O circo do Nordeste: o que o respeitável público não vê
Circos itinerantes do interior mantêm espaço frente a grandes espetáculos que, volta e meia, chegam às capitais. Acompanhamos o ritual de um deles, em Cachoeirinha, no Agreste pernambucano, antes de uma noite de estreia – uma história de tantos sonhos quanto certezas, dentro e fora do picadeiro
Não há glamour nas horas que antecedem uma inauguração. Diferentemente do que ocorre nos espetáculos que recebem nomes famosos em renomados teatros, artista, por aqui, arma o próprio palco. E o suor que escorre da testa é tão respeitável quanto o público que aplaude e vaia, com as mesmas animação e pudor, noite após noite. Ao redor da grande área de chão batido, crianças e idosos começam a acumular curiosidades. Fazem barulho e espiam. “É hoje. Pode entrar e ver, se acanhem não”, diz, sorrindo, um dos integrantes da iniciativa. Os grandes carros se alinham para dar início a uma carreata de divulgação – ainda que todas as línguas da cidade já tenham dado conta da presença dos “forasteiros. Estamos em Cachoeirinha, a 200 km do Recife e hoje é dia de circo. À noite tem estreia.
Na furadeira elétrica, Robson Brandão, 34, está despido de maquiagem. Rege instruções com autoridade, ainda que com toques importantes de paciência, diante de atropelos. “A prefeitura implicou com a altura da entrada e estamos resolvendo a questão de acessibilidade. Não dá para conversar muito”, diz, apressado. Seu nome está em tudo que rodeia a lona recém-erguida e também na boca de todos os funcionários: Cheirozinho, palhaço, sim, mas também dono do picadeiro. “Aqui tudo é certo e simples. Pedimos ligação de água e luz, pagamos o aluguel antes, passamos uma semana na cidade – duas, se for muito bom – depois partimos para a próxima”, conta.
Não há muitas reticências com o empresário. Constrói escadas e manobra placas de aço com tanta facilidade quanto dirige seu utilitário esportivo, uma Hilux, da mesma forma que brinca com os três filhos pequenos numa hora e inventiva o mais velho, oito anos, a treinar para o Globo da Morte – ambiente esférico em que duas ou mais pessoas, em motocicletas (a do garoto, menor, adaptada), fazem rodopios horizontais ou verticais simultaneamente.
Caio, aos 8 anos, anda de moto, rodopiando o picadeiro. De capacete e paramentado, gosta do uniforme que o faz se sentir importante, enquanto não pode ajudar na armação do circo do pai. O veículo, adaptado para sua altura, é uma versão mais moderna da motoneta com a qual aprendeu a pilotar. Está ansioso. Hoje, vai fazer o Globo da Morte. “Aprendi a andar há um ano. Eu treino, mas ainda tenho medo de rodar por cima”. Você também teria. O “rodar por cima” do menino, significa andar em velocidade o suficiente para se manter rodando próximo ao “teto” do globo ou mesmo conseguir fazer loopings, de ponta-cabeça. “Já, já, consigo”, garante e segue levantando poeira com a pequena moto, brinquedo que, nem sabe, se fez trabalho.
São 16h e Paulo César Gomes da Silva, 24, faz a barba na escada de sua casa-móvel. Apresentador tem de estar de cara limpa. O ritual só é interrompido por Rafael, seis anos, ou pelo cão, um miniatura Pincher, de poucos centímetros, mas muito “volume”. Estica as pernas, organiza tudo e se prepara para a carreata. No trailer customizado por suas próprias mãos tudo se faz sem pressa. Minutos cronometrados, só durante a apresentação.
Ali dentro, há de tudo: prateleiras, uma espécie de estante, porta corrediça para o quarto (amplo, diga-se) e até TV a cabo, mesmo o endereço tendo rodas. “Sou feliz com a vida que tenho. É a que quero pro meu filho. Tenho endereço fixo, mas ele não é meu de verdade. Lá, mora minha mãe. Minha vida é aqui e não troco”, conta o ex-caminhoneiro que conheceu a esposa, Rosângela, 27, do ballet aéreo, numa das paradas de um circo perto de sua casa, em Feira Nova, há seis anos, e após um “romance telefônico” seguiu a trilha de quase cigano. “Eu vivia só passando pelos lugares, quando queria conhecer cada canto. Hoje, faço o que escolhi, tenho a vida financeira que quis e sou feliz”, conta o homem que promete conhecer o resto do país e encher o trailer de filhos no futuro mais próximo possível.
“Minha mãe se separou do meu pai, se apaixonou por um homem de circo e levou os filhos junto”. É assim que descreve o próprio destino, Marcos Fernando Paes da Silva, 27. “Meu filho vai estudar, assim que completar três anos, mas depois que a pessoa cresce no circo é difícil querer outra coisa”.
Foi assim com ele. Trapezista, malabarista, homem-aranha, globista da morte. Já fez de tudo e passou por todos os lugares, menos o Acre e Amazonas. “Mas já me apresentei na Bulgária e em Las Vegas”, lembra, sem qualquer vaidade. É que no circo, muitos se acostumam ao diferente e aos extremos. São Caitano, onde estiveram na semana anterior, é tão bom quanto qualquer palco europeu, se a plateia incentiva. “O melhor show que fiz foi no Rio Grande do Sul. O pessoal vibrava. Você se sente valorizado”, conta.
Vai, assim, colecionando vistos de aplausos num passaporte cotidiano cujo prazo de expiração sequer deseja verificar. Paraense, casado com uma cearense e pai de um mineiro nascido durante uma das turnês dos dois, tem poucos planos. “Vou juntando experiência e dinheiro. Casa fixa, deixo para depois, porque velho no circo não tem vez. Aí é hora de descansar com a família”.
Altamira Maciel é filha de um palhaço. Com orgulho e sem ofensas. Foi o sergipano Marcelo Medeiros, 31, quem a incentivou a dominar o tecido acrobático. É ele quem, também, a cobra do bambu, bambolê e tantos outros dotes artísticos. Ela quer mais é ser cantora ou “modelo fotográfica”, como diz enquanto encara a câmera. Faz do centro do picadeiro o aquecimento de holofotes que seus 13 anos planejam atrair. Nunca soube o que é casa fincada no chão.
Mora na casa-móvel junto a quatro pessoas e dois cães, “fora os que morreram”, ri. Com destreza, gira a 10 metros do chão antes de revelar querer fazer faculdade em breve “porque modelo e artista tem que saber das coisas”, especialmente ao continuar conhecendo o mundo, parada após parada. No currículo, coleciona circos: Miragem, Roncali e tantos outros. É ela quem resume melhor a filosofia de estreias, picadeiros e nomadismos: “a vida da gente do circo é melhor que a de vocês, da cidade”.
Caso se cumpram, os planos de Altamira destoarão da realidade me que está inserida. Por aqui, o comum é que se encerrem os estudos antes do ensino médio. Com 25 integrantes, este é apenas um de tantos circos que circulam pelo interior do país, mas se extinguem a cada verão. “Me orgulho de não correr atrás de incentivo de governo para lona. O negócio deve ser sustentável”, ensina Cheirozinho.
Ao cair do sol, é hora de acender as luzes e colocar para girar o milho. Os sacos hão de encher e dos lanches vêm uma parte boa do ganho mensal. Oito, nove horas e as cortinas se abrem. Tem até carro em cima do palco para um passeio com o taxista maluco. Roncam motores, tão altos quanto risadas, berros, aplausos, vaias e tantos sons guturais que apenas o entretenimento permite oferecer. Após giros, e poses, e saltos, e rodopios, e agradecimentos, resta comemorar. Com direito a brindes e flertes, e planos, e sonhos, e tempo – este, que falta a tantos.
No meio da madrugada é hora de dormir quase o dia todo. São seres da noite, afeitos ao palpitar no peito a cada movimento, sempre seguido de um sorriso. Não há raivas, nem cólicas, nem pés esquerdos pela manhã até a noite seguinte. E as noites seguintes. E a cidade seguinte. Vão fazendo suas próprias histórias. Vivenciam gente e acenam a experiências. Nessa ordem. “A vida da gente é melhor que a de vocês” – quem há de discordar?
Ed Wanderley
Repórter multimídia
Ed é repórter do Diario desde 2010. É viciado em histórias de gente, daquelas que apenas se senta e ouve. Não leva jeito para palhaço, ainda faz as vezes de equilibrista e só não tenta o Globo da Morte porque acredita que, de fato, morreria.
Rafael Martins
Fotógrafo e videografista
Rafael é um dos mais novos integrantes da equipe de fotografia do Diario. Baiano, se especializou em buscar os melhores ângulos que o interior nordestino pode oferecer.