Histórias de escovas e couro: a Guararapes dos engraxates
A Avenida Guararapes é uma das principais artérias do Centro do Recife. Por ela, passam por dia mais de 200 linhas de ônibus e dezenas de milhares de pessoas, circulando apressadas indo ao trabalho, às compras ou apenas de passagem. Na correria, a maioria nem se dá conta da existência de 13 engraxates. E a via é também território deles. Sob as marquises dos edifícios entre a Rua da Palma e a Avenida Dantas Barreto, ocupam, cada um, uma pilastra. Em outros tempos, nenhuma das 28 colunas ficava vazia. O local de trabalho é simples. Em geral, é banquinho para sentar, um outro assento preso ao concreto, para clientes, além de mais alguma banqueta de madeira para materiais e sapatos deixados para consertos.
Os consertos, aliás, são responsáveis pela maior parte da renda. Nenhum dos 13 é somente engraxate, mas sapateiros. Uns mais, outros menos. Alguns consertam apenas solados dos sapatos, outros recuperam até bolsas e cintos. O aumento do repertório é uma adequação aos novos tempos. Os clientes em busca de engraxadas são cada vez mais escassos.
Uma vida na Guararapes
Na segunda pilastra do Edifício Edmundo dos Santos Reinaldo, logo depois de uma banca de revistas, está João Maurício de Aguiar, oito décadas de vida. Desse tempo, 65 anos dedicados a Avenida Guararapes. João é do tempo em que o dinheiro recebido pela graxa era bom e os clientes, numerosos. Relembra quando a “alta burguesia” recifense era frequentadora assídua da via. “Se naquela época eu pensasse como hoje, dava pra estar bem de vida”, afirma um João nostálgico. Ele diz que ganhava muito dinheiro entre segunda e sexta-feira, mas os finais e semana serviam para zerar o saldo.
Na rota, Rua da Guia e do Apolo, sedes principais do “baixo meretrício”, como define. “Só saía de lá quando gastava o dinheiro da semana”, lamenta. Natural de Natal (RN), chegou no Recife aos nove anos de idade, depois de fugir de casa. De imediato, passou a trabalhar carregando as compras dos frequentadores do Mercado de São José e dos comerciantes, obtinha o alimento: restos de laranjas jogadas fora. “Arranjei uma faca e tirava os pedaços estragados para comer o resto”. E o chão da Guararapes, onde se mantém até hoje, cedeu o chão em que João dormiu por várias noites. “Vim escondido num caminhão que trazia cargas e pessoas para o Recife. Meu pai me deu uma pisa não merecida e eu fugi”, lembra, sorrindo.
O tempo se encarregou de reconectá-lo à família, no caso, a irmã mais velha, que veio morar no Recife e o abrigou numa casa na comunidade do Coque, na Joana Bezerra, antes dele partir em busca de um lugar só seu. Nesse meio-tempo, virou vendedor ambulante de amendoim, tapioca e doces e se deparou com rapazes mais velhos engraxando e se interessou pelo ofício, que dava mais dinheiro.
“Pra quem não estudou, começou do nada, dormiu na rua e passou fome? Sou rico”
Fabricou então a própria “ratoeira” – nome dado à caixa de madeira que os engraxates ambulantes carregavam – e começou a exercer a profissão na porta de bares e restaurantes. À época, contava as engraxadas diárias em dezenas. Hoje, não passam de “quatro ou cinco”. Sem movimento, a renda só não fica mais comprometida graças à aposentadoria que recebe. Com ela e mais o dinheiro das engraxadas e dos pequenos consertos, vive com a esposa de seu terceiro casamento (após experimentar a viuvez duas vezes). Na Guararapes, também “adotou” outros engraxates mais jovens que não tinham pra onde ir. “Nunca fui bom não, mas também não fui ruim, ajudei muitas pessoas”, reflete João. Apesar das dificuldades, João tem uma avaliação positiva da própria trajetória. “Pra quem não estudou, começou do nada, dormiu na rua e passou fome? Sou rico”.
Assim como foi com Seu João, a maioria dos outros engraxates também não teve muito tempo de instrução formal. A escola foi substituída pelo trabalho ainda na infância. “Praticamente me criei sozinho aqui”, relata Edivaldo Faustino dos Santos, 70, o “Cabeleira”, engraxate na Guararapes há 40 anos. O apelido vem de quando os cabelos batiam nos ombros, décadas atrás, cortados na época da ditadura. “Naquela época, se pegassem de noite um cara de cabelão na rua, ele levava uma pisa. Só quem podia era Roberto Carlos”, brinca.
Para ele, Recife foi rota de escape. Precisava de emprego quando, aos 14 anos, deixou Vitória de Santo Antão. Na capital, sempre trabalhou como engraxate e sapateiro. Nunca pensou em mudar de profissão. “Quando a gente vai chegando em certa idade a gente percebe o lugar da gente. E o meu lugar eu sempre percebi que era aqui”. Cabeleira mora sozinho, em Olinda. Diz que é “largado da esposa” há 19 anos. Os filhos são “quatro ou cinco, ‘tudo grande espalhado’ pelo mundo”, relata. “Agora é só eu e Deus. Saio daqui só pro cemitério”.
A Avenida Guararapes parece realmente ser o destino final dos engraxates que nela trabalham. Ao menos em palavras. Até quem não está na terceira idade enxerga nela uma espécie de linha de chegada. É o caso de Reginaldo José de Souza, 49 anos, mais conhecido como “Brasil”. E, até hoje, talvez a única coisa que o país tenha lhe dado, foi o apelido. É chamado assim há 20 anos, desde que começou a trabalhar de engraxate. “Vou ficar aqui até morrer. Quase cinquenta anos já, vou viver o restinho que falta aqui”, comenta. A quantidade desse “restinho” só será definida pelo tempo, mas é certo que, até lá, Brasil continuará esbanjando simpatia e sendo interrompido pelos amigos de tantos anos que fez na região.
“As pessoas me conhecem”, diz, com um olhar satisfeito. Quem não o conhece de perto, ao menos de longe já o notou. Em 1994, na época do clamor pelo tetra da Seleção, aproveitou e customizou a banca toda de verde e amarelo, com direito a bandeiras, daí a “marca registrada”. “Quando as pessoas vem da esquina já chama a atenção. É único”, conta.
Com a banca verde e amarela, tirou dinheiro para sustentar o casal de filhos, ao lado da esposa, empregada doméstica. Se orgulha ao falar que os filhos já estão trabalhando. A menina, aos 18, “faz estágio não sei direito onde”, o menino, de 21, trabalha em um restaurante “na parte de serviços gerais”. Os dois já ajudam na casa. A situação não é fácil, apesar de Brasil dizer que “vai levando”. Em alguns dias são apenas três engraxadas durante as mais de 10 horas em que fica na Guararapes. O que tem ajudado são os consertos. “Se vivesse só de engraxate tava ferrado”.
“Engraxo, colo, descolo, pinto e boto salto em sapato de mulher”. E assim, Isaias Gregório de Araújo, 63, é mais um que vai vivendo. Das seis décadas de vida, quatro são na Avenida Guararapes. Para isso acontecer todos os dias, a correria começa cedo. Acorda às 5h30, às 6h20 sai de casa e pega um ônibus que o leva de Prazeres, em Jaboatão dos Guararapes – onde mora com a esposa de seu segundo casamento, Edileuza – até o local de trabalho. Às 7h20, já está sentado no banquinho, começando a fazer os consertos deixados nos dias anteriores, somente interrompidos com a chegada de algum cliente querendo lustrar os sapatos. A clientela é das mais diversas, “tem até desembargador, promotor e advogado”, conta.
As pausas não tem sido muitas. O expediente dura entre dez e onze horas, nada que, ao menos aparentemente, sirva de desestímulo. Afinal, trabalhar nunca foi problema para Isaías. Nascido em Areias, Zona Oeste do Recife, foi recém-nascido para o interior, onde viveu em Gravatá e Bezerros, no Agreste. Lá pegou na enxada desde novo, quando largou a quinta série para trabalhar na terra arrendada pelo pai de onde vinha o sustento da família. Aos 16, voltou ao Recife com a família e passou a vender ervas e tempero nas feiras da cidade. Ficou nisso até os 23 anos. A partir daí, iniciou as quatro décadas de Avenida Guararapes, de onde, com bom humor, diz não sair mais. “Quando eu morrer, vai ficar meu espírito aqui engraxando”. Nas palavras dele, no entanto, a permanência parece ser também fruto da falta de opção. “Se eu conseguisse juntar um dinheirinho, voltava pra roça, mas voltava por cima. Voltava pros outros trabalharem pra mim”, relata num tom mais baixo que o usual, quase como uma confidência. Enquanto não realiza o sonho continua na labuta, sentindo na pele as mudanças do tempo. “Antigamente a Guararapes parecia uma festa. Eu fazia farra, fazia feira e pagava INSS. Agora fico só na feira”, conta Isaías quase gargalhando.
Quase um novato
A banca de Josias de Oliveira, 63, realiza os serviços a quatro mãos. Maria Paula, esposa de Josias há 21 anos, é a assistente do marido. “Fico auxiliando ele, colocando etiqueta nos produtos, colocando os valores, fazendo o controle de entrada e saída. Às vezes engraxo e ajeito sapatos também”, diz. A ida para a rotina de Josias foi gerada por aconselhamento médico, Maria Paula não deve ficar sozinha. “Ela fica espairecendo. É uma terapia”, explica Josias. Por conta da saúde da esposa, com quadro de esquizofrenia, Josias retornou da sua terra natal, João Pessoa, onde era taxista. Antes disso, passou a maior parte do tempo em que esteve no Recife trabalhando como ambulante. Vendeu óculos escuros, bolsas e sandálias. Com a febre dos produtos da China, no entanto, perdeu mercado.
Josias já virou engraxate e sapateiro no tempo das vacas magras da profissão. Enquanto a maioria dos companheiros da Guararapes conta décadas de graxa e consertos, ele soma apenas 5 anos. Em termos de instrução escolar, também não segue a regra. Possui o segundo grau completo, diferente da maioria dos companheiros de profissão.
“Eu acho que agora vou ficar. Com 64 anos, quase, vou mais pra onde?”
A vinda ao Recife, inclusive, só aconteceu após encerrar os estudos aos 17 anos. Ele veio pra cá com o sonho de ser oficial da Marinha. Chegou a virar fuzileiro naval, mas na hora de engajar, não conseguiu. “Naquele tempo era feito carteira de motorista, fui perdendo pontos e não deu pra ficar. Essas coisas de indisciplina, sabe?”. O que liga Josias aos outros doze engraxates é a sensação de que a via estará presente até os últimos dias de sua vida. “Eu acho que agora vou ficar. Com 64 anos, quase, vou mais pra onde?”.
Décadas se passaram, a população aumentou, mas o movimento caiu. Entre a Rua da Palma e a Dantas Barreto as pessoas andam com pressa, característica predominante no Centro do Recife. A maioria, talvez, nem perceba a presença de Josias e sua meia década de profissão, nem mesmo a de Seu João e suas seis décadas e meia de graxa. As pilastras ficam a cada dia mais vazias, mas a histórica profissão segue viva enquanto ainda restar uma longa história de vida numa Avenida Guararapes de tempo cada vez mais curto.
João Vitor Pascoal
Repórter
João é estagiário do Diario há quase dois anos, com passagem por Política e, atualmente, no projeto CuriosaMente, da célula de dados do jornal. Passa todos os dias pela Avenida Guararapes, mas nunca parou para engraxar os sapatos.
Rodrigo Silva
Fotógrafo e videografista
Julio Jacobina
Fotógrafo