Com espadas e lutas medievais, recifenses promovem grupos de swordplay na Jaqueira

por

Prática originada nas mesas de RPG tem armas, códigos de ética e até magia em batalhas que transformam o Recife em um grande reino imaginado

 

Em plena luz do dia, espadas cortam o ar e se chocam no Parque da Jaqueira. Cavaleiros se movimentam, braços e pernas são atingidos, ficando inutilizáveis. Um verdadeiro arsenal fica à disposição para esses combatentes, contando com espadas longas e curtas, machados e machadinhas, lanças, arcos e flechas e escudos. Entretanto, sangue e dor são elementos ausentes nesse combate. O som dos metais se chocando é substituído por um de espumas que revestem um cano de PVC. Os lutadores são integrantes do LarPE, grupo pernambucano de swordplay, esporte que simula combates medievais, sempre levando em alta conta a segurança dos participantes e uma espécie de “código de honra”, que estimula a honestidade e a criação de laços entre os guerreiros.

Os primeiros passos para a criação desse grupo de combatentes foram dados há 14 anos, quando o hoje advogado Rodrigo Branco estava no terceiro ano do ensino médio e jogava RPG de mesa com os amigos. O grupo decidiu levar os combates para além da mesa. Em 2005, o LarPE foi estruturado oficialmente. Se as primeiras lutas tinham um número mais limitado de lutadores, hoje os treinos abertos na Jaqueira contam com entre 40 e 60 presentes. A porta de entrada para o grupo acaba sendo eventos voltados para fãs de cultura pop/nerd/geek, nos quais são realizados campeonatos e lutas livres para o público.

 

“A receptividade das pessoas de fora costuma ser muito boa e elas acabam sendo atraídas pela atividade. Gente de todo tipo entra na brincadeira. Muitas vezes gente de oito anos de idade luta com gente de 30”, explica Rodrigo. Para manter esse ambiente acolhedor, algumas regras são sempre observadas. Nas lutas, só se pode atingir os braços, as pernas e o tronco. São proibidos golpes acima do pescoço, genitais e seios no caso das meninas. Ganha o lutador que atingir o tronco ou dois membros. Caso um braço seja atingido, ele deve ser colocado para trás, inutilizável. Já no caso de golpe em uma das pernas, ela também deve ser colocada para trás, só podendo ser arrastada. “A gente também sempre observa o excesso de força. Não precisa de muita força para os golpes, já que só o toque é suficiente. Então, quando a gente vê alguém levando a arma muito acima da cabeça para aplicar um golpe, chegamos logo junto para explicar que não precisa disso”, conta.

Entretanto, mais do que as regras, o espírito de fairplay. Há a cultura entre os lutadores de acusar onde os golpes foram recebidos, até mesmo nos campeonatos, que contam com a presença de juízes. “É algo que eu acho muito ‘massa’, ter honra e assumir quando perdeu, se acusar quando for atingido. Já cheguei nas quartas de final de uma competição e perdi justamente por assumir que tinha levado um golpe que os juízes não viram, eles me agradeceram depois”, conta Raphael Guedes, estudante de ciências biológicas, praticante de swordplay há cinco anos. Segundo ele, a prática do esporte o fez desenvolver várias habilidades, como o uso correto da força, além de precisar trabalhar a velocidade e a percepção, sempre precisando observar a base assumida pelo adversário para tentar antecipar seus movimentos.

Com um ambiente tão convidativo, Raphael levou sua namorada, a estudante Isabela Pessoa, 23, para os treinos. Apesar do receio inicial, ela topou e diz ter quebrado uma série de preconceitos em relação à atividade e seus praticantes. “Eu fiquei com um pouco de receio no começo, fiquei pensando ‘tá, a gente vai pegar umas espadas e ficar se batendo na frente de todo mundo’. Ainda tinha na cabeça aquele estereótipo de nerd chato que não sabe ser sociável. Mas o pessoal foi muito acolhedor, de chegar junto, ensinar e ter paciência com meu jeito atrapalhado”, relata Isabela. Ela gosta de participar dos combates com uma espada curta ou arco e flecha e treina com Raphael em Jardim São Paulo.

b

Regras

Acerto de golpe na região do tronco é considerado letal

Golpes nos membros são considerados não-letais.

Dois membros atingidos implica derrota no combate

Um golpe desferido contra um membro que já foi atingido conta como um segundo ferimento não-letal

Golpes acima do pescoço, nos genitais e nos seios (mulheres) é considerado falta, passível de derrota

Ao ter um membro atingido, ele ficará inutilizável. No casos dos braços, o antebraço deve ficar apoiado pouco acima da cintura. Perna deve ser arrastada caso atingida

Proibido excesso de força e golpear com escudos

Utilizar regiões proibidas para bloquear golpes caracteriza-se como má conduta e é punível com advertência

Há também quem tenha começado bem novo, como é o caso de Magdiel Morais, 14, que começou a lutar aos nove anos de idade.  “O pessoal daqui é muito legal, nunca vi briga, é uma sociedade muito boa, venho esse tempo todo sempre que tem”, afirma. Ele conta que além de ter a oportunidade de participar de campeonatos, até fora do estado, fez amigos que se encontram sempre que podem, além dos treinos. “Eu fui me apegando e hoje gosto muito de estar aqui”, conclui.

Já os estudantes Victor Ayres e Iolanda Lacerda começaram uma história de amor forjada no campo de batalha. O primeiro contato entre os dois foi numa luta em um dos eventos do LarPE, mas não passou disso. Em um evento seguinte, sentimentos surgiram, mas não tão bons. Isso porque Ayres participou de um campeonato e venceu um membro da família de Iolanda. “No dia anterior, ele tinha perdido todas as lutas para meu irmão, João. No dia seguinte, que era a competição, ele venceu e eu fiquei com muita raiva, porque estava torcendo por meu irmão, lógico”, relembra Iolanda. A fúria se prolongou por um bom tempo, quando Victor já estava um pouco mais velho e recebeu autorização dos pais para frequentar os treinos na Jaqueira.  “Ela me odiava muito ainda porque eu ganhei aquela luta, mas também porque eu sou muito chato”, conta.

O tempo fez sua parte. Quando Iolanda passou por um momento difícil, Victor foi a primeira pessoa que foi conversar com a garota, mesmo com toda a raiva acumulada. “Quando ele chegou, eu pensei ‘o que ele tá fazendo perto de mim’, mas a gente começou a conversar e se entender”, conta.  Essa conversa se estendeu por um ano, até se transformar em um namoro, que já conta com dois anos e sete meses.

Estrutura do esporte conta com campeonatos, arsenal e feudos

Em seu funcionamento, o LarPE conta com um arsenal de 80 armas, disponibilizadas aos praticantes mais novos que comparecem aos treinos, já que a tendência é que eles costumem comprar as suas próprias. Os preços vão de R$ 40 a R$ 600. Elas são confeccionadas geralmente utilizando um cano de PVC, revestido com algumas espumas, como de refrigeração e armaflex. Ela é coberta com silvertape e os adornos são feitos emborrachado EVA. São produzidas pelos chamados “ferreiros” e podem ser encomendadas ou compradas nos eventos. O próprio Rodrigo costuma produzi-las, junto a um amigo. Segundo ele, o tempo de confecção varia de acordo com o nível de detalhes das armas. Uma espada padrão, por exemplo, pode ser feita em menos de 30 minutos. Já uma mais detalhada, como a sua Frostmourne, réplica do jogo eletrônico World of Warcraft, leva mais de quatro horas.

Os campeonatos locais costumam ser realizados em eventos de cultura pop. O próximo será realizado no Cidade da Educação apresenta AnimaRecife. Já em nível regional, existe o torneio Odisseia, em que o LarPE já se sagrou vencedor em competições disputadas individualmente ou em dupla. Para além das competições, há outras duas modalidades de jogo: as batalhas campais e o LARP (sigla para Live-Action Roling Play). Nas batalhas campais, há o confronto entre exércitos, que se enfrentam numa área determinada, enquanto no LARP há uma encenação, em que cada integrante assume um personagem. “Quando a gente joga LARP, a gente monta cenário e as pessoas têm fichas sobre seus personagens, com habilidades e até magias. É bem desafiador, você está lá confrontando pessoas e poder perder seu personagem a qualquer momento”, explica Rodrigo.

O reino em que se passa esse tipo de jogo utiliza localidades da Região Metropolitana do Recife para dividir seus feudos.

O legado de um guerreiro comprometido

Hoje, Victor ajuda a coordenar as atividades do LarPE, junto a Rodrigo. Quem também se esforçava e dava maior apoio nessa coordenação do grupo era o jovem Lucas Estevão, ajudando na organização e auxiliando quem entrava no grupo. “Lucas era meu braço direito, ele amava tudo isso aqui e as pessoas daqui”, conta Rodrigo. Logo em seus primeiros momentos no grupo, já ajudava a controlar o pessoal, fazer as organizações; Em 2017, o estimado cavaleiro foi assassinado em uma tentativa de assalto, causando um impacto no LarPE.  

“O grupo sentiu a perda dele de a gente pensar em quase parar as atividades. Todo mundo, sem exceção, conhecia e gostava de Lucas”, conta Rodrigo. Porém uma semana depois, eles se reuniram e voltaram a organizar as lutas. “Tava todo mundo com um fogo para lutar, fazer dar certo, para perpetuar o LarPE, porque era o que ele mais amava. Muita gente está lá hoje por causa dele, começou a fazer o que ele fazia, a tentar liderar, ajudar nas armas, ajudar em tudo”, afirma Rodrigo.  Ele é lembrado como um líder nato, ajudando desde a arrumação das armas até a criação de regras e histórias para fazer o LARP, se entregando de corpo e alma ao LarPE.

Lucas é lembrado pelos membros do grupo por ser gentil quando precisava, ter o tom de autoridade quando necessário, ajudando todo mundo e querendo crescer com o grupo. Para relembrá-lo, o LarPE pretende homenageá-lo nos eventos e realizar um campeonato com seu nome. Nada mais justo para um honrado lutador que sempre esteve disposto a entrar na luta dos companheiros. “Ele queria crescer junto com todo mundo. A gente sabia que quando ele tava lá, ele tava feliz e quando você tá feliz, você gera felicidade nos outros”, conclui Branco.

Rostand Tiago

Rostand Tiago

Repórter

Rostand é estudante de jornalismo da UFPE. Integra a equipe do CuriosaMente desde janeiro de 2017

Marlon Diego

Marlon Diego

Fotógrafo

Marlon  é estudante de jornalismo da UFPE e faz parte da equipe de fotografia do Diario de Pernambuco