Lelêu: O bom carrasco do Mercado da Boa Vista
O mau humor fingido e o ritual de expulsar espalhafatosamente os clientes na hora de fechar seu bar fizeram de Lelêu um dos símbolos da vida boêmia do mercado
São 19h de uma quinta-feira e, entre um dedo de prosa e uma cerveja gelada, um dos bares do Mercado da Boa Vista faz questão de transformar a famosa saideira em “expulsadeira”. As portas de aço começam a se desenrolar. Por vezes, o estrondo de um cabo de vassoura se chocando contra elas pode se fazer ouvir. Ou um insistente apito. Mas a constante é a voz masculina, emitida por um sujeito careca, corpulento e meio mal-encarado – em muitas ocasiões, amplificadas por um megafone: “Vocês têm casa? Eu também.”
Trata-se de Lenilson Ferreira de Santana – ou melhor, Lelêu. Ele é o dono de um dos bares mais movimentados do Mercado, o Recanto do Lelêu, localizado no box de número sete já há 17 anos. E que se tornou famoso pelo pretenso mau humor de seu proprietário – pois os frequentadores assíduos sabem que as bravatas são só um número e que a “carranca” esconde uma pessoa gentil e prestativa com seus clientes.
O que poucos sabem é que a “cara feia” de Lelêu tem uma origem inusitada, mais ligada à sua autoestima do que ao seu humor. “Acho que nunca contei isso pra ninguém, antes”, diz ele, num meio-riso que passa entre o leve constrangimento e o divertimento de quem recorda as agruras passadas da juventude.
“O caso é que um dia, muito tempo atrás, eu tava de namoro com uma menina e, de repente, minha peça [um substituto para um dente perdido] pulou da boca. Fiquei muito constrangido. Daí, depois desse dia, tive medo de que acontecesse de novo e fui parando de sorrir, ficando com a cara amarrada…”
Já as ruidosas expulsões, que surgiram quando Lelêu estava realmente cansado da algazarra dos clientes, começaram a fazer cada vez mais sucesso (mesmo que, vez por outra, acabasse assustando os donos e frequentadores dos bares ao redor). Um ritual que acabou por virar sua marca registrada. “A turma faz questão que eu seja ignorante!” E o propósito inicial, de intimidação – se é que um dia verdadeiramente o foi – acabou se transformando em parte da algazarra, da farra.
Uma “grea” tão grande que virou até bloco de carnaval: desde 2005, os “Maltratados por Lelêu” se reúnem todo ano, durante a folia de Momo, ali mesmo, pelo Mercado. Mas não que Lelêu tenha se tornado bobo da corte de seu próprio reino: paciência tem limites e Dona Rejane, sua companheira há quase trinta anos, o espera em casa. Assim, apesar de toda a algazarra, o horário de fechar continua o mesmo – e ninguém se atreve a desrespeitá-lo quando ele informa que essa é mesmo a última cerveja.
A (quase) volta do boêmio
O Recanto – como muitos dos boxes dali – já foi uma mercearia. O proprietário era o pai de Lelêu, seu Adalto, famoso no local por conta de sua religiosidade; não foram poucas as missas que ele mandou rezar em seu estabelecimento. Ali, com o pai, Lelêu passou praticamente toda a sua vida. “Vivo aqui desde os 8 anos de idade. Nunca trabalhei em nenhum outro canto – meus irmãos saíram e eu fiquei.”
Hoje, prestes a completar 60 anos no próximo mês de junho, Lelêu se lembra de quando o Mercado ainda não tinha os bares como suas principal característica. “Era diferente… isso aqui tudo era mesa de feira, barraca de verdura…”, ele conta, apontando vagamente para as mesas plásticas que hoje ocupam grande parte da área central do local. “Naquela época, não tinha Bompreço, né. Aí apareceu e foi se acabando devagar, o pessoal foi mudando de ramo…” O Mercado da Boa Vista mudou junto com o Recife. Hoje, é reduto boêmio – como a maioria dos mercados públicos da cidade.
A história para ele foi mais ou menos parecida – ainda que as circunstâncias tenham concedido um providencial incentivo. Após o falecimento do pai, há 25 anos, e com os irmãos (seis, ao todo – um deles já falecido) exercendo diferentes profissões, coube ao filho do meio de seu Adalto e dona Josefa – que, afinal, nunca havia saído dali – tocar o negócio da família. Porém, ele acabou levando a mercearia à falência. “Aí, passei um tempo na doideira, bebendo muito… daí resolvi abrir o bar.” Uma ideia que, a princípio, não foi bem recebida pelos outros irmãos. “Um deles dizia, ‘como é que a raposa vai tomar conta do galinheiro?’ E primeiro, foi verdade, mesmo; eu vendia uma grade de cerveja e tomava duas.”
Ele lembra que a vida era uma confusão quando vivia na boemia. Então, há 15 anos, decidiu que a relação com a bebida seria apenas de negócios. A resolução foi imbuída do senso de oportunidade: na mesma época, a administração municipal iniciou a revitalização dos mercados da cidade, atraindo um novo público e vida nova para os centros de comércio popular. Com a vida pessoal nos trilhos e o mercado reorganizado, Lelêu viu o bar render bons frutos. A clientela aumentou, cada vez mais fiel – mesmo com um dono tão carrancudo.
Porém, Lelêu lamenta que esses não sejam os melhores dias de seu Recanto. A brusca queda na frequência reduziu seu faturamento em mais de R$ 3 mil mensais. “Hoje em dia, só lota aos sábados, mesmo.” Ainda assim, ele prefere os domingos – dias mais “família”. E com o Mercado, segundo ele, novamente abandonado pela administração pública, a falta de segurança começa a se tornar uma preocupação. Nesses sábados de lotação extrema , Lelêu diz que a frequência se tornou duvidosa e que a ameaça de brigas, antes raras, hoje são uma constante. “Tá muito desorganizado. O lugar precisa de investimento. No carnaval foi muito pouco; no São João, ninguém sabe se vai ter. O lado cultural do Mercado tá decaindo.”
Precursor dos Saraus
No Recanto do Lelêu, aliás, surgiram os primeiros saraus improvisados do mercado. Versos declamados entre os vários goles. Pra que se fizesse música, foi um pulo. “Começou com Allan Sales [poeta e músico recifense], que ficava por aqui, tocando as músicas dele. Daí começou a vir mais gente, fomos começando a tocar as músicas que a gente gosta”, conta ele. As apresentações então se tornaram atração constante nas tardes de sábado. Hoje, Lelêu até mesmo se refere ao grupo de amigos como “a banda”; que não tem nome específico, mas que ele afirma às vezes chamar de “Passa-Fome”, e conta com músicos experientes. “Maguito, o baixista, tocou dez anos com Nando Cordel; Gato, o batera, já tocou com Núbia Lafayette e Cauby Peixoto”. Completam a formação Chico, Didi (ambos no violão e voz) e o próprio Lelêu.
Os momentos em que Lelêu deixa o balcão do bar e toma o microfone se tornaram mais um motivo para fazer dele um símbolo do Mercado. Com uma voz aveludada e afinada, ele entoa canções de alguns dos músicos que mais admira, como Tim Maia, Djavan, Chico, Caetano, Belchior, Odair José, Cassiano… “só não gosto dessas coisas de sertanejo universitário”, se apressa em dizer, quase exaltado. Lelêu se arrisca até na música americana – e uma das preferidas da platéia, sem dúvida, é sua versão toda própria de Have you ever seen the rain, da banda Creedence Clearwater Revival.
Lelêu, aliás, sonhava em ser músico – baterista, mais especificamente. “Quando eu era mais jovem, ia pros bailes e fica ali, por trás da bateria, observando. Aí, também, uma hora botei na cabeça que sabia cantar. Mas na minha época, isso era coisa de vagabundo, não dava”, ele relembra. “Mas se fosse pra ser outra coisa, além de comerciante, queria ter sido músico. Mas dos bons”, enfatiza.
Feudo sem herdeiros
Ainda que venha sempre a hora em que é preciso voltar pra casa, Lelêu não poderia se desvencilhar de seu bar nem se quisesse. “Não passo um dia sem vir pra cá – tirando a segunda, que a gente não abre. E quando preciso faltar, reclamo. Nem penso em me aposentar.”
Ele sabe, porém, que o tempo passa e inevitavelmente há de chegar o dia em que ele não estará mais lá. Mas o futuro do lugar ainda parece um tanto incerto. “Queria muito que isso aqui passasse de pai pra filho, como foi comigo”, ele diz quase distante, olhando ao seu redor. “Mas essa turma jovem não tem interesse.”
Lelêu tem ainda outros dois filhos. Carlos foi seu primogênito, hoje com 34 anos, fruto de um relacionamento anterior e que lhe deu o primeiro neto; vive na Suíça há 17 anos, mas nunca recebeu uma visita do pai. “Morro de medo de avião, Deus me livre”. Há também Emily, de 19 anos, nascida de um relacionamento ocasional da época em que Lelêu ainda se embrenhava pelas noites. “Mas dei toda a assistência e hoje ela é uma menina muito bem encaminhada, faz radiologia, estagia no Detran…”
A “turma jovem” a quem ele se refere, no caso, são os dois filhos que moram com ele e dona Rejane: Bruno, de 25 anos, e Lucas, de 23; o primeiro, graduado em educação física, já atua como personal trainer; o segundo é estudante do mesmo curso. Nenhum dos dois demonstrou intenção de seguir os passos do pai. “O mais novo até vem me dar uma ajuda nos dias de sábado, mas não pensa em ficar, não.”
“Quero que joguem minhas cinzas aqui, quando eu morrer”
Enquanto não chega a hora fatídica, Lelêu vai tocando seu recanto – entre as grades de cerveja, os clientes fiéis e passageiros, seus risos e suas lágrimas (que ele diz já ter visto muitas) e os tantos ciclos de vida do Mercado, vê o tempo passar; levando e trazendo garrafa e doses com sua expressão falsamente ranzinza, soltando a voz para cantar ou proferir impropérios, lembrando que todos temos de voltar para o lugar de onde viemos quando os ponteiros do relógio marcam 19h. Mas para ele, o lugar para o qual voltar há de ser sempre seu Recanto, na manhã seguinte. Se puder, até o fim dos seus dias. “Quero que joguem minhas cinzas aqui, quando eu morrer.”
Dandara Palankof
Repórter
Dandara é estagiária do Diario de Pernambuco desde março de 2017 e frequentadora assídua do Recanto do Lelêu
Gabriel Melo
Fotógrafo
Marlon Diego
Videografista