Compulsão sexual: a luta contra desejos do próprio corpo
Compulsão sexual é mais comum do que se pensa e grupos de ajuda coletiva, tal qual o Alcoólicos Anônimos, ajudam na reabilitação
Enquanto estava na cama com uma mulher, André já pensava em ligar para a próxima. Acordava de manhã com outra e já marcava a noite com mais uma. No auge da sua compulsão, o momento em que faria sexo era a razão de viver o resto do dia. As horas pareciam não passar, o celular na mão era o companheiro constante do professor universitário, que contabilizava alunas entre as “oito ou nove” mulheres com quem traía a namorada.
Chegou o momento em que uma relação era pouco, “mil já não eram o bastante”. Perdeu completamente o controle. “Quanto mais relações você tem, mais quer experimentar coisas diferentes, mulheres diferentes”, descreve. Para os amigos, era o garanhão e a traição era motivo de reconhecimento e até encorajada. Mas ele sabia que não estava bem, algo estava errado. Não conseguia parar.
“Para mim, para meu padrão, não é só o ato sexual, é toda a trama criada, adrenalina de seduzir, de conquistar, de flertar até consumar. Meu padrão é esse, é traição. É meu comportamento adicto”, reconhece. E reconhecer é o primeiro dos doze passos do Dependentes de Amor e Sexo Anônimo (Dasa), que, assim como os demais grupos de autoajuda, se baseiam no Alcoólicos Anônimos (AA).
“Todo mundo pensa que aqui tem um bando de tarados”, desabafa o coordenador do Dasa Recife. O grupo funciona nos fundos de um pequeno prédio pintado de azul, tipo caixão, de dois andares, no bairro de Boa Viagem, por trás da Igreja Nossa Senhora de Boa Viagem. A placa do grupo divide espaço com Alcoólicos Anônimos, Narcóticos Anônimos e Comedores Compulsivos.
O lugar é voltado à ajuda coletiva. Ainda assim, segundo ele, o estigma de dependência de sexo ainda é mais forte. “As pessoas pensam que nos encontros fica o pessoal se pegando”, incomoda-se, com a voz serena. Hoje, 12 pessoas se reúnem a cada domingo, não com o intuito de cura, mas de promoção de uma sequência diária de pequenas vitórias.
Para a professora do Departamento de Psicologia da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), Edilene Freire Queiroz, a inserção precoce na vida sexual faz a criança ter um estímulo de excitação em relação a sexualidade em um momento em que ainda deveria estar descobrindo o próprio corpo. “Na vida adulta, ele pode reeditar esse abuso como uma compulsão. Não é algo certo, que ocorre com todos. Pode ocorrer também o inverso, a ojeriza total ao sexo”, aponta.
A dependência do sexo, aponta Sylvio Ferreira, professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) funciona como o vício em drogas. “Quem é dependente se subordina ao objeto do vício. A vida é subordinada, nesse caso, ao sexo”. O professor expõe ainda que, para a superação do vício, a pessoa dependente vai em busca de outra coisa para colocar no lugar. “Ela tem que substituir esse vício. Alguns substituem por Deus, até o próprio grupo de autoajuda pode ser considerado um substituto da dependência. Um viciado é viciado para sempre”.
Por o vício não ter cura, o foco é ficar bem hoje, a cada dia. E nesse processo, os encontros no Dasa se tornam fundamentais. “Eu poderia chegar aqui na sala e falar o que eu quisesse, ninguém saberia, mas eu saberia”, justifica André, há quatro anos no grupo. No DASA, honestidade é como um remédio e funciona como um espelho, em que se enxergam uns nos outros.
Encontros DASA
Rua Dr. Nilo Dornelas Câmara, 4 – Boa Viagem, Recife. Por trás da Igreja de Nossa Senhora de Boa Viagem.
Encontros: Domingos – 15h às 17h
Os 12 passos inspirados nos Alcoólicos Anônimos
1° passo
“Admitimos que éramos impotentes perante a Dependência de Amor e Sexo e que tínhamos perdido o domínio sobre nossas vidas”
2° passo
“Areditamos que um Poder Superior a nós mesmos poderia nos devolver a sanidade”
3° passo
“Decidimos entregar nossa vontade e nossa vida aos cuidados de Deus, na forma em que O concebíamos”
4° passo
“Fizemos minucioso e destemido inventário moral de nós mesmos”
5° passo
“Admitimos perante Deus, perante nós mesmos e perante outro ser humano, a natureza exata de nossas falhas”
6° passo
“Prontificamo-nos inteiramente a deixar que Deus removesse todos esses defeitos de caráter”
7° passo
“Humildemente rogamos a Deus que nos livrasse de nossas imperfeições”
8° passo
“Fizemos uma relação de todas as pessoas que tínhamos prejudicado e nos dispusemos a reparar os danos a elas causados”
9° passo
“Fizemos reparações diretas dos danos causados a tais pessoas, sempre que possível, salvo quando fazê-lo significasse prejudicá-las”
10° passo
“Continuamos a fazer o inventário pessoal e, quando estávamos errados, nós o admitíamos prontamente”
11° passo
“Procuramos, através da prece e da meditação, melhorar nosso contato consciente com Deus, na forma em que O concebíamos, rogando apenas o conhecimento de Sua vontade em relação à nós, e forças para realizar essa vontade”
12° passo
“Tendo experimentado um despertar espiritual, graças a esses passos, procuramos transmitir esta mensagem aos dependentes de amor e sexo e praticar estes princípios em todas as áreas de nossas vidas”
André, o atleta “queridinho das meninas”
Ele sempre lidou bem com as mulheres. Na adolescência, usava o corpo de atleta como sedução.
Era o “queridinho das meninas”, define. Aos 43 anos, nunca constituiu família.
Uma limitação que se desenhou na infância.
“Fui abusado por colegas mais velhos, meninas e meninos também. Uma menina mais velha me iniciou aos 7 anos de idade. As meninas mais velhas que eu me ensinaram a beijar, mandavam eu colocar a mão na genitália delas… aquilo pra mim despertou coisas que eu não sabia o que era.
Aprendi a me masturbar, como todo guri aprende e comecei a ver pornografia, a fantasiar. Via uma foto, não dava conta, Via 100 diferentes e ia querendo mais, querendo mais. Mais velho, trabalhava pensando em sexo, orava pensando em sexo, conversas com a família eram permeadas por pensamentos sexuais. É o chamado ‘canto da sereia’ e aquilo vai te envolvendo. Primeiro, são minutos, depois, são horas pensando em sexo. Depois, só consegue dormir pensado em sexo e a tua vida acaba se resumindo a isso.
O desgaste, a perda de energia para você se manter sereno equilibrado é enorme. Você não tem ideia do desgaste que eu tinha. Simplesmente não consigo estar dentro de um relacionamento. Evito, com medo de trair. O tratamento em grupo é um exercício de muita humildade. É para poucos. Nós não conseguimos enxergar a realidade dos fatos. A admissão é a grande coisa, é o primeiro passo”.
Abuso, a raiz comum da compulsão
“Tive um pai abusador. Meu pai é pedófilo, já foi preso por pedofilia. Abusou de mim, da minha irmã e de sobrinhas. Tenho uns flashes em minha cabeça dele manipulando meu órgão genital, eu com uns três anos”, relata Felipe, integrante do grupo de ajuda do Dasa. Sozinho em casa, o pai pegava bonecas da irmã e esfregava contra ele. “Depois, fui percebendo tudo. Para você ter uma ideia, até os meus 10 anos, achava que o órgão sexual feminino era na horizontal. Na minha visão, aquela junção da boneca era o órgão genital”, conta. O marco não é por acaso. Foi quando o pai lhe apresentou o acervo de revistas pornográficas. “E não eram Playboy, não. Eram pesadas. Me entregou e disse ‘vá pro banheiro’. E eu ia. Só folheava, nem me masturbar eu sabia”.
Aprendeu. E viciou. Começou com uma foto, duas, cinco… O início de uma compulsão que seria motivo de uma tentativa de suicídio. Foram décadas colecionando fotografias e vídeos pornográficos. “Primeiro, as revistas. Depois, com o começo da internet, a coleção passou a ser guardada virtualmente”.
Seu HD externo chegou a guardar cerca de 25 mil fotos e 10 mil vídeos. A descoberta do acervo de fotos e vídeos, acabou motivando duas separações da esposa. Uma hora de masturbação passou a duas. Depois, três. E, então, cinco, 10, 15.
“Sem me levantar para beber nem para comer. Chegava um momento que já não tinha ereção, mas eu continuava”, conta. Como todo vício, a euforia era permeada pela depressão. “Eu me olhava no espelho e me perguntava o porquê daquilo. Perdia meu tempo, tinha tanta coisa para fazer e ficava enfiado nessa porcaria”. A compulsão teve como consequência uma disfunção erétil e ejaculação precoce, além de alterar completamente sua rotina.
“É impossível se masturbar por seis, sete horas e ainda fazer sexo com a minha esposa. Muitas vezes, aconteceu de eu ter orgasmo seco – não ejaculava, não tinha mais o que sair. Saía nada. O organismo não produzia mais. Era uma agressão”, relata. Foi nesse contexto que, durante a segunda separação, encontrou informações do grupo na internet. Nele, seu vício também é tratado enquanto compulsão sexual. Mas, sem conseguir salvar o casamento, pensou em desistir. “Nada como um suicídio mal sucedido para você ver que a vida vale a pena”, reflete.
Os encontros continuaram. Pouco tempo depois, o casamento também. Um ano e meio depois, segue na luta. O vício? Esse não vai embora. “Se eu não estivesse nos encontros, estaria em frente ao computador. Não é fácil. Nunca mais dá vontade? Dá sim. Uma vez, cinco vezes, dez vezes no mesmo dia”.
João Vitor Pascoal
Repórter
João é estudante de jornalismo da UFPE. Estagiário do Diario desde 2014, escreveu para a editoria de Política, antes de compor a equipe de dados, no CuriosaMente.
Paulo Paiva
Fotógrafo
Paulo é fotógrafo do Diario desde 2013. Se dedica a pautas de Direitos Humanos, Cidades e Esportes.