Economia solidária: as lições de Catende e Jaboatão dos Guararapes
Responsável por 1% do PIB nacional, a economia solidária, na prática, é um ensinamento da arte de reinventar-se em busca da estabilidade financeira e da qualidade de vida. No estado, exemplos urbanos como o de Jaboatão dos Guararapes são incentivados e modelos rurais como o de Catende, ajudam a redefinir a vocação do município
Ângela Valdécia, 45, ouvia do pai, ainda na juventude: “você leva jeito para arte, precisa seguir essa sina”. E seguiu. Hoje, ela é artesã engajada no movimento de Economia Solidária, em Jaboatão dos Guararapes, e, junto com a irmã Adriana e o marido, Carlos José, resolveu montar o Grupo Troque por Arte. A ideia central deles é receber como doações os materiais que seriam descartados. Em poucos dias, eles transformam o que iria para o lixo em obra de arte para o doador. As sobras servem de insumos. “Comecei muito cedo, aos 11 anos. Pintava em casa e os vizinhos gostavam do meu trabalho”.
Ângela resolveu se aperfeiçoar e tratar o artesanato como um negócio. Nesse movimento, trouxe junto a família e nada escapa ao talento: de madeiras de guarda-roupas a zíper de calça ou tampa de latinha. Hoje, os recursos adquiridos representam a maior fatia do orçamento familiar. O Grupo Troque por Arte é um dos 89 empreendimentos de Economia Solidária em Jaboatão dos Guararapes. A cidade é referência no estado, com 6% dos 1.503 empreendimentos que atuam em Pernambuco, de acordo com o Atlas Digital, produzido pela Secretaria Nacional da Economia Solidária.
A economia solidária se baseia nos princípios:
Cooperativismo
Os grupos possuem interesses em comum e compartilham dos resultados.
Autogestão
Os empreendimentos não possuem hierarquia e são administrados de forma coletiva.
Solidariedade
Os empreendimentos têm uma justa distribuição dos resultados e igualdade de oportunidade para o desenvolvimento de cada projeto.
Reginaldo Guimarães, coordenador de Economia Solidária na Prefeitura de Jaboatão dos Guararapes, revela que o trabalho começou a ser desenvolvido em 2011, com a instituição da coordenadoria. “No início, só tínhamos nove empreendimentos. Depois das plenárias e da organização dos fóruns, ampliamos nossa atividade”. Hoje, a coordenadoria acompanha 91 empreendimentos em atividade.
Em 2004, o governo federal instituiu órgãos específicos para o grupo, que estabeleciam políticas públicas e assessorias para os empreendimentos. A estrutura da rede solidária se divide da seguinte forma: os empreendimentos, que trabalham na base produtiva; as instituições públicas, responsáveis pela elaboração de políticas de apoio, e as entidades de apoio e fomento, que atuam na assessoria e na formação dos empreendimentos.
De acordo com Sandra Leoni, coordenadora do grupo Tecendo Cidadania, um dos trunfos desse conceito de economia é a inclusão de gênero e a redução da desigualdade. “Como a maior parte dos empreendimentos é formada por mulheres, isso sinaliza o empoderamento feminino na Economia Solidária. As mulheres se sentem mais independentes, garantem a própria autonomia financeira”, explica.
é a quantidade de empreendimentos solidários localizados em Pernambuco
estão em Jaboatão dos Guararapes, na Região Metropolitana do Recife
empreendimentos com características rurais estão em Catende, na zona da mata sul
Foto e vídeo: Brenda Alcântara/DP
O exemplo que vem do interior
Em Catende, na zona da Mata Sul do estado, deu-se um dos maiores casos de economia solidária em Pernambuco. Principal fonte de receita da cidade, em 1995, a Usina Catende teve iniciado o processo de falência pelos próprios trabalhadores, que haviam sido demitidos e não receberam indenizações. A partir de então, instaurou-se um processo de autogestão, por meio do Projeto Catende Harmonia, cooperativa formada por eles mesmos.
Mesmo sob o comando dos trabalhadores, a empresa manteve um ritmo produtivo acelerado. De acordo com Fernando Kleiman, autor da dissertação “Lições de Catende”, defendida na Universidade de Brasília, a empresa atingia uma receita de operação superior à soma dos valores repassados pelo governo federal para cinco municípios da região. “Mais do que fonte de receita, a ocupação produtiva possibilitada pela usina e a renda através dela gerada são fontes propulsoras de consumo e desenvolvimento”, pontua.
é o maior número de projetos num município do interior do estado e pertence a Garanhuns
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dos sócios pernambucanos buscam ter seu próprio negócio com a Economia Solidária
famílias de Catende estão morando no Assentamento Miguel Arraes
Em seu antigo território, desde 2006, está oficializado o Assentamento Miguel Arraes, onde mais de 4,2 mil famílias, de cinco municípios, vivem até hoje. Destas, 1,8 mil são de Catende e parte trabalha com economia solidária. No ano de 2007, a usina viveu seu segundo melhor ano, mas, ainda assim, em 2009, o projeto encerrou. Perdeu força e capilaridade econômica. No entanto, os herdeiros da ideia continuam exercendo as atividades na área de confecções, alimentar e agroecologia. É o caso da agricultora Cláudia Maria Pereira. Ela transformou o sítio onde mora, no Engenho Bálsamo das Freiras, zona rural de Catende, no ambiente de trabalho. É lá que ela planta alface, quiabo e ainda cria tilápias para vender na principal feira de agricultura familiar da cidade.
“É desse trabalho que eu tiro dinheirinho da família, junto com a aposentadoria do meu marido. Ele coordenava a parte de contratos temporários dos agricultores e meu filho recolhia a cana que caía dos caminhões”, explica. Ela negocia trocas com engenhos vizinhos e outros municípios e vende sua produção na feira do Centro, sempre às quintas, montada em uma estrutura de 10 barracas e duas balanças compartilhadas.
Catende, a cidade
em adaptação
Há 20 anos, a Usina Catende, falida, passaria às mãos dos trabalhadores. Nesse tempo, muito mudou e até a cana, lentamente, começa a sair de cena
A cana-de-açúcar ainda faz parte da realidade de Catende, Mata Sul de Pernambuco. O processo produtivo, no entanto, se faz coletivamente e não é para desavisados. Cada agricultor possui plantação própria, mas na hora do corte, toda força de trabalho se junta para colher o esforço do plantio. Não há empregados ou patrões. A realidade é bem diferente da que se fez ao longo dos últimos 20 anos. Em 1995, a Usina Catende faliu, devendo quase R$ 800 milhões ao Banco do Brasil e outros R$ 52 milhões aos trabalhadores. Por ordem da 18ª Vara Cível do Recife, a massa falida continuaria funcionando em modelo de autogestão, pelos 3,5 mil antigos funcionários – decisão inédita no país, que levou em conta mais a função social da empresa do que o pagamento de credores. Ainda assim, em 2012, a usina fechou e foi necessário adaptação.
Manoel Luiz de Brito, 38, trabalha com cana desde os sete anos. Hoje também cria abelhas, galinhas e grãos, como feijão. “Aos poucos, passamos a não aceitar a monocultura. Essa é, provavelmente, a última geração de grandes plantações de cana nos engenhos da Usina Catende. Estamos cortando as que sobraram, mas não estamos renovando. Poucos ainda apostam nela”, afirma. Brito vende suas últimas toneladas de cana como pasto em fazendas próximas. O agricultor conta que o modo de produção também mudou. “Nos juntamos para cortar minha cana hoje, depois saímos e vamos cortar a cana de outro. O lucro paga os trabalhadores e o dono da plantação.”
Aos 38 anos, Helenildo Correia Penha já passou pelas várias realidades de Catende. Tinha 17 anos quando viu os pais serem demitidos, juntos a 2,5 mil trabalhadores, da Usina Catende; passou pelo momento em que foi criada a Companhia Agrícola Harmonia, que reunia os 3,5 mil agricultores; e ainda, pelo início da capacitação para atuar em policulturas, promovida pelo Centro de Desenvolvimento Agroecológico Sabiá, a partir de 2006 – quando a transição para a realidade atual, de fato teve início. Fez até curso de “Gestão em cana-de-açúcar”, conhecimento, hoje, quase sem sentido. “Quando a vejo agora, assim, parada, dá vontade de chorar. Muita coisa foi roubada. À noite, é um breu e pessoas entram na usina para tentar levar uma coisa ou outra”, lamenta.
Opções e dificuldades
trocadas em miúdos
Muito além das condições de trabalho, o frete, antes gratuito para a Usina Catende, agora é arcado pelos produtores. A tonelada da cana, por exemplo, foi levada às usinas por R$ 25, mas o preço da venda não passou de R$ 104, porque depende da quantidade de açúcar que é capaz de produzir. Justamente por isso, Luiz Roberto da Silva, 37, o “Branquinho”, por exemplo, investiu em alimentos que podem ser vendidos em feira ou adquiridos por programas do governo.
Este ano, entregou 50kg de macaxeira e 100kg de batata-doce para o Instituto Agronômico de Pernambuco, que compra produtos e doam a grupos atuantes junto a pessoas em situação de risco. Outros agricultores também se dedicam à cultura de banana e até de peixe. A Usina Catende está fechada, com maquinário inutilizável e sem compradores à vista.
Mesmo fechada, 13 pessoas cuidam da massa falida da Usina. A energia da empresa, contudo, é desligada para não elevar os gastos, que já somam R$ 1,8 bilhão. O Incra desapropriou os engenhos e cedeu as terras aos trabalhadores rurais, que apostam na versatilidade para se desprender de uma história sempre ligada à cana.
Um caso sem igual,
ainda inconcluso
De acordo com o advogado da Fecomércio e professor de direito empresarial e civil da Uninassau, Hermann Nascimento, o caso da Usina Catende foi emblemático. “O ‘Princípio de Preservação da Empresa’ foi, finalmente, posto em prática. Isto significa que percebeu-se que uma empresa funcionando é muito melhor para a sociedade do que a falência, que deve ser sempre a última alternativa.” Nascimento explica ainda que os trabalhadores poderiam ter sido prejudicados caso o processo de falência que abriram no Fórum de Catende fosse seguido. Segundo o jurista, os créditos trabalhistas são os primeiros a serem pagos na lista dos credores, seguidos dos fornecedores e dos impostos. Mas quem pede a falência de uma empresa se torna o último credor a receber. “É comum que os credores do final da lista não recebam aquilo que lhes é devido, como aconteceu com o processo de falência da Varig. Se não há má-fé dos empresários, supõe-se o risco de natural que os empreendimentos têm de dar errado”, conta. Um leilão será realizado em março de 2016. E, apesar do sonho dos trabalhadores de vários engenhos do assentamento, Soares acha impossível que a usina volte a moer. “Não seria viável. Os maquinários modernos não passam mais de uma hora parados quando acontece algum problema. Algumas peças da Catende, se quebram, atrasam em três ou quatro dias a produção”, avalia o advogado da Usina, José Pedro Soares.
Afonso Bezerra
Repórter
Afonso é estagiário do Diario desde 2014. Atualmente, escreve para a editoria de Local.
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Editor
Ed escreve para o Diario desde 2010. É repórter e editor de dados no jornal, coordenando o projeto CuriosaMente.
Paulo Trigueiro
Repórter
Paulo é jornalista e psicólogo. Escreve para o Diario desde 2013, atualmente no projeto CuriosaMente.
Paulo Paiva
Fotógrafo e videografista
Paulo é fotógrafo do Diario desde 2013. Se dedica a pautas de Direitos Humanos, Cidades e Esportes.