Esperança materna: amor conjugado no mais-que-perfeito

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Mãe de Aryane, menina com osteogênese imperfeita, doença dos “ossos de vidro”, Lidiane enfrentou obstáculos para dar à filha oportunidade de andar

 

“Sentei na cadeira e cochilei”, desabafa a cansada voz de Lidiane Cruz, 36, no hospital, após mais uma longa viagem de ambulância da zona rural de Lages, em São Lourenço da Mata ao Recife. Nas horas seguintes, a filha Aryane, 5, seria submetida à complicada cirurgia em que teria os ossos das pernas quebrados por completo. Neles, uma haste importada passaria a adaptar-se ao crescimento da garota, dando mais sustentação e reduzindo a probabilidade de fraturas. Antes, clavícula, fêmur e outras partes do corpo da criança partiam-se em simples banhos, freadas bruscas de carro a caminho da escola e sessões de fisioterapia. É uma esperança contra a osteogênese imperfeita, síndrome rara consequência de uma má produção de colágeno (tipo 1) que torna os ossos frágeis como vidro.

Ao longo de cinco anos, Lidiane precisou ser mais que mãe, pedagoga ou que encarregada por levantar R$ 70 mil necessários para promover qualidade de vida à filha: ela foi condutora do desenvolvimento da garota que todos os dias contraria estatísticas. Ainda durante a gravidez, deformidades no feto e exames intrauterinos detectaram o tipo dois da osteogênese, o mais grave. Aryane não sobreviveria ao parto. “Se ela vai nascer morta, puxar o feto é mais fácil do que fazer a cirurgia”, disse o primeiro médico ao negar-lhe o direito a uma cesárea. Desde aquele dia, Lidiane se recusou a aceitar não prover qualidade de vida para a filha, prova que, às vezes, ninguém sabe mais que uma mãe.

As sessões de fisioterapia e internações a cada quatro meses para injeções de pamidronato, responsável por fortalecer o esqueleto, não bastavam. Aryane não tinha mais forças para andar. Ali começava a luta por hastes telescopadas, implantes ajustáveis encaixados dentro dos ossos para dar sustentação às pernas, permitindo não apenas liberdade, mas independência.

 

Dificuldade para a menina é rotina. Nem o começo da escola foi fácil: fraturou o fêmur depois de um coleguinha pisar acidentalmente na perna dela. Hoje, tem professora voltada para ajudá-la e as visitas ao Imip, cada vez menos frequentes, são quase uma explosão de felicidade e inspiração. Se perguntam o que quer ser ao crescer, ela é categórica: “Quero ser doutora”.

tipos diferentes de osteogênese imperfeita são conhecidos

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desses estão entre o tipo 1 e 4

A determinação parece ser de família. À mãe, foram oferecidos 70 mil obstáculos. Um para cada real que o serviço público de saúde não investiu na cirurgia de Aryane, dado o alto custo. E a renda de uma pedagoga desempregada há um mês e casada com um agricultor, com dois filhos para criar não inspira muita confiança.

Tipos de osteogênese imperfeita

Tipo 1

O mais “leve” de todos os tipos. As fraturas costumam a ser mais raras e surgir quando a criança começa a andar e fazer movimentos mais “perigosos”.

Tipo 2

O mais grave da doença. Quase todas crianças não sobrevivem ao parto ou têm uma estimativa de vida curta.

Tipo 3

O tipo mais grave entre as crianças vivas. A maioria não consegue andar e precisa de cadeira de rodas. Fraturas constantes.

Tipo 4

Um intermediário entre o 1 e 3. As fraturas podem não surgir com tanta frequência, mas, ao contrário do número 1, o paciente apresenta problemas de estatura.

Mas inverter a matemática que já contabiliza 27 dolorosas fraturas, mais de cinco para cada ano vivido por Aryane, permitindo-a andar, é mesmo uma missão para quem, durante oito meses, segurou a própria filha com auxílio de um travesseiro por medo de quebrá-la; para quem tem mais força que o impacto de um diagnóstico, que um mês inteiro de internação na UTI ou que incontáveis horas viajando de ambulância. A esse tipo de gente, o destino dá um força.

Os “anjos”, como ela costuma chamar, ajudaram expondo a situação nas redes sociais, fazendo campanha nas ruas e semáforos, ou garantindo viagens até o Recife. “Conseguimos criar uma página no Facebook, fizemos shows beneficentes, bazar, vendemos camisas, canecas, recebemos doações”, lembra a mulher que, em um ano, conquistou R$ 70 mil pela saúde da filha.

As hastes, encomendadas dos Estados Unidos, chegaram com outra dificuldade: num convênio particular, a intervenção sairia por mais R$ 30 mil – metade para cada perna. Para a realização da cirurgia foi necessário recorrer a processo judicial contra o Sistema Único de Saúde. Os advogados e requisições foram apenas mais uma montanha de “nãos” que decidiu ignorar desde o dia do parto. A mesma voz cansada que atende o telefone diz não ter medo dos obstáculos. Agora todo dia é uma nova conquista. Observa Aryane levar a vida mais normal que pode, com direito a ir à escola do bairro e sonhar em ser médica quando crescer. “Minha filha pode ser especial no corpo, mas ela tem uma mente igual à de todos nós”, diz, enquanto a menina descansa na UTI pediátrica do Imip, depois de ter as pernas operadas. Mais três meses serão necessários para o pós operatório da criança, depois disso, ela deverá andar novamente. Serão dias dolorosos para mãe e filha, mas não é à toa que a menina carrega, como segundo nome, a palavra Vitória.

 

Cirurgia é esperança, mas não garantia

 

 

A cirurgia de hastes telescopadas não é indicada para todos os pacientes que sofrem de osteogênese imperfeita, apenas para casos mais graves, como o de Aryane, nos quais a frequência de fraturas e a densidade dos ossos impede o indivíduo de realizar atividades básicas como andar. Aos cinco anos, a menina está no momento indicado pela maioria dos médicos para ser submetida ao procedimento. “Alguns trabalhos já mostram essa cirurgia realizada em crianças de um ano e meio, mas eu indicaria entre cinco e seis anos”, afirma o ortopedista pediátrico do Hospital das Clínicas Luiz Felipe Albanez.

Responsável por inserir duas hastes no osso, de espessuras diferentes e com encaixes de ajuste natural, o procedimento já é mais avançado que intervenções anteriores, que utilizavam hastes estáticas, constantemente substituídas. Esperança para muitos, nem sempre ela é bem-sucedida. “Esse mecanismo de telescopagem nem sempre funciona, é quando encontramos a telescopagem negativa, em vez de acompanhar o osso, ela trava”, explica.

O erro na telescopagem pode ser consequência de uma série de fatores, entre eles, a má qualidade do osso que nem sempre oferece a fixação necessária para a expansão das hastes. “A ideia é muito boa. O princípio é muito bom, mas os aperfeiçoamentos do hardware ainda são necessários”. A pouca quantidade de cirurgias do tipo realizadas no País também é um ponto contra, já que muitos médicos têm menos referências locais e exemplos de pós-operatório.

O procedimento é doloroso, assim como as fraturas sofridas pelos pacientes ao longo de uma vida sem a cirurgia, mas uma das partes mais complicadas é o pós-operatório. Como a intervenção envolve a quebra completa do fêmur, a criança precisa ficar imobilizada, o que pode comprometer movimentos futuros. “Uma pessoa com osteogênese já tem uma deficiência na qualidade do osso. Quanto mais tempo sem andar ou ficar de pé, mais essa qualidade será prejudicada”, explica Albanez.

Um dos poucos casos de hastes telescopadas implantadas no Brasil foi realizado no Paraná. A curitibana Andreia Giroldo, por intermédio da defensoria pública do estado, conseguiu a permissão para operação da filha Emanuelle. Ainda não é possível saber se as hastes vão acompanhar o crescimento da menina, mas ela já apresenta melhora no desempenho. “O resultado foi rápido. Ela já está andando. Se o SUS fizesse a cirurgia, as crianças teriam bem menos traumas e a recuperação e reabilitação delas também seria bem melhor”, afirma.

Lorena Barros

Lorena Barros

Repórter

Anderson Freire

Anderson Freire

Fotógrafo