O heroísmo diário de desafiar uma Olinda não acessível
Ignorar limites é mais difícil quando a estrutura municipal não oferece condições humanas para promover cidadania, mas há quem se recuse a abdicar do direito de ir e vir
Entre uma imensidão de carros, buzinas frequentes e numerosos buracos, um homem controla uma cadeira de rodas e de longe parece desbravar sem medo o trânsito caótico de Olinda. Com olhar forte – e ao primeiro momento sem demonstrar muita simpatia -, Rômulo Veras, 63, luta diariamente por espaço ao lado dos carros.
Com a cadeira, motorizada, desce sozinho a rampa de um supermercado e segue em direção à pista. Conduz, com atenção, em sua “faixa”. Ao passar pelo cruzamento, faz o carro esperar e exige a preferência que não aparentava estar nos planos do motorista. Rapidamente, segue para outra faixa e espera, em um resquício de sombra, o verde do semáforo de pedestres. Chega então a uma hortifruti, as demais compras penduradas atrás da cadeira – uma espécie de capa do super-herói da vida moderna, comumente vestida em seu dia a dia.
Rômulo perdeu o movimento das pernas aos 33 anos. Continuou trabalhando como fiscal de obras e construções, uma vez que seu trabalho já era realizado dentro da empresa. “Grande parte do meu trabalho era interno. Um carro da empresa vinha me buscar e me deixava em casa”, conta. Aos 43, aposentou-se, mas seguiu fazendo freelas, como a administração do condomínio. “Eu não era o síndico do prédio, mas ficava responsável pelas contas”, explica.
A um olhar inciante, a destreza de andar junto aos carros pode passar a impressão de um cidadão destemido, mas a realidade é um pouco diferente. Eu não tenho medo de ir sozinho, mas existem muitos problemas. A calçada é cheia de buracos. Já quebrei a cadeira três vezes e quando isso acontece, preciso ligar para casa e pedir ajuda”. Além disso, os carros são o problema mais eminente: “Uma vez, um carro tirou um fino. Na verdade, ele meio que bateu de raspão na cadeira, mas não cheguei a me machucar. Mesmo sendo perigoso, preciso enfrentar. Não posso ficar em casa”, disse.
Para vencer longas distâncias, depende de ônibus e táxis: “Nunca tive carro e o transporte é muito complicado. Os táxis não querem levar a cadeira e os ônibus estão com os elevadores constantemente quebrados”, afirma. A limitação motivou a troca de automóveis pela cadeira motorizada. Dessa forma, marca compromissos nas redondezas de sua residência e não abre mão dos passeios diários: “Ninguém aguenta ficar só em casa, no computador. Por isso, saio para dar uma volta na praça, na praia, sozinho ou acompanhado”.
Casado e pai de três filhos, Rômulo enfrenta mais que a falta de estrutura da cidade. “Estávamos voltando do médico e passamos em frente a um mercadinho que estava sendo assaltado. Eles também nos renderam e levaram até os exames.”, conta perplexo sobre o episódio de março de 2016. Além disso, há o comportamento das pessoas na rua. “Tem gente que passa fingindo não ver. Acredita que está muito apressado ou que não tem tempo. Claro que alguns param e ajudam, porque sempre tem uma rampa e um obstáculo mais complicado”, avalia.
Nesse meio tempo, coleciona contatos. “Muita gente acaba parando para conversar na praia, no calçadão. Alguns até tentam dar conselhos. Diz que não devo sair por aí sozinho, mas explico não ter alternativa e que essa não é uma opção”, reitera. Coisa de super-herói…
Mayra Couto
Repórter
Mayra é estudante da Aeso – Faculdades Integradas Barros Melo. Escreve para o Diario desde janeiro de 2016, na equipe de dados do jornal, no projeto CuriosaMente. É interessada em histórias de gente comum e pautas ligadas aos Direitos Humanos.
Karina Morais
Fotógrafa
Karina integra a equipe de fotografia do Diario de Pernambuco.