Discreto e misterioso, Vale do Amanhecer chega a 50 templos em Pernambuco
Com crenças de raízes indígenas, africanas e envolvendo vida em outros planetas, doutrina opta por discrição para alcançar 50 templos no estado
É tarde de uma quarta-feira, dia de movimento fraco, e algumas dezenas de pessoas se sentam ao lado direito da porta de entrada de um grande templo, logo após uma elipse metálica, com cerca de quatro metros de comprimento, com um desenho estilizado e colorido da cabeça de um jaguar. São pacientes. Após algumas ladeiras e quilômetros na Cidade Tabajara, chegaram – por problemas familiares, de saúde, financeiros, espirituais, existenciais, ou qualquer outro que os afligem – ao Olinda do Amanhecer, templo precursor do Vale do Amanhecer no Nordeste, fundado em 1975 e, até hoje, um dos mais grandiosos entre os quase 50 erguidos em Pernambuco. E saem sem promessas. Apenas com conselhos dados por pretos velhos, entidades de matriz africana, que, incorporadas aos médiuns da casa, procuram dar clareza para quem, na aflição, enxerga tudo turvo e nublado.
Inicialmente, o que chama a atenção é o isolamento, numa alta área de sítios de Olinda. Mas nos dias de maior movimento, aos finais de semana, os pacientes chegam às centenas. No enorme terreno de terra batida onde está inserido o templo e demais construções do Olinda do Amanhecer, pessoas com vestimentas pouco usuais caminham. Os homens, chamados de jaguares, em sua maioria vestem uma espécie de colete sobre uma blusa preta ou branca. No colete, há uma faixa roxa, representando a cura, e amarela, remetendo ao conhecimento, além da identificação de quem as veste.
Nas ninfas, como são chamadas as mulheres, as vestimentas são as mais variadas. Vestidos vermelhos, azuis, amarelos, todos decorados com bijuterias e babados.
Alguns trajam capas e os que foram iniciados recentemente vestem roupas mais discretas, batas brancas com alguns detalhes em cores. “As vestes têm por objetivo tirar as diferenças de fora. Todos são iguais. As diferenças sociais são despidas, ficando evidente apenas a atuação dentro da doutrina”, explica Zilcio Sales, presidente do templo, ressaltando que as pequenas diferenças nas roupas é também a identificação do patamar em que o médium está, uma espécie de patente.
Números
– 677 templos espalhados pelo Brasil
– 47 estão sediados em Pernambuco
– 1975 foi o ano da inauguração da religião no estado, em Olinda
– 10 mil médiuns já teriam passado pelo local desde sua fundação
– 20 falanges missionárias fazem parte da doutrina, cada uma regida por uma entidade
Todos se encaminham ao templo revestido por pedras, onde uma médium, de punhos cerrados, incorpora um espírito sofredor. Atrás dela, um doutrinador auxilia no encaminhamento dele à luz. Os punhos cerrados ganham a companhia do choro e da expressão de esforço. Seu trabalho naquele momento é lidar com os espíritos desencarnados e amenizar seu sofrimento. Na mesma mesa triangular em que ela se encontra, outros nove médiuns executam a mesma tarefa. “Nossos médiuns são treinados a controlar o que recebem. A incorporação realizada aqui é consciente. Se um espírito chega e começa a xingar, chutar tudo, os pacientes ficariam assustados”, aponta Zilcio.
No templo, os pacientes fazem longas fileiras, sentados em bancos de cimento pintados com cores vivas. Amarelo, vermelho, verde, azul, roxo misturam-se numa espécie de labirinto, característica comum à maioria dos locais de trabalho da doutrina. Nas paredes do salão principal e nas salas em seu interior, as cores da parede se somam às diversas imagens de entidades, como caboclos, faraós, ciganas, além do destaque para a fundadora, Neiva Chaves Zelaya, a Tia Neiva.
Criada em 1959, em Goiás, a doutrina tem como base a viúva, caminhoneira, mãe de quatro filhos e falecida em 1985. Ela teria descoberto, a contragosto, ter a capacidade de comunicar-se com espíritos, podendo, inclusive, sair do próprio corpo e vivenciar outras dimensões. Na crença do Vale do Amanhecer, ela foi escolhida por Pai Seta Branca, espírito mentor da doutrina, para aplicar todos os ensinamentos existentes hoje, tornando-se mãe clarividente e mentora espiritual dos atuais praticantes da vertente religiosa.
O Vale do Amanhecer mistura entre suas crenças elementos de diversas matrizes, como a africana, de onde vem espíritos de luz como pretos velhos e caboclos, e as referências a orixás como Iemanjá, apesar de negar qualquer associação com a umbanda ou o candomblé. Da chamada corrente indiana do espaço, vem a ligação aos antigos mestres tibetanos. E ainda há influências egípcias, gregas, além de crenças que chegam até a vida extraterrestre. A mistura converge em um princípio simples: o uso da mediunidade em socorro ao próximo.
Viúva, mãe de quatro filhos e motorista de caminhão, sem religião alguma, Neiva Chaves Zelaya era uma mulher comum. Aos 33 anos, porém, passou a ter diversas experiências paranormais e extrassensoriais para as quais não encontrava explicações. Entrou para o espiritismo, mas, sem resolver seus problemas, se isolou. Esclareceu sua situação ao seguir as orientações dos espíritos e iniciar a implantação do Vale do Amanhecer.
“O evangelho do Vale prega amor, tolerância e humildade, acreditando na evolução espiritual pela reencarnação. Os seus rituais, coloridos e elaborados, consistem no auxílio gratuito dos médiuns e seus espíritos evoluídos aos pacientes em busca de equilíbrio e cura. Percebe-se, então, que essa religiosidade contém elementos de várias outras religiões: além do cristianismo, kardecismo, umbanda e candomblé, esoterismo e ‘nova era'”, aponta o doutor em teologia e professor da Universidade Católica de Pernambuco Gilbraz Aragão.
“Percebe-se, então, que essa religiosidade contém elementos de várias outras religiões: além do cristianismo, kardecismo, umbanda e candomblé, esoterismo e ‘nova era'”
“Apesar de semelhanças, não somos kardecistas, nem de umbanda, o que nos une é a ciência que originou todas as religiões”
Os membros do Vale, porém, apesar de reconhecerem as semelhanças, tratam a doutrina como algo que segue o seu próprio caminho. “Apesar de semelhanças, não somos kardecistas, nem de umbanda, o que nos une é a ciência que originou todas as religiões”, resume Zilcio Sales, adjunto parlo em Olinda e filho de Zilda e Inácio Sales, matriarca e patriarca da doutrina em Pernambuco.
Mediunidade globalizada
Pai Seta Branca aparece nas imagens e estátuas presentes no templo como um caboclo, mas, na crença de seus seguidores, em outras vidas já teria sido faraó e até São Francisco de Assis. Os adeptos do Vale do Amanhecer acreditam em Deus e em Jesus, mas não são cristãos – se dizem “crísticos”. Creem que Cristo foi um homem que deixou exemplos que devem ser seguidos, mesmo que não seja o salvador. “O nosso mentor não aceita aquele Jesus sangrando na cruz. A humanidade se sensibiliza com o sofrimento. Aqui a gente não se sensibiliza com o Jesus sangrando, mas com os exemplos que ele deixou, que é o mais importante”, afirma Zilcio Sales, presidente do Olinda do Amanhecer.
O Vale do Amanhecer foge do convencional. Desde a complexidade de suas crenças, passando pelas vestes e pelos hábitos costumeiros de outras religiões. Não impõe aos seus seguidores dogmas, livros sagrados, documentos escritos, revelações ou profetas. Tenta excluir de seus preceitos qualquer crença imposta por fé e medo. A manutenção dos templos se dá por contribuições dos médiuns – dinheiro ou presentes dos pacientes são rechaçados.
Pacientes estes que, no futuro, podem tornar-se médiuns e ajudar novos pacientes. “Cremos que todos aqui já passamos pelo Egito, Roma, Grécia em outras encarnações. Fomos preparados no passado e temos uma herança transcendental, precisamos nos redimir dos erros cometidos ajudando o próximo”, resume Zilcio.
Relação interplanetária
O Vale do Amanhecer crê em um sistema planetário chamado Capela, onde há uma civilização que interfere na vida da Terra. De acordo com Tia Neiva, eles atuam ajudando os humanos, tendo, por exemplo, construído as pirâmides do Egito. Os capelinos teriam sido vistos por ela em um dos seus “desdobramentos” (quando o espírito saía do corpo físico). Esses seres teriam entre três e quatro metros de altura e a capacidade de vir à Terra encarnar nos médiuns como mentores, fazendo uma parada antes na Lua, onde haveria uma base de desintegração que os deixa em estado etéreo. Há a crença de que um planeta gigantesco se aproximará da Terra e muitos espíritos serão recolhidos por ele. Os eventos que culminarão com isso tiveram início em 1984 e só reencarnaram na Terra espíritos redimidos, sem maldade.
Uma aposta para fugir da depressão
Selma Machado tinha 31 anos de idade quando perdeu seu único irmão. Até completar 42, conviveu com a depressão. Resistiu o quanto pode até entender que o que sentia seria fruto de mediunidade. “Eu vivia com pensamentos compulsivos. A mediunidade quando atua é uma doença muito séria. Se eu não tivesse aqui, há uma grande chance de eu estar em um manicômio”, afirma esbanjando certeza. Talvez motivada pelas experiências que teve desde a infância.
Com sete anos de idade, garante ter visto por várias vezes o espírito de um homem tentando levá-la. Com o tempo, sentia uma enorme negatividade. “Bastava alguém me dizer algo que eu não gostasse e aquilo ficava na minha cabeça, não pensava em outra coisa. Depois eu entendi que não era eu pensando”, lembra. Na doutrina do Amanhecer, encontrou um caminho. Hoje, aos 62, é mestra da casa, após todos os passos iniciáticos realizados. Passou a conviver de forma pacífica com os vultos que vez por outra enxerga e com as presenças que sente. “Aqui, aprendi a controlar a minha mediunidade. Pra mim, isso aqui é um pedacinho céu, salvou a minha vida”.
Uma questão de energia
Tudo é energia. E os trabalhos são realizados por meio da sua manipulação através da mediunidade, capaz de contatar dois planos distintos. O ectoplasma é o responsável pelo contato, muitas vezes produzindo efeitos sem o controle das pessoas. Os que têm conhecimento dessa energia são os médiuns. Um novato pode tornar-se médium, sendo treinado para desenvolver sua mediunidade – quanto mais prática, mais aprimorado fica.
Para Geiza Ferreira Gomes, o caminho foi semelhante. A depressão não dava trégua. Passava seus dias entre o hábito de costurar e a compulsão do choro, fora de controle. A enfermeira do Hospital da Restauração é, junto ao marido, responsável pelo templo da doutrina em Itapissuma, na Região Metropolitana do Recife. A mudança ocorreu há nove anos, após conhecer o Vale do Amanhecer. Antes disso, era católica, sequer admitia o espiritismo, menos ainda outras religiões menos difundidas.
“Mas aprendi que não são todos que nascem para serem católicos ou evangélicos. E a gente não pode negar quando recebemos um chamado. Deus é ecumênico. Ele não faz distinção de religião”.
Na doutrina, aprendeu que cada pessoa tem uma transcendência, que acarreta karmas espirituais, assimilados no auxílio ao próximo. “Quando cheguei aqui, só fazia chorar, agora enxergo todas as cores que antes não via. Jesus diz que ‘na casa do meu pai há muitas moradas’ e é verdade. Uns se encontram na igreja, outros no terreiro e outros no Vale do Amanhecer”.
Trabalhos realizados no templo
Tronos – O médium com um preto velho incorporado, acompanhado por um doutrinador escuta problemas contados pelo paciente. O espírito de luz aconselha, consola e afasta espíritos sofredores e correntes negativas que estavam com o paciente.
Cura – Etapa voltada para a cura física do paciente.
Indução – Afasta correntes negativas de inveja e ciúme
Junção – Libertação dos espíritos chamados elítrios, cobradores que perderam forma humana
Linha de passe – Paciente recebe passe final de médiuns incorporados com caboclos, que transmitem energias das matas e das cachoeiras.
Oráculo – Pai Seta Branca incorpora, sem dar mensagens, mas manipulando energia em favor dos médiuns.
Cruz do Caminho – Trabalho ligado ao Egito e Grécia, direcionado ao médium, para recebimento de energia e ajudar os outros. Nesse trabalho incorpora Mãe Iemanjá.
O surgimento que permeia a crença
A construção do Vale do Amanhecer, em 1959, acompanha o surgimento da capital federal, Brasília, um ano depois, quando o Distrito Federal abrangeu a hoje cidade-satélite de Planaltina. Naquele contexto, de acordo com o doutor em teologia e professor da Unicap, Gilbraz Aragão, a doutrina cresce, sobretudo, diante da insatisfação dos migrantes que largaram a família em busca de renda na construção da cidade. Serve como local de aconchego mágico e orientação moral. “O Vale tem relação com as experiências migratórias, sobretudo de nordestinos, que foram trabalhar nos canteiros da futura capital brasileira.
Trata-se de uma religião exuberante em cores e toques, em contraste com o cinza empoeirado do avesso da modernidade, que os nossos candangos experimentaram lá naqueles confins. Mas é uma religião moderna, que gosta de se afirmar mais como ‘doutrina’, à qual as pessoas aderem com muita liberdade, por convicção”.
Aragão aponta também que Brasília foi muito mais que uma sede para o Vale. Como religião, a doutrina se inspira no que era idealizado para o local como cidade naquele momento. “Ela é inclusiva como almejava Brasília, junta os pretos-velhos e caboclos dos grotões com a crença moderna na aparição de extraterrestres. É uma grande síntese da reencarnação oriental com o amor ocidental, do espiritualismo indígena com o espiritismo moderno, do trato com os espíritos mas por corpos cheios de expressão e performance, em cerimônias que ativam todos os sentidos e mais alguns”, explica.
Transporte consciente
Entre as capacidades que chamavam a atenção em Tia Neiva, estava a habilidade de sair do corpo conscientemente, deixando-o em estado de suspensão, semelhante ao sono natural. Entre 1959 e 1964, ela “viajava” ao Tibete todos os dias para receber instruções do mestre Humahà. Ela seria capaz também de transportar-se para vários planos para receber instruções do Pai Seta Branca.
“Como dizia dom Helder, todos os templos apontam para o céu: se você fica olhando só o templo, perderá o céu estrelado”
Diante de toda essa complexidade e das peculiaridades que o compõem, o Vale do Amanhecer acaba sendo vítima de preconceito, apesar de a queixa maior ser focada nos boatos. “As pessoas às vezes se apegam a uma parte da doutrina que aborda os extraterrestres e tentam nos tornar lunáticos que estão esperando um disco voador”, exemplifica o presidente do Olinda do Amanhecer, Zílcio Sales, apontando que o isolamento preferencial dos templos também tem a ver com uma maior liberdade para exercer todos os seus costumes.
Para Gilbraz Aragão, o mais importante é entender que as religiões normalmente se inspiram em outras apesar de contarem com diferenças. Sobretudo, respeitar a diversidade e focar nas experiências de transcendência humana que são comuns entre elas. “Como dizia dom Helder, todos os templos apontam para o céu: se você fica olhando só o templo, perderá o céu estrelado”.
João Vitor Pascoal
Repórter
João Vitor é jornalista formado pela UFPE. Escreve para o Diario desde 2014, com passagem pela editoria de Política.
Igo Bione
Fotógrafo e videografista
Igo Bione é fotógrafo do Diario de Pernambuco desde dezembro de 2016.