O cotidiano de quem ganha a vida nas alturas

Por Eduarda Bagesteiro (texto) e Rafael Martins (foto)

Incomuns, profissionais pernambucanos que enfrentam diariamente o desafio da altitude revelam cotidiano de preocupação com segurança e direito zero à vertigem

Nada menos que 3,3 mil metros acima do chão. Essa é a altitude em que Daniel Wanderley, 38, “bate ponto” todos os finais de semana como instrutor de paraquedismo. No ramo há 15 anos, vive uma nova aventura a cada salto. São cinco minutos de adrenalina intensa, onde se pode contar 50 segundos de queda livre a 220km/h. Não é para qualquer um. Jânio não cai. Passa até 5 horas pendurado por cordas e equipamentos de segurança a 20m da recepção de um condomínio por semana na Região Metropolitana do Recife. Limpa vidraças e conserta fachadas com a destreza de alguém que faz o mesmo trabalho com os pés firmes no chão. O trabalho de Luiz Fernando é ainda mais minucioso, uma vez que, lentamente, recupera memórias de outros tempos, restaurando fachadas e interiores de igrejas. Tarcísio tem desempenho semelhante e chega a 205m para trocar lâmpadas ou restaurar e ajustar instalações em torres de comunicação. Eles não se conhecem, mas entendem o desafio diário que pouca gente enfrenta. Recebem para estar a vários metros do chão, onde muitos sequer conseguem se imaginar e depositam confiança irrestrita nos recursos de segurança disponíveis para realizar o trabalho do dia a dia. Vocação para poucos.

Paraquedismo
Manutenção de antenas
Limpeza de fachadas
Restauração arquitetônica

Flertando com a morte

 

Mesmo para quem tem sonho de saltar de um avião e abrir um paraquedas, é preciso mais que coragem. É necessário fazer um curso de paraquedismo antes. Para virar instrutor, ainda há oito horas de teoria e 25 saltos livres de atividade prática pela frente. E o status profissional requer 500 saltos.

Daniel Wanderley conta que, apesar de ter um profissional acompanhando o salto a partir do chão e até mesmo ambulância de pronto-socorro, cada salto é uma espécie de flerte com a morte.

Daniel Wanderley/Arquivo pessoal

Daniel Wanderley/Arquivo pessoal

“É uma profissão que, apesar de segura, por todo método de checagem, paraquedas duplo e apoio da equipe, caso aconteça algum erro, é provavelmente fatal. Mesmo com todos esses anos de experiência, o medo ainda me acompanha a cada salto”, explica o instrutor que coordena os saltos no Aeródromo Coroa do Avião, em Igarassu.

Além do corpo e mente estarem em completa sincronia, o que garante a segurança de Daniel e seus clientes são os equipamentos de proteção individuais (EPI). Além de dois tipos de paraquedas, viseira, altímetro, capacete e outros utensílios, é na checagem dupla de itens e suas funcionalidades que o instrutor mais confia.

Não é a toa que ele e sua empresa contam com mais de 48 mil saltos sem nenhum imprevisto ou acidente de qualquer tipo. O risco tem seu custo e sua recompensa. Cada cliente investe, em média, R$ 890,00 num salto. Um instrutor consegue tirar entre R$ 4 mil e R$ 10 mil por mês num estado como Pernambuco, sem tanta tradição nos esportes radicais.

Segurança em primeiro lugar

Tarcísio Batista, de 44 anos, trabalha realizando manutenções em antenas de telecomunicações e energia, a até 205 metros do chão. São mais de 20 anos de experiência. O envolvimento começou em 1998, quando fez seu primeiro curso de alpinismo, desde então, passou a trabalhar literalmente pendurado e passa técnicas de segurança para outros trabalhadores através de cursos, que o próprio considera a parte mais importante do trabalho. “Trabalho em antenas de energia e por incrível que pareça o maior risco que corremos não é ligado a energia e sim a algum tipo de queda. A segurança e a checagem de itens é muito mais ‘perigosa’, caso passe algum detalhe despercebido”, comenta. o profissional, no entanto, diz nunca ter passado por qualquer acidente.

Arquivo pessoal

Arquivo pessoal

O trabalho de Tarcísio consiste em arrumar fiações, trocar peças das torres e também se certificar que o sinal de recepção esteja funcionando adequadamente. Na prática, presta serviços para redes de televisão e também empresas de entretenimento, onde monta as estruturas que suportam os atores do natal Luz de Gravatá, por exemplo.

Começar na profissão não é fácil. É preciso de um curso para trabalhos em altura e muita coragem. Fora a aptidão e experiência, é necessário se acostumar com a altura, com os 8 equipamentos de segurança, básicos e essenciais para a execução do trabalho. Um profissional iniciante no ramo tem ganho inicial de R$ 1,2 mil. Em alguns casos, apenas os mais experientes são escalados.

“Sempre que estou ensinando uma nova turma no curso, explico que alguns trabalhos, principalmente os mais altos, vão ser direcionados para aqueles que tem mais experiência. Quanto maior a altura, maior a queda. A experiência conta pontos”, explica.

O privilégio das melhores vistas urbanas do Recife

 

Para aqueles que têm uma profissão mais “normal”, como Jânio Amaro da Silva, de 53 anos, os procedimentos não são nada diferentes. Apesar de fazer trabalhos em fachadas de prédios residenciais e empresariais, como o Edifício Antares, localizado na beira-mar de Boa Viagem, qualquer limpeza, pintura e revitalização, a partir de dois metros de altura, precisa seguir as regras da Norma Regulamentadora Nº 35 (NR35). Essa norma estabelece os requisitos mínimos e as medidas de proteção para o trabalho em altura, envolvendo o planejamento, a organização e a execução, de forma a garantir a segurança e a saúde dos trabalhadores envolvidos direta ou indiretamente com esta atividade. São exigidos check-lists de segurança e diários de obras. Além de checar a funcionalidade dos itens de segurança, outras coisas são levadas em conta, como por exemplo, em dias de chuva e vento forte, quando não é permitido trabalhar.

Sempre começando pelo chão, Jânio faz seu trabalho com o auxílio de cadeira especial, que o coloca sentado, descendo como um alpinista, pendurado apenas por cabos de aço. Com 25 anos de experiência, depois de um incidente onde a balança despencou e ele ficou suspenso no ar, ele diz que não sente nenhum medo, como se estivesse no chão.

“Na época que isso aconteceu, eu fiquei sem reação. Procurava o chão e não encontrava. Parte de mim sabia que eu estava seguro por conta dos cabos, que servem justamente para isso, mas o susto é grande. Porém, depois desse único incidente que tive em todos esses anos, hoje trabalho no alto de prédios como se estivesse no térreo”, conta Jânio.

Para começar também é necessário um curso profissionalizante para trabalhos em altura. Nesse ramo, os empregos são gerados por construtoras e empresas de engenharia que lidam com revestimento, fachadas e restauração. O risco é alto, mas a experiência compensa. Um trabalhador ganha cerca de 1,3 mil para trabalhar enquanto ainda pode apreciar a vista. “Fao muitos trabalhos aqui em Boa Viagem, e são meus preferidos. Além da brisa, que posso sentir o cheiro do mar, olhar para esse horizonte azul é uma das coisas que faz você esquecer o quão alto está”, comenta.

Olhando o passado do alto

Apesar de começar com os pés no chão, a altura nunca é pouca. Luiz Fernando Silva, de 37 anos, fica a 36 metros do chão. Trabalhando com restauração e pintura de igrejas, Luiz divide as atividades entre internas e externas. Utilizando andaimes, que são montados de maneira específica e alinhados corretamente com o solo, ele vai subindo até a altura ideal para realizar a restauração. A sustentação dos andaimes é melhor pela base apoiada ao solo, que garante uma segurança maior. A montagem, apesar ta um pouco trabalhosa, acaba sendo mais rápida do que se pensa. Em 35 minutos ficam prontos para o início do trabalho.

Credito: Rafael Martins/ DPNa Igreja da Conceição dos Militares, localizado no bairro de Santo Antônio, no Recife, onde atualmente exerce sua função de restaurador, as atividades são desempenhadas a alturas que variam entre 12 metros, quando se trata de obra interna, a 36 metros, no caso da restauração externa, que termina na ponta da torre da igreja.

Luiz, que nunca passou por um acidente de trabalho, conta que o andaime lhe dá mais segurança por estar pisando em uma base fixa, mas a altura não deixa de ser intimidadora. “Eu sinto meus pés no chão, então tenho um pouco mais de segurança que aqueles que trabalham com cadeira. Não tenho medo de altura, seria um perigo em um trabalho como esse, mas às vezes, só de olhar pra baixo, me lembro que olhar para cima é sempre melhor nessas situações”, comenta.

    Não é para qualquer um

O Ministério Público do Trabalho em Pernambuco (MPT-PE) não retém dados específicos sobre acidentes de trabalho envolvendo altura em seu temário. Em 2016 foram recebidas 3.896 denúncias, sendo 1.015 sobre acidentes de trabalho. Em 2017 houve um aumento de 25%, chegando a 4.586, sendo 969 sobre acidentes de trabalho. Muito menos comum do que se pensa, os acidentes nessas profissões geralmente não são envolvendo a altura em si, mas sim algum outro tipo de complicação, com agentes naturais ou falha de alguns equipamentos, que resultam na funcionalidade certeira de outros.

Saúde também é um fator decisivo para quem quer trabalhar nas alturas. De acordo com o otorrino do Hospital das Clínicas Thiago Bezerra, existem muitas variáveis que podem impedir que uma pessoa trabalhe nas alturas. Entre as condições mais comuns estão: epilepsia, hipertensão, labirintite, alterações cardiovasculares, acrofobia (medo de altura) e diabetes. “Antes do profissional ingressar nessa área é preciso passar por uma série de testes, nos quais são requeridos exames que analisam as funções de todos os sistemas do corpo. Desde os mais simples, como o hemograma, até mais específicos, como o EEG, também conhecido como eletroencefalografia, que monitora a atividade elétrica do cérebro. Tudo isso é de extrema importância para descobrir se a pessoa está realmente apta a se submeter a esse tipo de trabalho”, comenta Thiago.

Além dos citados acima, pessoas com rinite crônica e asma, também estão sujeitas a suspensão do quadro de funcionários ou até mesmo troca efetiva de função. “Esse tipo de doença crônica pode resultar em dores de cabeça, desequilíbrio, vertigem e tontura, o que põe o profissional em risco. Para aqueles que tem crise, é necessário sinalizar a empresa que, junto ao médico do trabalho, poderá solucionar o caso com tratamento ou mudança de cargo”, explica o otorrino.

Além da saúde, a segurança física é o que mais preocupa os profissionais e especialistas. Para isso, existe a NR-35, que estabelece os requisitos mínimos de proteção para o trabalho em altura, envolvendo o planejamento, a organização e a execução, de forma a garantir a segurança e a saúde dos trabalhadores envolvidos direta ou indiretamente com esta atividade. O professor do curso de segurança do trabalho do SENAI Marcelo Araújo conta que a norma é o alicerce do profissional.

número de denúncias sobre acidentes de trabalho em 2016

número de denúncias sobre acidentes de trabalho em 2017

%

aumento entre 2016/2017

Presenciou alguma irregularidade em obras ou trabalhadores em situação de risco?

“A NR-35 é o que protege os profissionais que se arriscam todos os dias. Se a empresa segue a norma ao pé da letra, que é feita para evitar qualquer acidente de trabalho, as chances do trabalhador sofrer são mínimas. A Norma Regulamentadora exige que os equipamentos de proteção individuais sejam checados, mais de duas vezes, por duas pessoas diferentes, para garantir a segurança. Assim como não trabalhar em dias de chuva ou vento forte, para evitar qualquer acontecimento fora do normal”, explica.

Para trabalhar com os pés longe do chão, são muitas regras a serem seguidas e muitas precauções a serem tomadas. Porém, apesar de olhar o perigo nos olhos todos os dias, o amor à profissão é o que prevalece quando se está nas alturas.

Eduarda Bagesteiro

Eduarda Bagesteiro

Repórter

Eduarda é estudante de jornalismo na Universidade Católica de Pernambuco. Escreve para o Diario desde março de 2017. Para fazer essa reportagem, só topou subir escada – nada mais.

Rafael Martins

Rafael Martins

Fotógrafo

Rafael é o fotojornalista baiano do Diario desde 2015. Cobre pautas diversas, de economia a questões de conflito social. Tem medo de altura, à exceção de uma boa rede.

Ed Wanderley

Ed Wanderley

Editor

Ed é repórter e editor do CuriosaMente e de marketing de conteúdo no Diario de Pernambuco, que integra desde 2010. Escreve sobre temas sociais, saúde e economia sustentável.