Presidentes e seus vices: uma antiga relação de “sombras”

Na história, relações entre presidentes e seus vices foram marcadas por traições, tendo como caso maior uma conspiração contra Getúlio Vargas. A reportagem é de Aline Moura

 

Na história do Brasil, vices-presidentes nunca renunciaram. Alguns criticaram o governo do qual pertenciam publicamente ou anunciaram rompimento, mas, ao contrário dos titulares, que vez ou outra recorrem ao desespero da renúncia (quatro presidentes jogaram a toalha antes do tempo), os vices permanecem intactos. Enquanto não há registros de que os personagens dito secundários abandonaram a função, não faltam histórias de conspiração, traições e discordâncias políticas. O caso mais recente é o do vice-presidente Michel Temer (PMDB-RJ), que escreveu uma carta para Dilma Rousseff na qual reclamava pela falta de prestígio – citando aliados demitidos -, e se intitulava como “vice decorativo”.

Os cenários são diferentes, mas há uma repetição de disputas entre titulares e vices. A relação mais conturbada entre o presidente e o vice aconteceu na década de 1950. Getúlio Vargas pretendia disputar o cargo máximo do país, por eleição direta, mas o então governador de São Paulo, Ademar de Barros (PSP), conseguiu emplacar um vice que Getúlio nunca confiou, José Fernandes Campos Café Filho.

Getúlio resistiu ao nome do vice até as vésperas de a chapa ser registrada no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), depois de ouvir ameaças de Ademar de que a candidatura tinha de ser mantida “custe o que custar”. Ademar alegou, na ocasião, que ninguém se elegeria sem o apoio do Partido Social Progressista, uma das maiores agremiações partidárias da época. Café Filho foi registrado pelo PTB para ser o vice de Getúlio e conseguiu, nas urnas, ganhar do seu concorrente por uma diferença pequena de 200 mil votos, Odilon Duarte de Braga. Na época, os vices também disputavam o cargo no voto, a chapa não era fechada como agora.

Arquivo/DP

Apesar da popularidade e de ser chamado de “pai dos pobres”, Getúlio enfrentou um governo conturbado, marcado por fortes críticas da oposição. Mas a gestão perdeu totalmente a estabilidade política a partir de um atentado ao seu principal opositor, o jornalista Carlos Lacerda, em 5 de agosto de 1954, na Rua Tolenero, em Copacabana (RJ).

A crise institucional no governo de Getúlio tinha atingido seu limite, quando Café Filho propôs que ambos renunciassem. Getúlio descartou a proposta após conversar com o ministro da Justiça, Tancredo Neves, e Café Filho encontrou o motivo para romper com o titular do cargo. O próprio Getúlio relatou o que o vice havia lhe dito. Entre os trechos, está este: “Uma vez recusada, em termos irrevogáveis, a minha sugestão, está claro que me sinto também desobrigado de renunciar. Caso o senhor deixe desta ou daquela maneira este Palácio, a minha obrigação constitucional é vir ocupá-lo”, escreveu.

Café Filho assumiu a presidência em 24 de agosto, mas não teve sossego, por ter seu nome bastante relacionado ao que se considerava uma conspiração contra Getúlio. Após sofrer um ataque cardíaco, o presidente licenciou-se e repassou o cargo ao presidente da Câmara, Carlos Luz, em novembro do ano seguinte depois, mas logo depois houve dois estados de sítio. “O vice estava muito envolvido na conspiração. Ele passou o cargo para Carlos Luz, mas foi deposto pelo general, Henrique Teixeira Lott, por tentar impedir a posse do presidente eleito (Juscelino Kubitschek) e do vice João Goulart, do PTB”, declarou o doutor em sociologia e mestre em ciência política pela Universidade Federal de Pernambuco, Heitor Rocha.

Arquivo Estado de Minas

Usado para causar medo ao Congresso

 
Eleito depois de Juscelino e com uma carreira construída em São Paulo, tendo sido vereador, deputado, prefeito e governador de São Paulo, o presidente Jânio Quadros também teve um vice a contragosto. Jânio ganhou a simpatia do povo e venceu a campanha com o slogan “varre, varre vassourinha, varre a corrupção”, mas o vice, escolhido também pelo voto, foi novamente João Goulart, do PTB.

No pequeno período em que tiveram que trabalhar juntos, de 31 de janeiro de 1961 a 25 de agosto do mesmo ano, os dois discordaram em vários pontos. Entre eles, é consenso que Jânio reprimia os movimentos populares enquanto Goulart os estimulava. Goulart, aliás, chegou a enviar uma carta para o presidente, querendo saber porque seu nome estava em sindicâncias do governo e também discordava do presidente, que se empenhou em moralizar os costumes, inclusive proibindo uso de biquínis.

Ainda segundo Heitor Rocha, Jânio tinha uma postura política dúbia, chegando a condecorar Che Guevara e trazer Fidel Castro para uma visita ao Brasil. Mas o professor da UFPE frisa que ele usava constantemente o nome do vice para aumentar sua força política no Congresso.

Jean Solari/O Cruzeiro/EM/D.A Press

Rocha explica que, quando Jânio queria diminuir os poderes de interferência do Congresso na sua gestão, dizia que renunciaria e repassaria o cargo a Goulart, que tinha uma resistência forte dos militares e das lideranças conservadoras que temiam, especialmente, a reforma agrária tão defendida por Jango.

“Quando Jânio entregou a renúncia, João Goulart estava na China, fazendo acordos com o governo comunista de Mao Tsé-Tung. Então, Jânio fez o gesto como uma estratégia. Só que ele entregou a renúncia numa quinta-feira à noite, dia em que os deputados começam a sair de Brasília, mas poucos foram embora e a renúncia foi aceita na sexta-feira”, contou, lembrando que a estratégia dele falhou, porque ele visava ter respaldo para dar um golpe de Estado e ter amplos poderes, com ameaças sobre o perigo que representava Jango.

Heitor Rocha lembra que o país estava a ponto de entrar em clima de “guerra civil, até Tancredo Neves negociar uma a saída para a crise, que foi estabelecer um parlamentarismo, onde o novo presidente seria apenas chefe de estado. “A saída foi articulada por Tancredo Neves e o João Goulart demorou bastante para retornar ao Brasil até que isso fosse resolvido. Passou pela Europa, pelos Estados Unidos, pela América Latina e só voltou quando negociou uma saída”, declarou.

Arquivo/DP

Aureliano, o último da ditadura

Outro rompimento que chamou a atenção entre vice e presidente se deu entre Aureliano Chaves e o presidente João Baptista Figueiredo, o último general da ditadura militar. Aureliano queria suceder Figueiredo e disputar as eleições indiretas pelo PSD, mas o titular do cargo discordou. Aureliano, que já tinha sido governador de Minas Gerais, defendeu a transição do poder militar para um civil, mas Figueiredo preferia apoiar coronel Mário Andreazza como candidato do PSD. O presidente já não confiava mais no vice, que começou a criticar o governo, dizendo haver um distanciamento do povo e crise de credibilidade.

Aureliano, conhecido por ser um defensor do patrimônio nacional e também crítico da direita (da qual pertencia), lançou-se candidato na convenção do PSD, mas não teve sucesso e perdeu para Paulo Maluf. A decisão de Figueiredo de apoiar Maluf logo em seguida foi a gota d´água para Aureliano. Ele decidiu sair do partido com outras lideranças, como Marco Maciel, para fundar o PFL e apoiar o candidato da oposição, Tancredo Neves, no colégio eleitoral.

Antes de Temer, outro vice que deu muitas dores de cabeça ao titular foi Itamar Franco, que sucedeu Fernando Collor após o seu impeachment. Itamar discordou de Collor durante a campanha presidencial, quando criticou a proposta de privatização da Usiminas, e disse ter documentos que comprometiam o presidente, às vésperas do seu afastamento do cargo. Antes mesmo do afastamento de Collor do cargo, Itamar divulgou um documento que parecia ser um plano de governo. Uma iniciativa semelhante ao que Temer fez, numa palestra para empresários em São Paulo no dia 7 de dezembro para apresentar o plano de governo do PMDB. Gestos da política que só reforçam o que dizia Nelson Rodrigues: só o inimigo não trai nunca.

Das traições ao suicídio

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Getúlio Vargas foi um dos homens mais amados do Brasil por sua política populista. Ele tinha apenas 1,60 metro e os fotógrafos precisavam fazer malabarismos para disfarçar sua altura, que ele visivelmente não gostava. Ele teve uma vida marcada de traições, mas também adotou gestos semelhantes.

Getúlio foi ministro da Fazenda do presidente Washington Luís, porém ajudou a depô-lo do cargo e enviá-lo para o exílio, na Revolução de 1930. O golpe contra o Washington Luís aconteceu porque ele queria indicar o governador de São Paulo, Júlio Prestes para sucedê-lo, o que não agradou os mineiros, que revezavam o poder com os paulistas, na chamada República Café com Leite, ou República Velha.

Em 1936, ele entregou a alemã Olga Benário, esposa do líder comunista Luís Carlos Prestes, ao governo de Hitler. Olga morreu na Câmara de gás por ser judia e comunista no ano de 1942.

O homem da vassoura

Vicepresidentes EMPFOT090320100497_lowO ex-presidente Jânio Quadros teve uma carreira fulminante e construída em São Paulo em praticamente 15 anos, sem ter partido expressivo, sem dinheiro e sem atributos de beleza. Ele era considerado um homem dramático e teatral e enviava bilhetinhos para os seus assessores.

Jânio Quadros era considerado conservador. Chegou a proibir rinhas de galos e desfiles de biquínis. Ele renunciou alegando que havia ao seu redor “forças terríveis”. Jânio perdeu toda a popularidade em menos de um ano de mandato, mesmo representando um sentimento genuíno da população, que já desejava, na época, combater à corrupção. Ele teve gestos dúbios enquanto governava e chegou a receber Fidel Castro no Brasil, ao mesmo tempo que adotou uma política internacional independente. Estudiosos dizem que sua renúncia era uma forma de causar comoção popular e fazer com que o Congresso lhe desse amplos poderes. Durante campanha, Jânio tirava sanduíches de mortadela do bolso e jogava pó na roupa para parecer que tinha caspa, o que o tornaria um homem comum.

Racismo e grosserias

Vicepresidentes CBPFOTP1501201024805_lowFigueiredo participou do movimento que derrubou o presidente João Goulart, em 1964, dando início ao golpe militar. No dia de sua posse, em 15 de março de 1979, participou de uma festa popular e posou de mãos dadas com a porta-bandeira da escola de samba da Mocidade Independente de Padre Miguel. Mas admitia ser racista e grosseiro. Algumas frases suas são consideradas chocantes.

“Eu cheguei e as baianas já vieram me abraçando. Ficou um cheiro insuportável, cheguei no hotel tomei 3, 5, 7 banhos e aquele cheiro de preto não saía”, disse numa visita que fez a Salvador, no Senhor do Bonfin. Outra é famosa é a seguinte: “prefiro o cheiro de cavalos ao cheiro do povo”.

Ainda no ano da posse, escolas levaram uma fila de crianças para cumprimentar Figueiredo no lançamento do primeiro carro a álcool do Brasil, em Belo Horizonte, mas uma delas ignorou o presidente, cruzou os braços e deixou o presidente constrangido. Figueiredo, contudo, é responsável pelo processo de abertura política no Brasil. Em junho de 1979, aprovou a lei que dava anistia geral e irrestrita tanto para os militares acusados de tortura como para os que foram perseguidos.

Aline Moura

Aline Moura

Editora-assistente de política

Aline Moura é jornalista, formada pela Universidade Federal de Pernambuco. Escreve para o Diario há 12 anos. Só foi vice em chapa de movimento estudantil, mas coleciona coberturas presidenciais em Pernambuco.