Tapioca tipo exportação: de Pernambuco para o mundo
Produto típico nordestino hoje está presente em hotéis de todo o país e começa a ganhar espaço no exterior
Goma de mandioca, uma chapa bem quente e recheios diversos. Não precisa de muito para fazer uma tapioca. Talvez também por isso, além do sabor, é claro, a iguaria tem convivido com mudanças em seu perfil de consumo. De alimento regional passou a ser encontrado em diversos restaurantes, feiras e hotéis de todo o país. E as fronteiras nacionais não são as únicas ultrapassadas pela tapioca, o seu sabor característico vem cada vez mais marcando presença mundo afora.
São 8.135 quilômetros de distância entre Recife e Berlim. Esse foi o trajeto percorrido pela recifense Mariana Pitanga que junto com o marido, o alemão Peter Westerhoff, decidiu, há um ano e quatro meses, iniciar o projeto da Tapiocaria, restaurante itinerante que, como o próprio nome indica, tem a iguaria como especialidade.
A empreitada começou no Markthalle Neun, mercado na região de Kreuzberg, em Berlim, por meio de um festival de comida de rua realizado todas as quintas-feiras. Na ocasião, a iniciativa ainda não contava com nenhum stand de comida brasileira. “Então decidi preparar uma apresentação e me inscrever no site do mercado para tentar uma vaga. Quando estava pensando em que tipo de comida faria, tive a ideia de fazer tapioca, afinal, sou pernambucana e é algo superautêntico da gastronomia brasileira e principalmente na minha região. E, além disso, nunca tinha visto tapioca na Alemanha”, relata Mariana. Após degustação, a recifense passou a ocupar o espaço duas vezes por mês.
Para Mariana, abrir uma tapiocaria e cair no gosto alemão não parecia uma tarefa simples e rápida, mas acabou saindo melhor que o esperado. Do receio inicial, gerado pelo temor de que a tapioca demoraria a agradar, veio a surpresa no dia da inauguração. “Eu achei que demoraria bastante os alemães e turistas que frequentavam esses mercados viessem provar a tapioca, mas tudo aconteceu muito rápido, e já no primeiro dia vendemos tudo e ainda tinha fila no nosso stand”, conta a recifense.
Atualmente a Tapiocaria conta com três brasileiras na cozinha, além do casal, e participa com stand em eventos de comida de rua em quatro mercados de Berlim e agora conta também com um food truck, que facilita a expansão do sabor para cidades vizinhas como Bremen, Düsseldorf, Mannheim e Heilbronn. Em setembro, a tapioca será apresentada também em Zurique, na Suiça.
O primeiro passo para o preparo de um prato é ter à disposição os ingredientes necessários. E se em Pernambuco encontrar a goma de mandioca é uma tarefa simples, o mesmo não se pode dizer da Alemanha. A sorte de Mariana é morar na cosmopolita Berlim, onde podem ser encontrados alimentos de todo o mundo, o que facilita um pouco a tarefa. “Um pouco” porque ela tem que comprar o polvilho seco em mercados de especiarias asiáticas, hidratá-lo e peneirá-lo para então obter a goma para a tapioca, que conta com alguns sabores diferentes como a vegana (com recheio de soja granulada, beringela, tomates, ervas e rúcula) e a Caprese (muçarela fresca, tomate e manjericão), além das tradicionais queijo com coco e Romeu e Julieta (queijo e goiabada). Outro sucesso pernambucano é a tapioca de carne de sol. “Eu mesma preparo, pois não encontramos a carne já seca aqui”, conta Mariana.
Tapioca emagrece. Será mesmo?
Consumir tapioca nem sempre pode significar estar “de dieta”. Isso porque a iguaria possui um índice glicêmico (velocidade com que o açúcar alcança a corrente sanguínea) de 115, mais alto, por exemplo que o chocolate, o sorvete ou mesmo a batata frita. A informação é da chefe do departamento de nutrição da Universidade Federal de Pernambuco, Alva Livera, o que significa que o alimento não é dos mais indicados para diabéticos, hipertensos, obesos ou pessoas com alterações nas taxas de colesterol, triglicerídes e glicemia.
Mas calma. Isso não quer dizer que consumir esses alimentos é mais saudável que consumir tapioca. Primeiro porque a iguaria nordestina é um alimento natural, além disso, existe também a possibilidade de minimizar o IG, aliando alimentos ricos em fibras como a aveia e a linhaça ao preparo da massa. A questão é que com a crescente febre fitness nas redes sociais não é raro se deparar com postagens exaltando o modo correto de exercícios ou alimentação. E o público corresponde. A grande quantidade de pessoas que buscam melhorar o corpo e incorporar práticas mais saudáveis ao dia a dia acaba criando verdadeiras celebridades do universo digital. Entre os alimentos, a tapioca tem se consolidado como “queridinha” dessas personalidades e caindo no gosto de quem busca uma alimentação saudável, sendo apontada como substituta ideal para o pão, por exemplo.
Para a nutricionista, o que existe hoje é uma supervalorização da iguaria. “Quando focamos na questão da saúde, verificamos que o modismo em utilizar a tapioca como alimento fitness e também como auxiliar no combate ou prevenção de algumas doenças, pode não alcançar os seus propósitos. A goma de tapioca possui como nutrientes, praticamente, carboidratos, na forma de amido, sendo semelhante ao amido de milho comercializado como Maisena”, avalia. Ainda de acordo com ela, levando em conta a composição de nutrientes, alimentos do mesmo perfil de consumo como a farinha de trigo e o fubá de milho, possuem um quadro nutricional mais amplo.
A chave portanto não é encará-la como uma substituta permanente de outros alimentos, mas sim, incorporá-la para que se tenha uma maior variedade. “A variedade é uma das leis básicas na elaboração de uma alimentação saudável”, aponta Alda.
Mais um ponto que deve ser esclarecido: a tapioca, em si, não emagrece. Na iguaria não são encontrados compostos bioativos que poderiam promover um maior gasto calórico, esclarece a nutricionista. Dessa forma, assim como ocorre com outros alimentos apontados como “fitness”, o acompanhamento é determinante, para que, de fato, haja contribuição para a redução das medidas. Recheios que contribuam com proteínas, vitaminas, minerais e compostos bioativos são bem-vindos, ao contrário dos ricos em gordura, sal e açúcar.
De onde vem a moda?
Glúten-free
Para quem sofre de intolerância ou possui alergia ao glúten, a tapioca é uma boa opção. Como é isenta do nutriente, aparece como uma boa alternativa, mas sempre priorizando recheios saudáveis que incorporem mais ao alimento.
Para quem não possui essas restrições, a incorporação da tapioca à dieta é livre, mas sem colocar nela uma expectativa desproporcional. “Aconselho a quem prática exercícios físicos regulares ou está em processo de reeducação alimentar, a fazer um plano alimentar individualizado com um nutricionista para que possa consumir adequadamente a tapioca, mas sem atribuir-lhe efeitos milagrosos”. Inclusive, para os praticantes de exercícios intensos a tapioca é uma boa pedida. Justamente pelo seu alto índice glicêmico, é capaz de oferecer energia que será queimada rapidamente.
A tapioca mais famosa do Brasil
Pensou em tapioca, pensou no Alto da Sé. Um dos principais pontos turísticos de Olinda é também o local das mais famosas tapioqueiras do Brasil, consideradas desde 2006, pelo Conselho de Preservação do Sítio Histórico da cidade, Patrimônio Imaterial e Cultural. A reverência à tapioca e às tapioqueiras não é por acaso. De acordo com pesquisa da Fundaj, Olinda contava, desde meados do século XVI, com casas de farinha, responsáveis por popularizar o consumo dos derivados da mandioca.
Especificamente no Alto da Sé, o início das tradicionais tapioqueiras se iniciou na década de 70, com Dona Conceição, que usava a venda da iguaria para se sustentar. Em meio à ditadura militar, o Alto da Sé era considerado um dos pontos de agitação de Olinda, frequentado por estudantes, intelectuais, políticos e artistas. Depois disso veio a consolidação, com o crescimento do turismo na cidade impulsionado pelo carnaval. Atualmente, o Alto da Sé conta com 40 tapioqueiras. Algumas você conhece agora.
Patrimônio
Também em 2006, Olinda foi considerada a primeira capital brasileira da cultura. Antes disso, em 1982, a cidade ganhou o título de patrimônio imaterial da humanidade, concedido pela Unesco.
A tapioqueira do governador
Dona Bia conta que conheceu o ex-governador Eduardo Campos no Rio de Janeiro, em um evento que promovia a cultura pernambucana. Desde então, toda vez que ele ia até o Alto da Sé sempre procurava a sua barraca. “Quando ele veio para inauguração da caixa d’água da Compesa, ele disse que ‘se não fosse a tapioca da Bia não tava de pé'”, relata orgulhosa. as trinta décadas de dedicação ao preparo da iguaria já lhe rendeu convites para eventos pelo Brasil e até no exterior. “Já fui até pra Alemanha pra divulgar a Copa do Mundo”.
Poder público em falta
“Tem dia que o movimento é fraco, a gente não fica nem com dinheiro pra comprar carvão pro outro dia”, relata Ionar Andrade da Silva. Natural de Alagoas, veio para Olinda ainda criança há mais de 40 anos, desses, 28 como tapioqueira. Ela conta que é da venda de tapioca que tira o sustento dos dois filhos e reclama das gestões governamentais para atrair público ao Alto da Sé. “Falta apoio da prefeitura, não tem nada diferente, nenhuma atração. Se tivesse, viria muito mais gente”.
Mantendo viva a tradição
Aos 75 anos, Maria José, mais conhecida como Dona Zeinha, nasceu e se criou em Olinda. “Só saio daqui quando morrer”, conta sorrindo. Ela relata orgulhosa que, mesmo com o passar do tempo, continua firme e forte no serviço que ocupa suas tardes e noites diariamente. “Todo dia estou aqui, eu nunca fico doente”. Apesar da disposição, já conta com a ajuda da filha que além de ajudar no trabalho, permite que a tradição continue viva. “Aqui é assim, de mãe passa pra filha, da filha passa pra neta”.
Uma vida de goma e carvão
Benedita Albuquerque, conhecida como Bené, esbanja simpatia. Hoje aos 47 anos, desde os seis se dedica ao preparo da tapioca. Primeiro acompanhando e ajudando a família, agora com a própria barraca. “São 41 anos trabalhando”, relata sorrindo. Conhecedora dos ciclos de altas e baixas do movimento, espera ansiosa pelas “vacas gordas”. “Junho é mês de chuva, julho ainda melhora um pouquinho por causa das férias, mas em agosto cai muito de novo. Cresce mais de setembro até o carnaval tem bastante movimento”.
Uma história mais antiga que o Brasil
Se até chegar a Alemanha a tapioca percorreu mais de 8 mil quilômetros, para consolidar a sua presença na culinária brasileira passou por um processo que já dura mais de 500 anos e alguns percursos (não tão longos) percorridos. Originária da América do Sul, a mandioca surge no Brasil na região Norte, onde hoje estão os estados do Pará e do Amazonas e, também, no sul da Bahia e nordeste de Minas Gerais. Coube aos indígenas, que tinham na mandioca o principal ingrediente da sua dieta, levar o tubérculo para outros lugares, inclusive Pernambuco. De acordo com pesquisa da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), já no século XVI, os índios utilizavam a mandioca para fabricação do beiju, alimento do qual a tapioca é derivada. Em documento datado de 1551, durante visita a Pernambuco, o padre jesuíta Manoel da Nóbrega, já menciona o beiju e as farinhas fabricados pelos povos indígenas.
Origem
Diz a lenda tupi que uma índia virgem deu à luz uma menina muito branca e colocou nela o nome de Mani. A indiazinha morreu ainda bem jovem e foi enterrada dentro da própria casa. Ali, naquele túmulo improvisado, nasceu um tubérculo a que chamaram mani’oka – a casa de Mani.
Para os índios, a mandioca era considerada uma das maiores riquezas da tribo. “Quando mudavam de lugar, por cansaço das terras ou risco de invasão inimiga, todo o mandiocal era transformado em farinha e levado na viagem, entre os mais preciosos bens da tribo”, explica a pesquisadora e escritora Maria Lecticia Cavalcanti, em seu livro História dos Sabores Pernambucanos. Com a colonização, os portugueses passaram a consumir e adaptar alimentos originalmente indígenas. Com o tempo, a mandioca foi de tal forma incorporada ao cardápio dos colonizadores, que fez parte do “primeiro programa de substituição de importações”. O Frei Vicente de Salvador, um dos principais historiadores do início da colonização sugeriu que os colonos promovessem a substituição do trigo pela farinha de mandioca, do azeite de oliva pelo de dendê ou de coco, e do vinho pela cachaça.
Com o tempo, o beiju, inclusive, passou a fazer parte da alimentação da tripulação das caravelas que deixavam o Brasil. Segundos relatos do colonizador Gabriel Soares de Souza – documentados no livro de Maria Lecticia – “beijus muito torrados” duravam mais de um ano sem estragar ou esfarelar. Mas foi a partir do “aperfeiçoamento” do beiju, realizado por cozinheiras africanas e portuguesas que surgiu a tapioca como é reconhecida hoje. “Por mãos da cozinheira portuguesa, tudo foi sendo aperfeiçoado e requintado. O beiju ficou mais fino e mais seco”, relata Maria Lecticia.
De acordo com Roneide Gonzaga, gastrônoma especialista em Cultura Pernambucana, com o tempo, a manteiga foi incorporada à tapioca, mas a forma de preparo permaneceu a mesma, com o uso da goma numa superfície quente para que ocorra a coagulação e a formação da iguaria. A grande modificação ocorreu mesmo nos recheios, do tradicional coco com queijo para diversos ingredientes salgados ou doces. “Com os novos hábitos de consumo, com certeza ela vem crescendo e se espalhando cada vez mais. Principalmente por estar sendo explorada de diversas formas em todos os tipos de estabelecimentos que trabalham com alimentos, seja na forma tradicional, em meia lua, seja em preparos diversificados”, ressalta Roneide.
João Vitor Pascoal
Repórter
João é estagiário do Diario há quase dois anos, com passagem por Política e, atualmente, no projeto CuriosaMente, da célula de dados do jornal. É amante de uma boa tapioca, especialmente na hora do jantar.
Guilherme Veríssimo
Fotógrafo