A origem do judaísmo em Pernambuco

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Comunidade israelita participa da vida pernambucana desde a época da Colônia, com tradição cultural e religiosa preservada

Mais que uma religião, o Judaísmo está vinculado à história de um povo que se constituiu em nação há três mil anos. Atualmente, a Federação Israelense de Pernambuco (FIPE) estima que são cerca de 1,5 mil judeus vivendo no estado – a grande maioria deles mora na capital, exercendo pequeno impacto no cotidiano da cidade. Cenário bem diferente do encontrado no século 17, quando a população judaica no Recife era similar à de hoje, porém em uma província com pouco mais de 10 mil habitantes.

Para entender as origens da comunidade judaica local, o Diario conversou com o economista e membro da FIPE Jáder Tachlitsky. Ele explicou que o primeiro fluxo migratório de judeus que chegou ao Recife ocorreu no século 17 e trouxe pessoas oriundas da Península Ibérica. “Elas fugiam da inquisição religiosa. Em Portugal, houve conversão em massa de judeus ao cristianismo por esse motivo. Eles passavam a ser chamados de cristãos novos”, explica.

Os cristãos convertidos e os que fugiam da conversão chegavam ao Recife e praticavam os ritos e costumes judaicos dentro de casa para evitar a acusação de heresia. A conversão e as práticas às escondidas não eram uma escolha, os criptojudeus – como ficaram reconhecidos aqueles que praticavam suas crenças de forma velada – tinham a morte na fogueira em praça pública como destino certo caso fossem de encontro à inquisição.

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Perfil

Atualmente são cerca de 1500 judeus em Pernambuco. Para ser judeu, é preciso ser filho de mãe judia ou ter se convertido ao judaísmo.

O pesquisador da história judaica Odmar Braga aponta que antes mesmo da primeira grande migração, ocorrida no século 17, já ocorria a chegada de “cristãos novos hispano-portugueses” em solo pernambucano. “Duas sinagogas existiram entre 1580 e 1595. Uma no Alto da Ribeira e outra no engenho Camaragibe, de propriedade da mesma família”, explica. No século 17, entretanto, as invasões holandesas mudaram, ainda que momentaneamente esse cenário. “A Holanda era um país calvinista, defensor de matizes religiosas diversas. Isso possibilitou a prática do Judaísmo com liberdade no Recife entre 1630 e 1654. Sai de cena o português inquisidor e entra o holandês tolerante”, ensina Tachlitsky.

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Conversão

O processo de conversão pode demorar até dois anos de estudos da história e cultura judaicas e um pouco da língua hebraica. Ao final desse período, a pessoa participa de um Beit Din (espécie de tribunal rabínico), composto por três membros que irão avaliar se o indivíduo se encontra apto a se incorporar ao Judaísmo.
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Tradições

Aos 8 dias de vida, os meninos judeus passam pela circuncisão, que consiste na retirada do prepúcio do pênis. Aos 13, esses meninos participam do Bar Mitzvah, que marca a “maioridade religiosa”. A das meninas ocorre aos 12 anos, no Bat Mitzvah.

Após a chegada dos holandeses, e a consequente liberdade religiosa, Braga relata que os remanescentes das sinagogas do Alto da Ribeira e de Camaragibe, juntamente com seus filhos, circuncidaram a si próprios e fundaram a Sinagoga Manguén Abraham.“Posteriormente, eles também foram responsáveis pela fundação da Sinagoga Kahal Zur Israel”, conta.

A pesquisadora e fundadora do Arquivo Histórico Judaico de Pernambuco, Tânia Kaufman, conta que com o domínio da Holanda, esse contingente judeu de origem ibérica, chamado de sefaraditas, ao contrário dos cristãos novos que chegaram na cidade no início da colonização, não precisam ocultar suas crenças. Eles já encontraram no Recife uma atmosfera judaica. “Começaram a desfrutar da proteção do governo de João Maurício de Nassau e privilégios da elite social e econômica existente na época”, detalha.

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Diante do cenário favorável, a imigração de judeus atingiu seu ápice. Odmar Braga relata como auge a chegada do rabino Isaac Aboab da Fonseca, que tinha o nome católico de Simão da Fonseca e estudou para se tornar rabino após sua família fugir para Amsterdã. Tânia Kaufman aponta este acontecimento como sinal de que os judeus começaram a fincar raízes na cidade, ao ponto de viabilizar o primeiro rabino das Américas “É nessa época também que é construída a primeira Sinagoga das Américas (Kahal Zur Israel), ocupando um dos casarões da Rua do Bom Jesus, então chamada de Rua dos Judeus”, destaca Kaufman. A construção da sinagoga foi iniciada em 1638 e concluída em 1641.

Crenças

Os judeus acreditam no Torá, conjunto dos cinco primeiros livros da Bíblia, que teriam sido revelados por Deus a Moisés e não poderão ser modificados. Eles creem ainda que Deus nunca possuiu um corpo físico, que não há necessidade de intermediários para o contato com Deus. Jesus teria sido apenas um homem, não um salvador.

O período holandês, apesar de produtivo para os judeus, foi curto. Pouco mais de 20 anos depois, os portugueses retomaram o domínio da colônia, gerando uma migração em massa para o interior do estado – sobretudo o Sertão, onde era mais fácil manter os hábitos judaicos. Lá estariam fora do alcance da inquisição portuguesa que, vez por outra, fazia incursões com o objetivo de perseguir hereges para, posteriormente, levá-los a Portugal para que fossem julgados pela Santa Inquisição. “Diante do elevado número de judeus que viviam em Pernambuco e o espaço físico reduzido das embarcações daquele tempo, muitos não conseguiram sair do país e decidiram permanecer no Sertão e outras localidades além da fronteira de Pernambuco”.

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A segunda migração e o bairro da Boa Vista

Pernambuco entrou novamente na rota dos judeus no final do século 19 e nas primeiras décadas do século 20. Dessa vez, como destino dos que fugiam de perseguições realizadas na Europa, sobretudo no Leste do continente. O próprio Jáder Tachlitsky tem na família histórias dessa migração. Seus avós vieram da Ucrânia fugindo da perseguição promovida pelos czares russos na região. “Hitler não criou a perseguição aos judeus, mas ele a levou a um patamar mais extremo, matando milhões de pessoas. Antes, os judeus já eram perseguidos pela Europa”, aponta Tachlitsky.

Esses judeus, que recebiam o nome de ashjenazitas, chegaram na cidade com status diferente dos vindos na primeira migração, que se consolidaram como elite recifense. Tanto o bisavô como os avós do economista trabalharam no comércio informal na capital pernambucana. “Chegaram em situação difícil. Eles percorriam bairros mais isolados na época, como Beberibe e Casa Amarela, e faziam venda de mercadorias a crédito, parcelada em 10 a 15 vezes. Assim, prosperaram”, relata.

Ele afirma que, por conta do histórico de perseguições, os judeus mantinham o hábito de viverem próximos uns aos outros, algo que se manteve no bairro da Boa Vista até a década de 70. “O bairro era sede da sinagoga, do Clube Israelita e do Colégio Israelita. Havia esse costume de ter tudo sempre por perto. A Praça Maciel Pinheiro, por exemplo, era um ponto de encontro da comunidade judaica”, frisa.

1° Sinagoga

Localizada na Rua Martins Júnior, no bairro da Boa Vista, a Shil Sholem Ocnitzer ou Sinagoga Israelita do Recife foi inaugurada em 20 de julho de 1926. Atualmente, o local não recebe mais encontros religiosos.
1° Sinagoga do Recife - Marcela Cintra/Esp.DP

O resultado é que a segunda comunidade se inseriu no Brasil pelas camadas menos privilegiadas da sociedade, conforme explica Tânia Kaufman. “Os primeiros contatos foram com pessoas de menor poder aquisitivo através de relações comerciais. Rapidamente, os judeus tiveram êxito e se tornaram comerciantes de pontos fixos no bairro da Boa Vista”, avalia. Em seguida, foram se estabelecendo em casas comerciais concentradas na Rua da Imperatriz Tereza Cristina e adjacências. Espaço que era ocupado tanto para o comércio, quanto para o uso residencial.

Boa Vista

O bairro do Centro do Recife concentrava as moradias de judeus no Recife até a década de 70. De acordo com Tachlitsky, a Praça Maciel Pinheiro era uma espécie de ponto de encontro. A casa da escritora Clarice Lispector, que era judia, está localizada nas proximidades da praça.

Curiosidades

Verruga no dedo

A crendice de que uma verruga aparece no dedo de quem apontar para uma estrela vem dos judeus. As crianças ficavam ansiosas pelo pôr do sol, para o início do Shabat (dia santo). Porém, em tempos de inquisição, o hábito passou a ser usado para identificar judeus e, consequentemente, recriminado pelas mães, que utilizavam a verruga para assustar as crianças. 

Nova York

Na tentativa de chegar território holandês, após a vitória portuguesa, um grupo de judeus embarcou no Recife com destino a Amsterdan, em 1654. Próximo ao Caribe, porém, o navio naufragou e apenas 23 sobreviventes chegaram ao pequeno povoado de Nova Amsterdã, instalando a primeira congregação judaica onde mais tarde foi fundada a cidade de Nova York.

Cemitério

O cemitério oficial dos judeus judeu no Recife, chamado oficialmente Cemitério Israelita do Barro, já está lotado. Localizado no bairro do Barro, na zona oeste da cidade, foi construído pelo Centro Israelita de Pernambuco. Atualmente, os sepultamentos são realizados no Cemitério Novo Israelita, em um lote do Cemitério Parque das Flores, localizado no bairro do Tejipió.

Resgate histórico e sentimental

Após reforma, a Sinagoga Kahal Zur Israel se transformou em um dos principais pontos de resgate histórico judaico da América. Recebe diariamente visitantes do Brasil e do mundo, como o doutor da Universidade de Manchester, Aron Sterk. Interessado em conhecer mais sobre a história judaica, o professor visitou o local pela primeira vez. “Desperta minha curiosidade por minha família ser de judeus que saíram de Portugal e da Espanha, na época da inquisição. Estou aqui para saber um pouco mais sobre o fluxo migratório judeu, que é minha área de pesquisa”, revela Sterk.

Dia sagrado

É chamado de Shabat e tem início ao se ver a primeira estrela no céu da sexta-feira, com final no entardecer do sábado

Dia do Perdão

Este ano, o Yom Kipur será celebrado no dia 12 de outubro. É um dia do calendário judaico marcado por reflexões.
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A história que é mostrada em museus necessita também do cotidiano para continuar viva. Criada em um lar judaico, a pesquisadora Beatriz Schvartz se dedica ao estudo e divulgação da cultura que ficou enraizada em sua vida e ainda aparece com a manutenção de alguns hábitos. “De acordo com o judaísmo tradicional, são 39 categorias de trabalho proibidas de serem realizadas no Shabat – o dia sagrado. Isso foi alterado com o passar do tempo, porém sigo com o hábito de não costurar aos sábados e acender as velas ao cair da noite da sexta-feira”, comenta.

Ela conta que passou para os filhos e netos os conhecimentos gerais do Judaísmo, além do estudo que tiveram na Escola Israelita, mas ressalta a importância do livre arbítrio dos herdeiros na manutenção da cultura judaica. “Eu creio que a preservação tem a ver com a fidelidade aos princípios básicos do Judaísmo – como a crença em um Deus único, indivisível e incorpóreo – e também com a participação das festividades e comemorações cívicas ligadas ao povo judeu”, defende.

Para o bacharel em Teologia e membro da comunidade judaica Carlos Maciel, o judaísmo conta com uma diferença em relação a outras religiões: não é adepto do proselitismo, ou seja, a tentativa de conversão de outras pessoas. “É preciso entender que o Judaísmo é uma religião de tradição familiar que tem por base uma herança e uma identidade que advém de valores familiares, algo que vai além de um sobrenome, apenas”, frisa Maciel.

Calendário

Carlos Maciel explica que o calendário judeu conta com 355 dias e, a cada três anos, acrescenta-se um mês, que é o mês de Adar-Sheni. Cada um desses três anos soma dos 10 dias, até totalizar o mês acrescentado após o período de três anos.
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Subdivisões

Atualmente, os judeus se dividem em cinco grupos: ortodoxos, conservadores, reformistas, reconstrucionistas e humanistas. Em Pernambuco, apesar da presença de grupos ortodoxos, a maior parte é formada por conservadores e reformistas.

Ano Novo

No calendário judaico, estamos no ano 5776. O Ano Novo, chamado de Rosh Hashaná, será celebrado no dia 3 de outubro. A celebração pede jejum de comida e água por 24 horas.

Ele destaca, porém, que não há nenhum tipo de restrição para quem quer se aproximar ou até se converter ao judaísmo. “Claro que há possibilidade de conversões. Mas, estas obedecem a critérios rígidos dos Rabinos. Entretanto, nunca houve proibições para quem deseja se aproximar do judaísmo, apesar de haver critérios a serem observados e seguidos por quem deseja frequentar alguma sinagoga”, conclui.

Entrevista: Sonia Schechtman Sette

Professora aposentada do Departamento de Informática da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Sônia Sette está em seu segundo mandato como presidente da Federação Israelita de Pernambuco, previsto para ser encerrado em 2017. Ao CuriosaMente, ela falou dos desafios para manter as tradições judaicas vivas e do comportamento da comunidade no estado.

Reprodução/Facebook
Comunidade

A comunidade, hoje em dia, apresenta uma certa dinâmica no que se refere a sua abrangência, Famílias partem para outros estados ou países, como na sociedade em geral; outras chegam e se inserem na comunidade; ainda, os casamentos trazem novos membros para o ambiente comunitário.

Heranças

Numa sociedade competitiva, como a nossa, que valoriza os aspectos materiais e o individualismo, é sempre um desafio colocar a cultura em um plano frontal. No caso da comunidade judaica, considerada como a do “povo do livro”, existe naturalmente uma forte relação com aspectos culturais, considerando tratar-se de tradição milenar. Mesmo assim, é necessário um esforço para resgatar o espírito coletivo e manter viva essa cultura.

Unidade

Por um lado, respeitando a diversidade no seio da comunidade e compreendendo que cada pessoa tem sua visão, seu pensamento sobre a vida e sobre a sociedade. Por outro, procurando potencializar os aspectos de base e comuns, relativos à tradição e aos valores judaicos, que se tornaram  universais.

Caminhos

O caminho para tal passa principalmente pelo fortalecimento da educação (formal e não formal), o que tem sido priorizado em nossa comunidade e vale lembrar que o Colégio Israelita estará em breve comemorando 100 anos de existência, única escola formal judaica do Norte e Nordeste do País. Outras estruturas e entidades garantem a possibilidade de se manter uma vida na tradição judaica, como sinagogas, o cemitério, e clubes. Nós também temos uma forte integração com instituições de outros estados, que propiciam um intercâmbio proveitoso. Ainda, a relação com parentes e amigos que vivem em Israel, bem como com instituições culturais e tecnológicas desse país contribui significativamente para o fortalecimento e manutenção da cultura judaica em nossa comunidade.

João Vitor Pascoal

João Vitor Pascoal

Repórter

João é repórter do Diario desde 2014. Como estagiário, escreveu para a editoria de Política, antes de compor a equipe de dados, no CuriosaMente.

Marcela Cintra

Marcela Cintra

Fotógrafa

Marcela é estagiária de Redes Sociais do Diario e integra a equipe de fotografia do jornal