Num dos bairros mais associados à insegurança, moradores mantêm casas de muro baixo como forma de resistência
Seja por questões afetivas ou por apego à visão da rua e ao conforto de décadas passadas, habitantes de Jardim São Paulo vão na contramão do Recife que busca altas muralhas para se proteger
O filho de dona Hélia de Abreu, uma senhorinha de 93 anos, trava discussão com ela há anos. “Já cansei de dizer que é melhor subir esse muro”, reclama o bancário Fábio Romero, 61. Ele, que não ousa desobedecer, acata a decisão da mãe que já mora na casa, localizada no bairro de Jardim São Paulo – na Zona Oeste do Recife, há 68 anos. Os motivos dela são simples: ver a rua e conversar sossegada com as antigas amigas sem a sensação de confinamento. Um ato que, ante a crescente construção de fortalezas, se transformou em corajosa resistência.
O filho de dona Hélia de Abreu, uma senhorinha de 93 anos, trava discussão com ela há anos. “Já cansei de dizer que é melhor subir esse muro”, reclama o bancário Fábio Romero, 61. Ele, que não ousa desobedecer, acata a decisão da mãe que há 68 anos mora na casa, localizada no bairro de Jardim São Paulo. Os motivos dela são simples: ver a rua e conversar sossegada com
as antigas amigas sem a sensação de confinamento. Um ato que, numa cidade marcada pela contínua crescente construção de “fortalezas”, transformou-se em ato de resistência. O qual é reproduzido aos montes no bairro da Zona Oeste do Recife, coincidentemente um dos mais vinculados, pelo imaginário popular, à percepção de insegurança pública.
Para o arquiteto, urbanista e membro do Observatório do Recife Pedro Guedes, a grande questão que está por trás dessa relutância é a compreensão da importância do espaço público que ainda resiste na cabeça das pessoas. “Quem levanta muros é uma pessoa que desistiu de viver em comunidade. É alguém que prefere viver em uma aparente penitenciária a ter que abraçar o espaço público”, descreve. “É pânico em formato de tijolo”, acrescenta, enquanto reafirma que cultura como a encontrada em Jardim São Paulo é ponto fora da curva.
Fernando também resiste aos muros altos. A casa onde mora era de sua mãe – que, por toda a vida, teve apego pela “vista para rua”. Após sua morte, o filho não mexeu em qualquer detalhe. A intenção é manter as características do lar e preservar a memória da matriarca, fruto que ela planejou ainda em 1967. Para além do apego afetivo, ele rejeita o levante dos muros. “É muito isolamento”, se queixa. “Se for para falar sobre segurança, a casa da frente – que tem os muros altos – foi invadida um dia desses…”.
Muralhas esculpidas no cimento das ilusões
Tijolo por tijolo, erguem-se muros em volta das casas. Essas, por sua vez, guardam os corpos vulneráveis. Representam, na verdade, o desejo de impenetráveis fortalezas. O que realmente acontece é que, mesmo com altos muros, a insegurança é uma sentença para aqueles que se enclausuram dentro das suas propriedades enquanto a violência corre livre pelas ruas. Parece injusto. Mas é, também, um equívoco. O estudo do pesquisador da Polícia Militar do Paraná Roberson Luiz Bondaruk, constatou que os criminosos preferem as casas de muros altos. Isso porque, quando a residência tem grades, vidros e janelas, suas investidas podem ser observadas por quem passa na rua.
É o que também defende a arquiteta, urbanista e professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Norma Lacerda. Para ela, o isolamento causado pelo concreto que interfere na vista é prejudicial tanto para o morador quanto para o transeunte. “A relação foi proporcional. Com o aumento da violência no Recife, os muros também cresceram. E, assim, a ilusão de afastamento dessa realidade”, pontua.
Na opinião dela, o ideal seria que a Lei dos 12 Bairros, como é popularmente conhecida a Lei de Reestruturação Urbana, fosse aplicada em toda a cidade. “Tornar a rua mais transparente, aconchegante e que permite o diálogo entre o espaço público e privado deveria ser uma obrigação de todo cidadão”, completa. A ideia encontra respaldo na lógica da própria segurança, concorda o urbanista do Observatório do Recife Pedro Guedes: “Os olhos da rua podem ser mais eficazes até mesmo que a própria polícia”.
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das fachadas precisam ser transparente
metros de recuo para edificações que ocupem mais de dois pavimentos
metros é a altura máxima permitida para os muros
O grito que vem dos muros
A cidade é uma casa coletiva. Quando alguém ergue um muro e se exclui da prática da cidadania, ocupá-la e reivindicá-la seria um direito. Inclusive, a criminalização da reação dos que se sentem “agredidos” é um erro, segundo o professor de Arquitetura e Urbanismo da UFPE Roberto Montezuma. Para ele, grupos envolvidos na arte urbana tornam os muros, símbolos da segregação, em verdadeiros protestos, através do grafite ou da pichação. “O muro pode, que restringe a transparência, pode ser entendido como uma opressão. Quando ele vira um painel, estimula que o registro ou protesto ocorra”, defende.
Paulo Ricardo de Andrade, 31, começou a se aventurar nas ruas do bairro de San Martin, na Zona Oeste do Recife, aos 14 anos. A ação subversiva era, para o pré adolescente, um meio de escapar das dificuldades que tinha a relação com a família. “Começou como uma fuga e se tornou minha vida”, conta. Nos anos 2000, trocou o piche pelos desenhos de técnica mais elaborada. Estudava, sozinho, horas em frente ao computador. Hoje, se identifica com a escola de arte cubista, a mesma do renomado pintor espanhol Pablo Picasso.
“Eu vejo um ‘paredão’ branco e quero logo colocar minha arte nele, porque eu sei que posso passar sensações boas para quem caminha pela rua e olha”, defende. Ganha a vida também fazendo desenhos, mas em automóveis e capacetes de motociclistas, oportunidade que, segundo ele, surgiu por causa do destaque conquistado nos muros.
Para preencher um painel, como os praticantes chamam o muro alvo de intervenção, são necessários cerca de 20 sprays, que custam R$ 20 cada. Para conseguir levantar essa verba, os próprios grupos de grafite das comunidades recebem ajuda de patrocinadores e contribuem com os artistas. Além desse apoio, os próprios grafiteiros é que se viram para arrecadar o necessário.
“É um ato de amor”, confessa o tatuador Everton Henrique Silva, o Reca, de 28 anos, que começou pintando em telas, mas se “encontrou” nas paredes do quintal de casa, aos 13 anos.
“Além de criticar o sistema, a gente quer levar mensagens boas àquele trabalhador que está voltando cansado do trabalho. A gente quer dizer que ele pode ter esperança”, explica o jovem, que acredita alcançar a proposta com o grafite.
Membro dos pensadores urbanos da Organização das Nações Unidas (ONU), o professor Montezuma explica que a arte muda de paradigma com o tempo. Antigamente, por exemplo, grafitagem não era considerada um elemento artístico.
Coisa que, futuramente, o piche pode vir a ser. No entanto, a grande questão é que – para além do debate se é ou não arte – as intervenções nos muros escancaram a falta de democracia na cidade. “A cidade é lugar de arte urbana, mas não deveríamos ter muros que nos afastam”, considera.
Um mundo inteiro construído a la Pernambuco
O padrão arquitetônico do Recife é, essencialmente, europeu. Só que, evidentemente, foi adaptado. Diferentemente da disposição europeia de ruas e avenidas largas, a pequena cidade que nascia há 480 anos conservou o conceito de jardins e áreas de convivência na parte posterior da casa, enquanto a porta de entrada ficava colada com a rua – padrão hoje ainda comum fora da capital, como ainda é possível observar no centro histórico de Olinda.
O recuo frontal passou a ser uma exigência da lei desde 1961, quando as primeiras preocupações com a circulação do ar e a necessidade de alargar ruas surgiram. A ideia seria tornar o ambiente mais agradável tanto para quem transita pelas calçadas, como para quem pode observá-los de dentro. É o tipo de resgate histórico que atribui os problemas urbanos mais ao crescimento desordenado do município do que à máxima de que ele foi mal planejado.
Para o arquiteto Pedro Gueres, fica claro perceber esse cenário contraditório entre as ocupações irregulares dos morros e os grandes edifícios na cidade. Guedes chega a comparar a cena ao livro Casa Grande e Senzala, do sociólogo Gilberto Freyre. Quer dizer: os privilegiados vivem nos centros urbanos, enquanto os menos favorecidos ficam, literalmente, às margens.
Longe do padrão norte americano
No caso do uso de muros, o modelo pernambucano nunca seguiu moldes norte-americanos. Aqueles com longo gramado verde, caixa de correio perto da calçada e ausência completa de “proteções de concreto”, ideal comum no imaginário popular sobre residências nos Estados Unidos (EUA). O mais intrigante é que, embora o país tenha uma cultura individualista enraizada, a justificativa de que os muros geram “privacidade” não convém – como é o caso dos brasileiros.
Isso tem uma explicação urbanística, antropológica e social sobre sua noção de propriedade privada e pública rigorosamente definida. “É tão estabelecido em suas vidas que um muro não se faz necessário para cumprir o papel de ‘delimitador de espaço’”, completa Guedes, destacando ainda que a colonização britânica nos EUA foi diferente do caráter exploratório dos portugueses no Brasil, incluindo programas de habitações no país da América do Norte. No entanto, com o tempo e a independência do país, outras particularidades dos estadunidenses se tornaram peculiares. Como, por exemplo, o porte de arma ser liberado atualmente.
“É natural que, com a concessão de armas e a autorização de tirar a vida de qualquer um que ‘ameace’ sua propriedade, a realidade de casas abertas seja mais comum”, pontuou o arquiteto. No Brasil, por sua vez, a saída que as pessoas enxergam é subir desenfreadamente seus muros.
Tatiana Ferreira
Repórter
Tatiana é estudante de Jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco e integra a equipe do Diario desde agosto de 2017.
Thalyta Tavres
Fotógrafa
Thalyta é estudante de Fotografia na Universidade Católica de Pernambuco.
Peu Ricardo
Fotógrago
Peu integra a equipe de fotografia do Diario desde novembro de 2015.
Gabriel Melo
Fotógrafo
Gabriel é estudante de Rádio e TV na Faculdade Guararapes.
Marlon Diego
Fotógrafo
Marlon é estudante de Jornalismo na Universidade Federal de Pernambuco.