Indústria da corrupção em Pernambuco movimenta mais de R$ 300 milhões por ano
Levantamento realizado junto às prestadoras de serviço do estado mostra rombo causado pela população com delitos “normalizados” no cotidiano de Pernambuco. Arte: Greg/DP
A indústria da corrupção movimenta mais de R$ 300 milhões por ano em Pernambuco. Apenas em perdas das duas maiores prestadoras de serviço, Celpe e Compesa, foram mais de R$ 245 milhões apenas em 2015. No mesmo ano, em multas e reduções de rendimentos, a Receita Federal buscou R$ 70 milhões em 11,7 mil declarações de imposto de rendas contestadas. No entanto, o buraco pode ser muito maior. Quando se fala em entrada irregular de mercadorias pelo Aeroporto Internacional do Recife, por exemplo, as perdas são consideradas imensuráveis, já que é inviável fiscalizar 100% das bagagens dos passageiros de voos internacionais – no ano passado, foram retidos R$ 157 mil em mercadorias e aplicadas multas e impostos da ordem de R$ 1 milhão.
O levantamento realizado pelo Diario, junto às maiores prestadoras de serviço do estado, confirmam que a conta da corrupção é cara e não está restrita aos políticos, mesmo que o entendimento de uma maioria seja focado neles, e mostra que o cidadão comum, não eleito e sem foro privilegiado, também faz uso de práticas ilegais. É inquestionável que os motivos ou dimensão do desvio de verbas da merenda, por exemplo, não sejam os mesmos de uma ligação clandestina para ter eletricidade ou água em casa. Mas, seja na “macrocorrupção” ou no famoso “jeitinho”, o caminho é semelhante e levam ao objetivo de tirar proveito do sistema. “Temos uma cultura tolerante com o desvio. Até pela influência portuguesa, costumeiramente mais tolerante com as questões morais, assim como a Igreja Católica, mais tolerante que outras religiões”, avalia o doutor em sociologia pela UFPE e professor da Unicap, Nadilson Silva.
Um exemplo do que poderia ser considerado “normal” é fazer compras no exterior. De acordo com a assessoria da Receita, não são raras as notificações de passageiros que tentam esconder relógio, celulares e objetos eletrônicos para que não tenham os produtos taxados pela Alfândega. As desculpas e “truques” são os mais diversos. Os celulares vêm dentro de sapato por “medo de ser assaltado”, fotos antigas são baixadas em aparelhos novos para que pareçam usados e a sacola de roupas sujas vira “habitat” de diversos eletrônicos. São as continuadas tentativas de dar um “jeitinho” de burlar o limite de compras de 500 dólares.
Sobre o limite para compras no exterior:
Crimes fiscais também são comuns. O Superintendente da Receita Federal na 4° Região, Giovanni Campos, ressalta a omissão de rendimentos na declaração do Imposto de Renda e a falta de tributação de serviços como as práticas mais comuns. “Um exemplo são pessoas com despesas médicas que utilizam recibos falsos ou até falsificam dependentes”, aponta. Para Campos, a prática de ilícitos fiscais, por exemplo, é um comportamento que não é condizente com quem tanto reclama da corrupção. “O discurso fica dissociado. A corrupção deve ser combatida no macro e no micro”, resume.
Principais tentativas de golpe contra a Receita:
Alfândega (R.F.)
Principal irregularidade: Não declaração de mercadorias
Recursos*: R$ 1,036 milhão
Passível de crime? Não, multa e apreensão
Valor das mercadorias apreendidas em 2015: R$ 157 mil
*Impostos que deveriam ser recolhidos: R$ 865 mil
*Multas em 2015: R$ 171 mil
Celpe
Principal irregularidade: Ligação clandestina
Recursos*: R$ 188 milhões por ano*
Passível de crime? Sim, furto
*R$ 100 milhões investidos para coibir práticas ilegais em 2015
*R$ 88 milhões – valor aproximado tomando como valor-base o consumo de 100 kwh/mês por clientes regulares, ao valor de R$ 60,72
Companhia Brasileira de Trens Urbanos
Principal irregularidade: Entrada irregular de usuários
Recursos: Não estimados
Passível de crime? Não
Compesa
Principal irregularidade: Ligação clandestina
Recursos*: R$ 57,6 milhões por ano
Passível de crime? Sim, furto
Dimensão: 1,8 milhão de ligações ativas, sendo 130 mil irregulares ou clandestinas
*Cobrança mínima em cada ligação: R$ 37,25 x 130 mil ligações = R$ 4,8 milhões/mês
Corpo de Bombeiros, Polícia Militar e Polícia Civil
Principal irregularidade: Trote
Recursos: Não estimados
Passível de crime? Sim, extorsão (artigo 158)
Trotes registrados pelo Centro Integrado de Operações da Defesa Social:
Média de 30.485 trotes por mês/ 1.016 trotes por dia
*Desse total, estima-se que 10% sejam direcionados ao Corpo de Bombeiros
Em 2014, 70% das chamadas registradas pelo CIODS foram trotes
Em 2015, 60% das chamadas
Detran
Principal irregularidade: Apresentação de documentos falsos
Recursos*: Não estimados
Passível de crime: Sim, estelionato e falsidade ideológica
Processos
De acordo com a Corregedoria, em 2015, um total de 8 funcionários fora investigados pela Corregedoria, além de 400 clientes da população
Grande Recife Consórcio de Transportes e Urbana-PE
Principais irregularidades:
– Embarque indevido: em portas, por cima de catraca, área dianteira ou em integração
– Uso indevido de cartões VEM, em especial os cartões de gratuidades
Recursos: Não estimados
Passível de crime? Não
Previdência Social
Previdência Social
Principais irregularidades:Recebimento de benefícios indevidos
Recursos: Não estimados
Passível de crime? Sim, fraude e falsidade ideológica
Receita Federal
Principal irregularidade: Declaração irregular de imposto de renda
Recursos*: R$ 70 milhões, entre multas e redução de rendimentos
Passível de crime? Sim, fraude
*Redução de rendimentos: R$ 13,7 milhões
*Multas emitidas: R$ 56,3 milhões
Em alguns casos, entretanto, a ilegalidade torna-se fator preponderante de risco a vidas. É o caso de trotes registrados pelo Centro Integrado de Operações da Defesa Social (CIODS), que cadastra ligações realizas ao Corpo de Bombeiros e Polícias Militar e Civil. Somente este ano foram 122 mil trotes, ligações que geram deslocamento desnecessário de viaturas. “Esse é um comportamento presente em Pernambuco e em todo o Brasil. Quando deslocamos uma equipe para um local com ocorrência falsa, alguém que realmente precisa de ajuda deixa de ser atendido”, aponta o assessor de comunicação dos Bombeiros, tenente-coronel Edson Marconi.
Quando a (i)moralidade
(não) paga passagem
As irregularidades estão presentes também no cotidiano, a exemplo do transporte público. Nos ônibus, as irregularidades mais citadas pela Urbana-PE, sindicato das empresas de transporte urbano, são as que provocam evasão de divisas, ou seja, são os passageiros que burlam o sistema de alguma maneira e não pagam passagem, seja entrando pela porta traseira ou falsificando carteira de livre acesso. Estimativas dão conta de que um terço dos passageiros que ocupam a área dianteira dos ônibus, antes da catraca, estão viajando de forma irregular. Os embarques pelas portas do meio e traseira têm um impacto estimado ainda maior.
O diretor de Operações do Grande Recife Consórcio, André Melibeu, argumenta que o não pagamento das passagens contribui para a superlotação dos veículos, realidade vivida diariamente por milhares de trabalhadores. “O passageiro que não é catracado não entra em nossa contagem. Nós dimensionamos o serviço com base em uma demanda. Esse pessoal é ‘invisível’ e as demais pessoas acabam pagando por eles. A conta é feita pela renda e as despesas. Lógico que se a renda fosse maior, o reajuste seria menor”, garante.
Outro ponto destacado é o uso ilegal do cartão VEM Livre Acesso, para o qual não há estimativas precisas, mas indícios fortes quando compara-se o Recife às demais capitais. “De acordo com dados de 2015, no Recife, 9,3% dos usuários tinham deficiência, maior percentual no Brasil. A segunda é São Paulo, com cerca de 4%. A diferença é muito grande”, ressalta.
Abuso?
Uso do cartão de livre acesso em capitais
1° Recife – 9,3% dos usuários portadores de deficiência
2° São Paulo – cerca de 4%
Uma arma para combater as fraudes é a biometria
– Redução média de 28,17% nas gratuidades
De acordo com Salvino Gomes, assessor da Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU), o transporte ferroviário local também sofre com a evasão de renda, porém não é possível quantificar as perdas por não haver orçamento para realização de pesquisas. “Esse problema está presente sobretudo na linha diesel e acentua-se na Linha Centro devido à entrada dos usuários pela Integração”, destaca, apontando, no entanto, que os custos não são repassados aos demais passageiros, já que a tarifa social, no valor de R$ 1,60, é arcada pelo Governo Federal.
Desvios abasteceriam cidades inteiras
Sejam desvios de grande proporção ou seja pela necessidade extrema de ter água e energia elétrica em casa, ligações clandestinas são os principais obstáculos enfrentados pela Celpe e Compesa. Ambos os desvios podem ser enquadrados como furto (a ligação irregular à rede de água encanada ainda se encaixa como crime ao patrimônio público), passíveis de punição pelos artigos 155 do código penal.
No caso da Compesa, são cerca de 130 mil ligações irregulares em Pernambuco. “É como se fosse um grande condomínio. Se alguém usa sem pagar, a conta acaba sendo dividida pelos demais”, aponta o gerente de Controle Operacional da Compesa, Daniel Genuíno, ressaltando ainda que o principal desafio é o combate permanente das irregularidades e a conscientização dos cidadãos. “Com o valor que utilizamos para combater as irregularidades seria possível investir no serviço: poderíamos construir 470 km de rede, capaz de beneficiar 380 mil pessoas – equivalente à população da cidade de Olinda”, exemplifica.
O caso da Celpe é semelhante. A principal irregularidade encontrada são os chamados “macacos” – ligações irregulares de energia. Somente entre 2015 e este ano, os investimentos para coibir a prática ilegal totaliza R$ 225 milhões. Dados da empresa apontam que a quantidade de energia desviada ilegalmente é capaz de abastecer por um ano uma cidade do porte de Garanhuns (136 mil habitantes).
“As irregularidades são realizadas sem obedecer critérios técnicos e de segurança, podendo ocasionar queima de equipamentos elétricos na região e ruptura da rede. As ligações clandestinas, por estar em desacordo com os padrões, também podem provocar acidentes graves e fatais”, aponta o gerente da Celpe Fábio Barros, que acrescenta a necessidade de a população denunciar a prática ilegal.
Um “jeitinho” longe de inocente
Uma cultura de tolerância com o “jeitinho brasileiro” acaba impregnada da “pequena corrupção”. Para o doutor em sociologia pela UFPE e professor da Unicap, Nadilson Silva, o comportamento é historicamente compreendido na sociedade, mas a aceitação desses ilícitos percorre o caminho “de cima para baixo”. “Atos ilícitos são e foram, historicamente, usados pelas elites como forma de enriquecimento. O início se dá nas elites e expande para outras classes”. E quando a prática não gera punição, o ciclo vicioso está aberto. “A impunidade gera a sensação de que o crime compensa, de que correr o risco é válido, sobretudo nos chamados crimes do colarinho branco”.
O combate à impunidade, no entanto, encontra alguns entraves e limites focados na relevância dessas práticas. Para o professor de Direito Penal da Faculdade de Direito do Recife, Ricardo de Brito, nem todos os delitos são passíveis de criminalização. “Uma ligação clandestina, por exemplo, é crime de furto. É uma conduta suficiente para ser punida, assim como um crime de alfândega, por exemplo. Falsificação de carteira de estudante para ir ao cinema não vai para o direito penal, mas fraude de documentos para se passar por alguém na Previdência Social, por outro lado, é algo que pode ser punido criminalmente”, explica, acrescentando que o Direito Penal se restringe aos crimes mais relevantes, “em última instância”.
Questionado se a ausência de punição pode colaborar com a sensação de impunidade presente na sociedade, Brito entende que nem tudo é caso para cadeia. “É o contrário do que percebemos que a sociedade anseia, mas é uma sociedade inviável de se viver. Seria totalitarismo, não democracia”, opina.
O professor ainda refutou o argumento de que a prática de atos incorretos tira o direito do cidadão de vir a reclamar das práticas corruptas de políticos. “Há um discurso de ‘como você pode reclamar da corrupção se você fura fila, se você estaciona em vaga para deficientes?’. Eu acredito que é um discurso que não cabe. Não se pode igualar pequenas falhas morais e grandes falhas morais, crimes de grande proporção”, aponta o professor. “Nessas práticas, a ameaça de privação de liberdade é fundamental, porque multas já estão previstas nos valores desviados”.
João Vitor Pascoal
Repórter
João Vitor é estudante de jornalismo pela UFPE. Escreve para o Diario desde 2014 e integra a equipe de dados do jornal, na equipe do CuriosaMente, desde setembro de 2015. É interessado no discurso político da população e nas incoerências na ação prática dela. Assina esta reportagem que tem arte e ilustração de Greg.