Machismo: um desafio que transforma oprimidos em opressores
Mais do que causar desconforto e violentar mulheres, a cultura machista é ensinada desde cedo, no seio familiar e viola, antes de tudo, a infância de futuros opressores
Ele gostava muito de dançar e brincar de casinha com as meninas na rua. Na realidade, Murilo* não tinha muitas opções. Não havia muitos garotos na vizinhança e sua vontade mesmo era de fazer o que toda criança almeja no auge dos seus sete anos: se divertir. Não via problema; pulava corda e amarelinha. Não ligava para os pés que voltavam pretos para casa. Mas sua mãe e sua tia ligavam. Não tanto para o pé sujo, que deixava pegadas pelo chão de cerâmica inteiro, mas porque achavam que ele era “estranho”. Para elas, ele era “muito afeminado”. Quando chorava, questionavam se era “um homem ou um rato”. O garoto não entendia porque era repreendido, mas cresceu sabendo que, dependendo do seu sexo biológico, você cumpre um papel e que sensibilidade não era uma característica que lhe cabia.
Várias histórias começam assim. A semente, embora genuinamente inocente, é plantada com repressão e violência. Durante sua concepção, é regada com ignorância e, consequentemente, já nasce problemática. Dentro da cultura machista, homens são agredidos por todos os setores da sociedade até que se tornem agressores. A frustração é um ponto comum entre o início dessas histórias, mas é também nas de tantas outras famílias, seja desde o interior “brabo” do Nordeste até uma grande metrópole do Sul. Cada uma com suas particularidades, mas todas com um aspecto que as interligam em uma lógica quase sistemática: a cultura machista. E, na sociedade, há diversas formas de se manifestar.
* Nome fictício
Os pais de Breno Rodrigo Marques são católicos e se conheceram ainda na época da escola. Moravam em Limoeiro, Agreste de Pernambuco, frequentavam a mesma igreja e, como suas famílias se conheciam e eram de tradição, se casaram. Vieram morar no Recife e tiveram dois filhos, Bruno e Breno, apenas de nomes parecidos. Enquanto Bruno só brincava na rua, Breno sempre preferiu atividades mais artísticas. Embora nunca tenha sido proibido, era sempre questionado. Não se sentia “agredido”, mas sentia a necessidade de cumprir um dos maiores ensinamentos de sua família interiorana: os filhos devem ser à luz dos pais.
Como a professora da Universidade Federal de Direito do Recife Liana Cirne explica, o movimento começa com as instituições, como a família, igreja, escola e até mesmo o Estado. A reprodução da lógica da subjugação da mulher em detrimento do homem está tão enraizado na sociedade que, desde quando eles ainda são muito novos, isso faz parte de sua educação. “É o que permite a perpetuação de várias gerações com a mesma cultura”, aponta a doutora em Direito público e estudiosa sobre a causa das mulheres.
“Minha consciência me empurrava para tentar imitar meu pai, pois aprendi que tinha que me inspirar nele”, relata Breno. “Mesmo ele trabalhando muito e eu sendo criado praticamente só por minha mãe, que ficava em casa, ela era quem me cobrava uma posição mais masculina”, conclui. Isso significava, também, que o menino não podia passar muito tempo com as meninas, não devia usar roupas e sapatos coloridos, entre outros comportamentos.
Na elaboração da professora de comunicação e pesquisadora na área de gênero da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Soraya Barreto, essa fase da infância é determinante na construção dos homens. No entanto, eles não são vítimas só neste momento. O machismo e o patriarcado são elementos seculares da cultura. Ou seja, por mais que seja praticamente inevitável esse tipo de educação não exercer força sobre a psique do homem, a posição privilegiada acaba se tornando confortável. “Isso faz com que eles não queiram se desconstruir e só perpetuem essa cultura”, aponta.
Um divisor de águas chamado adolescência
Apesar de começar cedo os primeiros passos, é na adolescência que as exigências e regras sobre “como ser homem” se aprofundam. Murilo*, com 13 anos e que nunca teve o pai presente, começou a receber, dele, regras sobre como deveria se comportar e o que deveria fazer. No meio de amigos, os pré-requisitos da masculinidade foram mais impositivos. “Se você não tem experiência, não fica com meninas ou até não ‘mexe’ com elas, você ainda não é um homem”, conta. “Quem dirá nunca ter tido relações sexuais?”, acrescenta, enquanto ressalta que essa é a pior fase, porque não há respeito sobre o tempo individual de cada um.
Para se enquadrar, Murilo mentia sobre experiências e ficava angustiado por não alcançar o “comportamento perfeito”. Embora fosse franzino e “nerd”, o menino era inteligente e amigável e, como uma espécie de missão, buscou incansavelmente cumprir as regras para se tornar um “macho alfa”, como é denominado vulgarmente. Confessa: machucou e foi abusivo com muitas mulheres. “Por mais desumano que isso seja, a sensação de finalmente me sentir incluso no meio dos homens me satisfez. É sentir prazer em fazer mal a outra pessoa”, comenta.
Hoje, com 24 anos, Murilo ainda se considera machista. Mas afirma ter tomado consciência e praticar a desconstrução da identidade que ganhou seus pilares desde a infância e se solidificou durante toda sua vida. “Só no cotidiano, na prática, que se constrói o novo homem para uma nova sociedade. ‘Textão’ nas redes sociais e verborragia sobre ser ‘desconstruidão’ não liberta a mulher da opressão que causamos”, declara.
Breno, por outro lado, acredita que nasceu aos 21 anos. Atualmente, trabalhando como supervisor comercial no Rio de Janeiro, tem 24. Após uma infância conturbada e cheia de fundamentos religiosos e conservadores, ele tentou interpretar um personagem para fugir de si e agradar seu pai. Viu, na mudança de colégio, a oportunidade de ser outra pessoa, alguém que tem amigos e é aceito. Mesmo se entendendo como homossexual desde os 13 anos, Breno namorou duas meninas e reproduzia o comportamento dos colegas.
“Tudo pela aprovação e para não ser excluído”, detalha. O teatro foi tanto que ele, na época, até debochava de um garoto gay que era alvo de ataques na sala de aula. “Eu me sentia um lixo, mas o medo de perder os meus amigos era maior que minha coragem de me solidarizar ao menino”, confessa. Foi quando, no último ano da escola, ele assumiu pra si que não suportava mais viver aquele personagem.
Do pai, esperava tudo – da expulsão de casa até a violência física. “A mãe dele, minha avó, já tinha dito que um primo meu que se assumiu gay não podia mais pisar na casa dela. Eu imaginava que ele seguiria a mesma atitude”, conta. Para sua surpresa, recebeu apoio e ouviu: “Por que não contou antes?”. Hoje, vive com o namorado no Rio de Janeiro. O desfecho não é o mesmo para todos, ainda que o enredo-base seja comum a tantos.
Um machismo que bebe na história
Há diversas teorias sobre como o patriarcado e a submissão da mulher se tornaram concepções tão enraizadas na cultura. Uma delas sugere que, após o período neolítico, o surgimento do arado foi o pontapé inicial. Isso porque o trabalho braçal distinguia o que melhor o homem e a mulher podiam desempenhar. Ou seja, com isso, o homem se tornou o provedor e a mulher, cuidadora de casa.
Essa teoria explicaria, por exemplo, a ideia de permissividade aos homens e restrição às mulheres. “O público é para ele e o privado é pra ela. Quando o menino é ensinado que não pode brincar de boneca, ele está sendo educado a não ter responsabilidade como pai. Isso cabe apenas à menina, à mãe. Não é sobre violência. É sobre impor a força o poder que a sociedade lhe concedeu privilegiadamente ao outro”, lembra a professora de comunicação e pesquisadora na área de gênero da UFPE Soraya Barreto.
Outra teoria é que surgiu com a criação da propriedade privada. Com dissolução das comunidades matriarcais e comunistas primitivas, a mulher se tornou um elemento agregado à propriedade. O homem sentiu necessidade de conservar seus bens, como a terra, através das gerações. Ou seja, pela herança. Com isso, a mulher servia apenas como reprodutora e cuidadora desses bens.
Tatiana Ferreira
Repórter
Tatiana é estudante de Jornalismo na Universidade Católica de Pernambuco e escreve para o Diário desde agosto de 2017.
Gabriel Melo
Fotógrafo
Gabriel é estudante de Rádio e TV na Faculdade Guararapes e integra a equipe de fotografia do Diário.