O morro de Sevi: o embate comunidade x ditadura que redefiniu a história do Morro da Conceição
Em pleno regime militar, a comunidade do Morro da Conceição se articulou, sob batuta de uma Igreja Católica revolucionária, para lutar por seus direitos. Décadas depois, o local ainda é lar de pessoas que guardam um histórico que mistura tanto fé quanto resistência
“Estamos chegando do fundo do medo/
estamos chegando das surdas correntes/
um longo lamento nós somos/
viemos louvar”.
Os versos integram a abertura da Missa dos Quilombos, concebida por dom Pedro Casaldáliga, Pedro Tierra e Milton Nascimento e estão acomodados no livreto com todos os cantos da cerimônia, sob a mesinha da varanda da aposentada Severina Paiva de Santana. Ela separou alguns documentos que ajudam a contar a formação de sua comunidade, o Morro da Conceição, onde é conhecida como Sevi. Lá, as ladeiras modestas, a vizinhança pacata e o olhar compassivo da Virgem, escondem uma história de luta pela dignidade em pleno regime militar. Um passado de ações individuais, mas também de atuação de uma igreja engajada politicamente no que diz respeito às mudanças sociais de um dos períodos mais nebulosos da história recente do país.
“Nunca tive medo da ditadura. Uma cristã não tem medo”, assevera, com uma força denunciada na consistência da didática estruturação do discurso. Nascida há 80 anos, no Engenho Oriente, em Ferreiros (PE), Dona Sevi chegou ao Morro da Conceição nos anos 1950, aos 15 anos. “O morro não era esta ‘cidade’. As casas eram mocambos, não havia iluminação nem calçamento. Quando chovia, as ladeiras de terra escorregavam muito – a gente se agarrava nos capins para descer para Casa Amarela e buscar água”. Para vencer as dificuldades, contava com a formação católica catequista e, ao mesmo tempo que ensinava os vizinhos a ler, se formou professora.
Pessoas como Dona Sevi compunham uma realidade que favoreceu o surgimento da resistência à ditadura no Morro da Conceição. Em 1964, dom Helder Camara foi nomeado Arcebispo de Olinda e Recife e, cinco anos depois, criou o Movimento de Evangelização Encontro de Irmãos. Influenciado pela insurgente ala progressista da Igreja Católica, ele criou grupos que tinham como objetivo oferecer ao povo uma formação política consistente. “Ele trouxe irmãs estrangeiras para dar aula pra nós (sic). Uma vez por semana, lia-se a palavra para conscientizar as pessoas da importância de se ter uma vida plena, como defendia Jesus, de que tínhamos direito a água em casa, ruas calçadas, filhos na escola”, completa.
Vista aérea do Morro da Conceição mostra modelo de ocupação na década de 1970
Pátio da igreja do Morro
No Morro, a pedra fundamental da Igreja progressista foi lançada pelo Padre Geraldo Leite Barros, o primeiro da paróquia da Virgem da Conceição, nomeado em 1973. Lembrado pelo carisma e pulso firme engajou as pessoas na luta por melhorias na qualidade de vida. O vigário foi sucedido pelo Padre Reginaldo Veloso, que assumiu seu lugar em 1978. Egresso de Roma, onde participava das discussões acerca do Concílio do Vaticano II, o novo pároco manteve a população engajada. “A gente fazia um trabalho aberto, não era clandestino. Todas as novas reivindicações seguiam para as autoridades competentes”, coloca o padre Reginaldo. As críticas ao regime durante as reuniões, no entanto, eram recorrentes. “A gente olhava para a realidade e via que nossos problemas não existiam porque Deus queria, era má gestão política, má administração… O povo se dava conta da exploração própria do capitalismo, tomava consciência da repressão e do medo aos quais estávamos submetidos”, lembra.
“Na palavra, nós começávamos a conscientizar o povo de que o que tivesse em Boa Viagem, poderíamos ter no Morro da Conceição. Se você se conscientizasse, já estava apto a criar sua própria turma e passar os conhecimentos adiante. Sem violência- dom Helder nunca a estimulou. Era o dom do amor.”
A importância política do movimento, atraía ameaças. Dona Seví conta que, não raro, policiais se disfarçavam de mendigos para rondar a comunidade. “Outros chegavam nas viaturas e observavam a Igreja. ‘Por que o tapete vermelho?’, perguntavam. Era uma loucura, achavam que tudo era comunismo. Ao contrário do que eles queriam, fazíamos questão de entoar o canto de Maria, a magnífica: ‘abate os poderosos de seus tronos e eleva os humildes’”, cantarola.
O contexto Igreja + política: uma receita antiga
O pesquisador especialista em história da Igreja Católica no Brasil, Edvaldo Vieira de Souza Júnior, explica que, entre os anos de 1962 e 1965, o Papa João XXIII promoveu o Concílio Vaticano II, considerado por muitos estudiosos como um dos encontros que mais transformações trouxe à Igreja. “O contexto de guerra fria, de avanço do comunismo, que é ateu, provocou grandes reflexões. A discussão era aumentar ou não abertura a esta ideologia para não perder fiéis. Houve uma abertura da Igreja para as camadas mais populares e uma parcela dos padres começou a ver Jesus como um ser político, além de religioso”.
À luz de uma nova perspectiva, a teoria da libertação, portanto, passa a incorporar à Igreja a função de se tornar um agente de transformação social. “É como se o pobre estivesse sendo colocado dentro da Igreja. O padre não é mais enclausurado, precisa ir para campo, politizar a massa. Essa Igreja foi muito perseguida porque usa o marxismo para explicar a necessidade popular de se unir para lutar”, comenta o estudioso. Apesar disso, os religiosos não se diziam comunistas. “A parte da teoria que servia para interpretar as estruturas da sociedade foi tomada, mas o ateísmo foi rechaçado”, esclarece.
O povo, a resistência e a ocupação
Com o tempo, os centros de evangelização passaram a coexistir com as Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s), que reuniam a população para articular ações de cunho social. Antecessoras do pluripartidarismo e contemporâneas de um período em que MDB e Arena eram os únicos partidos com autorização da ditadura para concorrer nas eleições, acabaram por se tornar um grande espaço de discussão para os dissidentes do regime. Entre as grandes lutas das CEB’s que mudaram os rumos do Morro da Conceição, está a luta pelas “Terras de Ninguém”, como eram conhecidos os 20 mil lotes que compreendiam os bairros de Casa Amarela (ao qual o Morro era vinculado), Macaxeira, Nova Descoberta e Mangabeira. “Surge um movimento em defesa das famílias que haviam chegado das zonas rurais e passaram a ocupar aquele território, antes, Engenho Pantaleão do Monteiro”, introduz o pesquisador Edvaldo Vieira.
“Em todas aquelas terras havia uma dominação da Empresa Imobiliária de Pernambuco e da família Marinho, que se dizia herdeira legítima dos lotes e cobrava juros anuais à população de porta em porta. Descobrimos que a posse do terreno era bastante questionável e saímos às ruas, todo sábado à noite, pedindo que as pessoas não pagassem o que era cobrado”, lembra o Padre Reginaldo.
Entre os envolvidos na causa, estava o ex-prefeito do Recife, João Paulo, que foi militante da Juventude Operária Católica (JOC), posteriormente, da Ação Operária Católica e reconhece a influência das CEB’s em sua história política.
“Essas comunidades deram uma grande contribuição à resistência, que era popular, educativa e organizada. Muitas lideranças surgiram delas”.
Apenas em 1980, o governador Marco Maciel comprou as terras aos que se diziam seus proprietários. O Morro da Conceição era do povo. A vitória foi acompanhada por outras. A professora Helena Lopes de Almeida, mora no morro há 45 de seus 70 anos e lembra bem do processo de mudança pelo qual a comunidade passou. “Naquilo que estava mais precário, a gente começava a reivindicar. Quando pedimos barreiras e não fomos atendidos, construímos com nossas próprias mãos. O nosso conselho de moradores, que muito ativo, é fruto das discussões que começaram da falta d’água. Brigamos e ela chegou”. Com a água, vieram as escolas, o calçamento, a iluminação e, recentemente, um posto policial. O Morro da Conceição foi transformado”. Quando questionada a respeito de quem promoveu a mudança, Dona Helena não hesita: “a participação popular”.
Marília Parente
Repórter
Marília é estudante de jornalismo da UFPE. Escreve para o Diario desde 2014, na maior parte do tempo para a editoria Vrum. Integra a equipe de dados do jornal desde fevereiro de 2016. É bairrista de Casa Amarela e não aceita que o Morro não faça parte do bairro. “Isso é coisa da prefeitura…”
Peu Ricardo
Fotógrafo
Peu é fotógrafo da equipe do jornal. Integra o setor no Diario desde 2015. Sua relação com o Morro é significativa o bastante para ter, inclusive, tomado bicicletas emprestadas para andar sobre duas rodas sob a bênção de Nossa Senhora (ela perdoou)…