Pessoas sem teto fazem de cachorros suas famílias

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Carência decorrente do distanciamento dos parentes é suprida pelo carinho dos cães, com os quais dividem o pouco que têm numa vida marcada por ausências

 

Pessoas sem teto ou em situação de vulnerabilidade dividem o pouco que têm com animais de estimação, a quem chamam de família. Há “parentes” do tipo em sua cidade. Um ou outro fareja o lixo e dá dezenas de voltas em torno de si. Atendem por nomes como Rex, Scooby e Galego e são razões de sorrisos de habitantes das ruas que encontraram, em seus cães, o companheirismo que faltou nos homens. A carência afetiva é combatida diariamente por lambidas e olhares ternos, que só pedem em troca aquilo que seus destinatários podem oferecer: atenção.

 

Promessa de ser fiel

A arca de Luiz não navega, nem se move. Na verdade, ela é justamente a plataforma pela qual trafegam milhares de veículos todos os dias. Há dez anos, o Viaduto Engenheiro Roberto Pereira de Carvalho, popularmente conhecido como “viaduto do Tacaruna”, em Olinda, é habitado pelo catador Luiz Carlos da Silva. O local é dividido com 32 cães e nove gatos recolhidos da rua. Dirige-se a todos pelo nome. “Capitão, Diogão, Negão, Sargento, Princesa, Piaba, Mel, Visconde, Rebeca… tem um monte”, brinca.

Alguns dos animais foram deixados à sua porta na madrugada. Outros, resgatados da fome ou do perigo das avenidas e mangues. “Valentina, peguei toda ensanguentada, depois de atropelada na Agamenon. O cara bateu nela e nem parou. O mais recente foi o rottweiler, que deixaram amarrado no meio da lama. Ele passou sete dias sem comer, estava tão fraco que tive que trazer no braço”, conta. Mas Luiz não gasta as poucas palavras para reclamar da maldade alheia. Orgulha-se, no entanto, de investir R$ 180 por mês, dos R$ 400 que ganha, para comprar a ração de seus cachorros e gatos. “Antes, tinha uma moça que ajudava com a ração, mas ela sumiu. Com o que sobra, dá pra eu comer mais ou menos. Fico com pena, não gosto de ver os animais sofrendo”, comenta.

Peu Ricardo/DP

Nascido em Aliança, na Mata Norte de Pernambuco, Luiz morou em João Pessoa, na Paraíba, até que seus pais morressem, em 1984. Foi quando, de carona na estrada, chegou ao Recife. “Sobrou só um irmão meu, que bebe muito. Meus pais tinham deixado uma casa, mas ele vendeu”, lembra. Formou, então, a família que pôde. Com seus cães e gatos divide a rotina. Todos os dias, solta os cachorros por uma hora, para que passeiem. Aos domingos, são dados os banhos semanais. “Trago 50 litros de água do Classic Hall”, completa. Apesar do carinho pelos animais, Luiz diz que aceitaria entregá-los a quem se prestasse a oferecer cuidados melhores que os seus. “Me apeguei a todos, mas alguns cachorros eu daria, porque aqui dentro é muito abafado e apertado para eles, não dá para eles brincarem direito”, lamenta. Luiz acredita que os animais têm muito a ensinar, mas não se dispõe a falar muito: “carinho”, resume.

Os latidos frenéticos não parecem tirar a paciência de Luiz, que conversa e brinca com os animais durante o período. Aos domingos, são dados os banhos semanais. “Trago 50 litros de água do Chevrolet Hall”, completa. Apesar do carinho pelos animais, Luiz diz que aceitaria entregá-los a quem se prestasse a oferecer cuidados melhores que os seus. “Me apeguei a todos, mas alguns cachorros eu daria, porque aqui dentro (aponta para a casa) é muito abafado e apertado para eles, não dá para eles brincarem direito”, lamenta. Luiz acredita que os animais tem muito a ensinar, mas não se dispõe a falar muito. “Carinho”, resume.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Amando e respeitando

Com um ou dois baldes vazios, Bochecha caminha em direção à Praça da Bíblia, no Bairro de Casa Caiada, em Olinda. Lavou carros, limpou as calçadas da vizinhança, foi ao bar, almoçou no terminal de ônibus e, antes disso, aguardou seu pão em frente à padaria. A rotina se repete todos os dias, seguida por quatro patas insistentemente limpas. “Vinte e quatro horas comigo”, diz o morador de rua a respeito de Rex, sua “família” há cerca de um ano. Logo aos 16 anos, Bochecha deixou de ser Edvaldo Dias Siqueira. Foi rebatizado pela rua após a morte dos pais: a mãe padeceu de um câncer, o pai foi esfaqueado. A relação com a família que ficou não era boa. “Já tenho costume de rua, de estar solto e não demorei no colégio, faltava muita aula”, completa. Ainda na adolescência fez da Praça da Bíblia um lar. “Hoje em dia, na maioria das vezes, durmo na oficina de um amigo, numa rua aqui perto. Aqui na praça o difícil é que você precisa de dois lençóis para dormir, um para forrar o chão e o outro para se cobrir”.

Acostumou-se ao início agitado dos dias, a enganar a lentidão das tardes e à solidão das noites. Até que conheceu Rex. “As câmeras de segurança de um dos prédios daqui filmaram tudo: uma mulher parou um carro e abandonou um pitbull raciado. Ele passou uns três meses no mesmo lugar esperando a dona voltar. Dei comida, mas ele mal comia. Só bebia água. Tava com desgosto”, lembra Bochecha. A tristeza do animal comoveu alguns moradores e comerciantes dos arredores da praça, que, até hoje, cedem sua ração. Os demais cuidados ficaram a cargo de Bochecha.

“Eu gasto muito dinheiro com esse cachorro. Agora mesmo ele tá com uma inflamação nos dois olhos. O colírio custa 41 reais. Olhe como tá vermelho o olho dele, parece que fumou maconha”, brinca, esticando as pálpebras de Rex. As brincadeiras com os transeuntes, evidenciam a boa relação de Bochecha com a vizinhança. “Todo mundo aqui gosta de mim”, afirma.

A empresária Patrícia Braga, dona de estabelecimentos comerciais na área, passa pela praça e comenta: “Vitório é louco por ele”. Ela mesma resolveu chamar o animal assim, mesmo contra a vontade de Bochecha. “Vitório porque ele é vitorioso, chegou aqui deprimido, triste e hoje é muito alegre”. A mulher garante que o cachorro atende pelo nome. “Eu chamo de ‘filho’ e ele também vem”, completa a amiga, Angélica Melo, a quem o cão acompanha à parada de ônibus todos os dias.

O universo construído por Bochecha na pracinha ficou mais leve compartilhado com o novo amigo. “Eu brinco muito com ele. Rex adora jogar bola. É minha família”, diz. Alguns já fizeram propostas em troca do mascote. “Já botaram 50, até 100 reais nele, mas eu não vendo. Me apeguei a ele e ele se apegou a mim”, diz.

 Na alegria e na tristeza

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Na orla da mesma Casa Caiada em que vivem Bochecha e Rex, o carro de um supermercado do bairro costuma despejar sacolas com produtos prestes a vencer. É quando Fábio Júnior e Scooby sabem que é hora de procurar por comida. Carne, arroz e galinha são farejados, retirados das sacolas e levados ao fogo, improvisado entre dois tijolos enegrecidos ao pé de uma árvore. Aquecida, a refeição é dividida por homem e cachorro. “Eu acho errado jogar comida fora. Se tivessem consciência davam pras pessoas que precisam”, desabafa Fábio. Aos 35 anos, Fábio joga no bicho desde a adolescência. “Meu pai me espancou de borracha. Eu disse a ele: ‘essa foi primeira e última vez que o senhor me bateu’”, lembra o motivo que o fez sair de casa. Há seis anos, apostou no cachorro. “Peguei ele no Carmo, com seis meses. Como era marronzinho, dei o nome de Scooby”.

Quando veem a dupla no calçadão, os colegas de rua zombam: “Salsicha e Scooby”. Debaixo das gargalhadas, Fábio garante que vive onde deseja. “Sou maloqueiro de rua, já me acostumei. Pra mim, um cachorro é mais que uma mulher. Eu não dou nem amor nem carinho e ele só vive no meu pé. Imagina se eu desse?”. À noite, o cachorro costuma vigiar o sono do dono, que dorme abaixo de uma marquise na beira-mar. “Tá o tempo todo me protegendo. De dia, é maloqueiro: roda a praia todinha, principalmente se tiver alguma cadela no cio. Mas de noite, a gente deita ali e se alguém chegar perto, ele vai pra cima”, orgulha-se do mascote.

 Na saúde e na doença

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Há cerca de um ano, Ana Lúcia Spinelli não fala com a família, que reside no Rio de Janeiro. A agenda telefônica da moradora de rua, com os contatos dos parentes, pegou fogo junto com os todos os documentos e os demais pertences durante o incêndio do casarão na Avenida Martins de Barros, que dividia com outros desabrigados. A vida agora é compactada em seis caixas, nove sacolas plásticas e dezesseis patas, que correm por todo centro do Recife para sempre regressarem à Praça Dezessete, onde Ana Lúcia é conhecida como “Irmã” e fez sua nova morada. Marrom, Branca, Preta e Galego são os quatro filhos de Ana com a rua. Com os ex-maridos, teve oito, com os quais não mantém contato. “Esses cachorros são como uns bebês, cuido deles, dou banho e educo. Eles não fazem cocô na praça de jeito nenhum, vão lá para o outro lado”, aponta para a beira do rio.

Ana deixou o Rio de Janeiro ainda jovem, para atender à proposta de uma amiga que oferecia um emprego de empregada doméstica na capital pernambucana. Aos 49 anos, o sonho de viajar para reencontrar os parentes esbarra na responsabilidade pelos cães. “Se eu quisesse ir, o pessoal que me conhece da rua ajudava a pagar a passagem, mas eu tenho medo de os bichinhos ficarem sofrendo, de a água, os alimentos encherem de formiga. Eu sei que o povo não cuida”, lamenta. Ana lembra da ocasião em que Galego foi atropelado. “O carro bateu na patinha dele e quebrou. Eu chorei tanto…Não tive como ligar pro veterinário que vinha na rua olhar os cachorros. Passei a noite todinha do lado dele, ouvindo ele chorar”. Conseguiu atendimento médico para o animal. “Ele tá com uma platina e uma placa, mas ficou um pouco ‘zambeta’”, diz.

Se a perna esquerda de Galego ainda se recupera do acidente, o pé direito de sua dona vai de mal a pior. “Foi uma mordida de rato. Perdi muito sangue e até desmaiei”, fala. Apesar do curativo que recebeu de um médico, a ferida nunca cicatrizou. “Como vivo na rua, já deu bicho três vezes. Agora virou úlcera vascular, só fecha com uma cirurgia”. Em um dos bancos da pracinha, Ana e Galego apoiam-­se um no outro, cheiram­-se, abraçam-­se. O sorriso vem quando a mulher fala na casinha de dois quartos que construiu na cabeça.

“Um pra mim e outro pros cachorros. No espaço deles eu botava tapetes, ventilador, caminhas, almofadas e uma televisão, pra eles assistirem desenho animado”, imagina, assegurando admirada que nas proximidades da Conde da Boa Vista, há um homem que reservou um quarto da casa exclusivamente para seus cães. Para os seus, Ana reservou toda a sua vida.

Marília Parente

Marília Parente

Repórter

Paulo Paiva

Paulo Paiva

Fotógrafo

Peu Ricardo

Peu Ricardo

Fotógrafo

Nando Chiapetta

Nando Chiapetta

Fotógrafo