Quilombos: luta pela terra à luz da Justiça
Comunidades de descendentes de negros escravizados resistem no Grande Recife contra ação que será votada em 16 de agosto de 2017 no STF e pode lhes tirar direito sobre as próprias terras
Por Larissa Lins (reportagem) e Rafael Martins (fotografia)
Quando Maria José de Fátima da Silva Barros deixou a Região Metropolitana do Recife pela primeira vez, para participar de encontro de comunidades quilombolas no Sertão pernambucano, prometeu à família que não revelaria seu nome verdadeiro ou a localização da comunidade Onze Negras, assentada no Cabo de Santo Agostinho há quatro gerações. Terra não se entrega, nem se vende, lhe ensinaram os mais velhos. Por muitos dias, a agricultora de 58 anos cessou comunicação com parentes e se apresentou com nome inventado a quem cruzasse seu caminho. Temia encontrar homens brancos, sobretudo ricos e letrados, que poderiam, ela desconfiava, “maquinar algo suspeito” por trás daquela convenção. “Tínhamos medo de ser escravizados outra vez. Morreríamos sem revelar onde morávamos”, lembra dona Fátima, hoje líder da Onze Negras, comunidade descendente de negros escravizados em engenhos de cana-de-açúcar. Outra vez receosa, ela embarca neste fim de semana para Brasília, onde acompanha votação do Supremo Tribunal Federal que pode, na próxima quarta-feira (16), pôr em risco a titulação de posse das terras ocupadas por comunidades indígenas e quilombolas em todo o país.
Em pauta, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 3239 contra o Decreto nº 4.887/03, que regulamenta “o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos”. Na prática, o instrumento legal que garante direito à posse do espaço ocupado por essas comunidades. Proposta em 2004, pelo Partido da Frente Liberal (PFL, hoje Democratas/DEM), o texto entrou em votação há cinco anos e conta com um voto a favor (do ministro-relator Cezar Peluso) e um contrário (da ministra Rosa Weber) à inconstitucionalidade. Para Fátima, cujo destino ela sempre temeu se determinar nas mãos de brancos, ricos e letrados, a votação ameaça a garantia à terra – fonte de segurança e renda para grupos, majoritariamente, de pescadores, agricultores e artesãos.
“Vivemos esquecidos, mesmo tão perto da capital. Imagine se suspenderem nossa luta pela titulação? E se tomarem as terras? Vamos ser massacrados e ninguém vai saber”, teme. Diz preservar, com a própria vida, se preciso for, a documentação de posse do terreno ocupado por seu povo. A papelada é guardada pela irmã, Maria José do Carmo da Silva, 65, uma das fundadoras da associação de mulheres que dá nome à comunidade, a Onze Negras. O território, registrado pelos avós delas, escravos foragidos, e localizado a 35 Km do Recife, ainda não foi titulado pelo Incra – daí a insegurança das matriarcas. Das mais de 200 comunidades reconhecidas como quilombolas no estado, 140 têm certificado (que comprova sua existência), mas apenas duas possuem títulos (que formalizam a posse da terra): Conceição das Crioulas, em Salgueiro, no Sertão Central, e Castainho, em Garanhuns, no Agreste – mas nem mesmo elas foram tituladas em toda a sua extensão.
O cenário e os temores se agravam em comunidades como a Ilha de Mercês, em Ipojuca, onde 213 famílias descendentes de negros escravizados vivem em completa informalidade e ainda mais desassistidos. Para levar os filhos à escola, os quilombolas têm que custear o pedágio cobrado pelo acesso à PE-009, principal rota para o Litoral Sul. Os R$ 7 diários lhes custam um punhado de peixes, hoje, dizem eles, ainda mais escassos nos rios e manguezais, após a chegada do complexo industrial de Suape.
“Se tivéssemos a titulação das terras, poderíamos brigar pelo direito ao principal acesso à nossa casa, em vez de pagar todos os dias para ir à cidade, onde estão as escolas e os hospitais. Se decidem suspender os processos de titulação, tudo fica ainda mais difícil. Podem derrubar nossas casas, suspender a água, a energia elétrica… ficamos sozinhos, sem garantias, nem proteção”, pondera o pescador José Reis da Silva, o “Martins”, 45 anos. “A terra é nossa carta de alforria. Perder a terra é perder tudo, não temos meio de viver fora daqui”, pondera o homem que também desembarca em Brasília neste fim de semana para acompanhar votação no STF.
Para o desembargador federal Francisco Queiroz Bezerra Cavalcanti, contudo, há grande possibilidade do Decreto nº 4.887/03 ser considerado, ao menos parcialmente, inconstitucional. Para ele, o cenário ideal se estabeleceria caso a maioria dos ministros registrasse voto semelhante ao da ministra Rosa Weber – que apresentou voto em 2015, se posicionando contrária à inconstitucionalidade, mas defendendo o estabelecimento de um marco temporal para a demarcação e titulação de terras.
O marco também entrará em debate no Supremo nesta quarta-feira e prevê que apenas comunidades em posse de seus territórios em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição Federal, têm direito à titulação.
quilombos no Brasil
comunidades cerficadas pela Fundação Cultural Palmares
comunidades certificadas no estado
quilombos em PE
processos de regularização fundiária abertos junto ao Incra
processos do estado no Incra
“É algo concreto, importantíssimo. Com a maioria dos ministros se manifestando contrária à inconstitucionalidade e favorável ao marco temporal, está assegurado o direito dessas comunidades à terra, seu resgate histórico, mas com propriedade. Sem o marco, corre-se o risco de serem criadas inúmeras novas comunidades, autoproclamadas quilombolas, sem serem, de fato, remanescentes de quilombos. Surgiriam muitos oportunistas. E o país não pode ser transformado num país de guetos, segmentado”, avalia Cavalcanti, sugerindo que o decreto possa ser reeditado.
Moradores das comunidades quilombolas e associações como a Comissão Pastoral da Terra (instituição civil sem fins lucrativos que atua em conflitos agrários, em defesa de grupos como os indígenas e os quilombolas), contudo, se mantêm cautelosos. “O panorama atual é muito ruim. Politicamente, qualquer segmento que não esteja servindo ao capital está desprotegido. A grande maioria das ações de titulação está há anos em tramitação. Pouquíssimas foram formalizadas. E nosso principal temor é que os processos em andamento sejam suspensos e não tenham volta. O marco temporal atinge todos que se reconhecem quilombolas e estão tentando resgatar terras que são suas por tradição, não necessariamente ocupadas em 1988. Não podemos perder o pouco que restou dos nossos ancestrais”, opina Antônio “Crioulo” Gomes de Morais, coordenador da articulação estadual quilombola.
“A gente não quer dinheiro, não quer indenização. A gente quer a terra. Só os baobás sabem quando nasceu o quilombo de Mercês. Imagine perder essa tradição, junto com a terra, nossa fonte de trabalho e de vida?”, questiona o morador mais velho da Ilha de Mercês, Manoel Deodato da Silva, 85 anos. Oito filhos, dez netos e mais de 20 bisnetos dele viviam na comunidade, tendo alguns sido indenizados pelo complexo de Suape a fim de deixarem a região, vivendo hoje em condições precárias no distrito de Nossa Senhora do Ó, também em Ipojuca. Manoel crê que, longe de casa, um quilombola não vive. “Morre de fome, doença ou tristeza. É só questão de tempo”.
UMA PERGUNTA:
Afinal, o que muda com a votação do Decreto n° 4.887/03?
Segundo o desembargador federal Francisco Queiroz
Se for negada a inconstitucionalidade, seguem as titulações normais, os procedimentos hoje existentes. Mas, é pouco provável. Não acredito que o decreto será considerado constitucional. Creio que, no máximo, será parcialmente constitucional. Manter o decreto original pode causar uma “explosão” de novas comunidades autointituladas quilombolas e, diante disso, os recursos vão faltar. É um desfavor aos quilombolas reais. Após a votação, as pessoas veriam uma nova oportunidade de adquirir terras para plantar e viver sem custos adicionais. Há muitas titulações em processo, muitas. Seriam muitas mais. A FUNAI, por exemplo, estourou mais de 700 titulações com homologação pendente no Ministério da Justiça. Surgirão muitas comunidades alegando-se quilombolas. É preciso entender que o equilíbrio entre politicas é muito delicado. Por isso, penso que o resultado mais razoável seria o da ministra Rosa Weber. Constitucionalidade com marco temporal. Evitaria, a meu ver, com a licença da expressão, a “fabricação” de mais e mais comunidades.
Segundo Mariana Vidal Maia, advogada da Comissão Pastoral da Terra
O Decreto 4.887/03 regulamenta o procedimento administrativo de desapropriação para titulação desses territórios, que são um direito previsto no art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição Federal, que diz “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. A promulgação desse Decreto no ano de 2003 significou uma imensa vitória na luta das comunidades quilombolas, porque possibilitou a efetivação do direito à moradia, à alimentação, ao trabalho livre, à identidade, à preservação da cultura, costumes e tradições, à moradia e à própria dignidade da comunidade. É pressuposto básico para a sobrevivência das comunidades quilombolas e para a sua reprodução cultural a garantia do seu território. Uma eventual declaração de inconstitucionalidade violará a constituição ao impedir que o Poder Público execute atos administrativos tendentes a efetivar esse direito contido no art. 68 do ADCT, fazendo com que o direito ao território e os demais direitos fundamentais dele decorrentes (como moradia, alimentação, saúde, etc.) fiquem sem qualquer efetividade.
Esse é o hoje: quem é afetado?
A força de uma mulher negra
O sonho de Dona Fátima era ter um relógio de pulso. A líder da comunidade quilombola Onze Negras, estabelecida a 35 Km do Recife, era uma criança quando começou a trabalhar em casa de família na capital. Não sabia ver as horas. A patroa, uma mulher branca de classe média, desenhava relógios com os horários em que Fátima deveria medicar as crianças: comparando os desenhos com os ponteiros do relógio pendurado na parede da cozinha, Fátima deveria saber o momento do dia prescrito para os remédios. Era uma luta. “Mas eu não tenho medo de luta, eu tenho medo da escravidão”, conta.
Diz isso porque não se esquece, nem por um dia, da história de sua avó, Maria Conceição da Silva, conhecida entre os quilombolas como Mãe Velha. Muito antes de Fátima chegar ao mundo, Mãe Velha também foi levada a uma casa de família branca, aos 12 anos, para trabalhar. Pensava que cuidaria das crianças, como fez Fátima a seu tempo. Mas não teve essa sorte: mantida isolada dos outros escravos, era estuprada repetidamente pelo patrão. Sofreu um calvário – que nunca pôde descrever com as palavras, embora fosse “falastrona” – até o dia em que um homem conhecido como Pedro Mulato, apaixonado à primeira vista por ela, lhe propôs um plano de fuga. Foi na mata, nos arredores de onde hoje se aponta o Cabo de Santo Agostinho, na RMR, que Conceição e Pedro Joaquim da Silva se refugiaram dos cachorros, cavalos e capitães do mato postos atrás deles. Lá, escondidos do mundo, deram à luz os próprios filhos e acolheram escravos velhos e debilitados, fazendo nascer a semente de Onze Negras – cujo nome foi criado por mulheres, muitos anos mais tarde, inspiradas no time de futebol masculino Onze Negros, diversão de seus maridos entre os turnos de corte da cana.
Em Pernambuco
Segundo a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, apenas 5 títulos foram emitidos para comunidades no estado. E eles representam apenas 2 povoados: em Salgueiro (Conceição das Crioulas) e Garanhuns (Castainho), ainda assim, não tituladas em todo o seu território.
Também em pauta
O STF julga, ainda no dia 16, três ações decisivas para a titulação de terras para os povos indígenas – o Parque Indígena do Xingu (MT), a Terra Indígena Ventarra (RS) e as terras dos povos Nambikwara e Pareci (RR e MT) -, sendo levada em conta, também nesta discussão, a tese político-jurídica do marco temporal.
Mãe Velha, uma das onze negras fundadoras da comunidade como se conhece hoje, nunca esqueceu, nem deixou esquecerem, a escravidão. Tornou-se parteira e trouxe ao mundo muitos dos homens e mulheres que hoje ocupam o território para onde fugiu com o marido. Sabia dizer se as barrigas trariam meninos ou meninas, acelerava os trabalhos de parto com café e manteiga, curava os maus olhados com simpatias e jamais saiu da comunidade – a não ser para encontrar a morte, como previra, num hospital da capital. A força de Mãe Velha é evocada pelas mulheres mais idosas de Onze Negras, que abatem galinhas e costuram bonecas de pano enquanto mandam as filhas à escola para “uma sorte melhor.” As mais novas reverenciam as memórias, como faz a estudante e dançarina Laís Medeiros, de 21 anos, engajada com a dança negra e a preservação cultural dos descendentes de escravo. Mãe Velha, conta Dona Fátima, é quem sabia das coisas: a força da mulher negra, ela dizia, deve passar de geração a geração, único modo de manter viva a luta de seus ancestrais.
Larissa Lins
Repórter
Larissa é jornalista formada pela UFPE, com passagem pelas editorias de Cultura e Social, do Diario. É apaixonada pelos relatosde gente, sejam eles do ontem ou do hoje – aqueles que servem documentam a história enquanto ela ocorre…
Rafael Martins
Fotógrafo
Rafael é fotógrafo do Diario de Pernambuco desde 2015. Já cobriu histórias em todas as áreas do estado, com destaques para histórias de cunho social que envolvem ricos, pobres, indígenas, imigrantes e, agora, quilombolas.