indivíduo dá significado à situação, daí a necessidade de buscar ajuda profissional. Se for mal resolvido, uma das consequências é o medo. Ou seja, por mais que não haja um motivo concreto, a paciência e a presença são essenciais. “Às vezes, em uma crise, a pessoa não precisa de um copo de água com açúcar. Só um ombro amigo”.
E elas?
O passo anda apressado e as mãos frias transpiram cortando a brisa noturna. Os olhos femininos, a cada precisos minutos, buscam ameaças por todos os lados da rua. Mas esperam, em plena taquicardia, que não haja nada lá. Dentro dos transportes coletivos, desconfiam de qualquer homem que olhe ou se aproxime demais. Não é para menos. As cotidianas notícias de assédio, violência e estupros no Estado assustam. O resultado, entretanto, não é só estatística: as mulheres convivem com o medo como se fosse uma sentença.
Um artigo publicado na revista Clinical Review & Education fez um levantamento, o qual mostra que 13% das mulheres norte americanas que vivenciaram experiências traumáticas podem desenvolver o transtorno do estresse pós traumático. Enquanto, entre os homens, somente 6%. Não se sabe até onde o estudo interfere na realidade das brasileiras, mas é inquestionável o medo que as pernambucanas têm de entrar na estatística. Isso por que a capital pernambucana registrou, segundo levantamento da Polícia Civil, 33 casos de violência sexual apenas no mês de setembro.O número é suficiente para apavorar, mas o acumulado de janeiro ao mês passado, piora. São 274 casos notificados. As pernambucanas torcem para não virarem estatística. Assim como a comunicadora social Carol Sá Leitão, 22.
casos de estupro de janeiro à agosto
casos de estupro em agosto em Pernambuco
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mulheres que passaram por situações traumáticas e desenvolveram estresse pós traumático
Por volta das 22h, no bairro de Setúbal, ela estava voltando para casa após a faculdade. A rua era, como chama, “esquisita”. Quando percebeu um homem se aproximar, achou que era um porteiro a caminho do trabalho. Mas a suposição se desfez logo quando ele tentou puxá-la pela bolsa e a colocar em um carro. Ela lembra de ter gritado e brigado muito para não ser levada. O motorista, sem êxito, deu partida e Carol foi arrastada.
O episódio ocorreu em 2015, mas deixou feridas em seu corpo e numa mente que já se tratava de um transtorno de ansiedade. Com o passar do tempo, cicatrizaram. Mas sua rotina nunca mais foi a mesma. Não pega mais ônibus após as 21h e, mesmo quando usa aplicativo de transporte, manda foto da tela do celular para a família. “Criei um grupo no Whatsapp só com meus pais para poder informar aos dois, ao mesmo tempo, onde estou”, relata.
Para a psicóloga Kamilla Lúcia dos Santos, situações como essa tornam as mulheres mais propensas a ter transtornos psicológicos. Ela conta que, no Hospital Getúlio Vargas, por exemplo, o maior número de pacientes com sintomas de crise de ansiedade são elas. “A sociedade, a família, a profissão, enfim, tudo costuma pressionar mais a vida das mulheres”, explicou.
Superar o medo é possível
Valéria Almeida, 54, nasceu em julho de 1964. Adepta da astrologia, seu signo no zodíaco é câncer. Por sete anos da sua vida, encarou as estradas brasileiras trabalhando como motorista de carretas. Viajou para São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Santa Catarina e tantos outros lugares. Força, definitivamente, é seu ascendente. Só que como o ciclo dos astros muda de vez em quando e, talvez, por ironia do destino, foi diagnosticada com câncer de mama em 2015. Sua filha, no início da gravidez, chorou ao receber a notícia. A carreteira, por sua vez, não derramou uma lágrima. Enfrentou a retirada da mama esquerda com determinação. A cirurgia, inclusive, seria marcada no dia do seu aniversário se seu médico não tivesse pedido para adiar.
Sua resistência, entretanto, foi fraquejando. Perdeu a vontade de sair de casa, só sentia vontade de dormir e atividades triviais com a família não a animavam mais. Ela achava que era só indisposição, mas a depressão a pegou. Chegou em um grau que se olhar nua no espelho, para uma mulher como ela – que sempre se preocupou em estar bonita, era um gatilho para o choro.
Mesmo tendo a companhia do filho de 18 anos em casa, ela almeja ter um grande amor. Mas, com o corpo mutilado – como denomina -, não sente segurança em “arrumar” alguém. Foi então que percebeu que, se ficar parada, se afundaria mais. Sempre cheia de vida e acostumada a trabalhar desde os 11 anos, virou motorista de Uber. Mesmo sem o atestado de que está, de fato, curada do câncer; dona Valéria ressignificou a própria vida. O nascimento do seu neto, Theo, que hoje tem um ano e nove meses, foi um dos seus remédios. E até brinca sobre as meias que guarda no sutiã para fazer volume no local onde já existiu um seio.
Para a psicóloga Kamila Lúcia dos Santos, o primeiro passo para a superação é justamente o paciente conseguir dar novos significados aos acontecimentos da sua vida. Além de aprender a separá-los das novas experiências. “Não sou vítima. Eu sempre lutei para dar uma vida aos meus filhos, agora é só uma experiência que a vida me deu para aprender a amar a minha mesma”, contou dona Valéria com o sorriso que não tira mais dos lábios.
Tatiana Ferreira
Repórter
Tatiana é estudante de Jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco e integra o Diário desde agosto de 2017. Tem medo de palhaços, mas até arriscaria fazer uma reportagem com eles.
Thalyta Tavares
Fotógrafa
Thalyta é estudante de Fotografia na Universidade Católica de Pernambuco. Tem medo de sapo, mas carrega um escorpião tatuado nos braços.
Gabriel Melo
Fotógrafo
Gabriel é estudante de Rádio e TV na Faculdade Guararapes. Tem pavor de ratos, mas não hesita na hora de fotografar nas alturas.
Reportagem publicada integralmente no dia 24 de novembro de 2017. Diario de Pernambuco.