Com rimas e sonhos, poesia ainda muda cotidiano e define vidas em São José do Egito
A pernambucana São José do Egito destaca-se, há décadas, pela vocação pela poesia, assunto que virou até disciplina oficial nas escolas públicas da cidade
Há dezenas (talvez centenas) de anos, uma viola foi enterrada no leito do Rio Pajeú. Desde então, quem bebeu de sua água, virou poeta. A lenda sertaneja pode até não ser verdade, mas foi a forma que o povo encontrou para explicar porque existe tanto talento para a poesia em um só lugar. “Bom dia, poeta”, diz um. “Bom dia, poeta”, responde o outro. Vendedor, professor, farmacêutico… Seja no improviso ou munido de violas, há uma população inteira de cantadores poetas em São José do Egito, a 404 km do Recife. Considerada berço imortal da poesia, a cidade preserva, há gerações, a tradicional cultura que floresceu às margens do rio.
A relação da cidade com as palavras começou na colonização do Brasil pelos portugueses: “Os portugueses trouxeram a sonoridade do baião de viola e as influências dos mouros, muçulmanos que invadiram a Península Ibérica. Digamos que os cantadores são uma evolução dos trovadores”, afirma Fábio Renato Lima, 38, professor de história na cidade e coordenador da banda Vozes e Versos. Talvez por isso o vocativo esteja presente em qualquer cumprimento na cidade. É uma populaçaõ de “poetas”.
A história do local está ligada a duas cidades vizinhas. Eles acreditam que as pessoas tenham seguido o percurso do rio no período da colonização, passando primeiro pelo “ventre da poesia”, Itapetim (PE) e por Teixeira (PB), considerada local de troca cultural entre os ibéricos e o povo da região. São José do Egito é a mais próxima do rio e o maior entre os três municípios, terminando por acolher os poetas da região e ganhando a alcunha de berço.
“Podemos comparar o processo que aconteceu em São José do Egito com o que aconteceu na Grécia. O país fabricou muitos filósofos e a cidade pernambucana conseguiu dar sequência aos seus poetas. É impressionante como eles têm orgulho de suas raízes”, explica Lourival Holanda, professor de letras e entusiasta da cultura popular.
O orgulho não é apenas verificado entre os cantadores, mas em familiares e descendentes, que perpetuam a vocação do município. Alysson Brito, 18, poeta e vocalista do grupo Vozes e Versos, desde 2009, banda que nasceu na escola estadual da cidade. “Sou filho adotivo de São José, nasci em Maceió, por um triste acidente”, lamenta.
Os poetas do Pajeú são comparados com os trovadores porque a poesia feita por eles não é tão simples como você pode imaginar. A mais tradicional é feita de improviso e ela não é formada apenas por quaisquer palavras que vêm à mente, mas possuem rima e métrica, como explica o historiador Fábio Renato: “Ela já surgiu metrificada, não é uma poesia livre”, explica.
A métrica é feita pela contagem das sílabas tônicas em um verso. Por exemplo, se a primeira linha do verso tiver sete sílabas tônicas, as demais linhas precisam ter a mesma quantidade.
Santuário
por Alisson Brito
Já a rima é considerada por eles um pouco mais simples. “Se for, por exemplo, uma quadra (quatro linhas), as linhas pares precisam rimar”, explica Fábio sobre o que forma a sonoridade poética e a declamação cantada e arrastada dos poetas da região.
A dificuldade de adequação não impede que novos poetas surjam na cidade, porque essa é a forma natural de expressão que os filhos do município encontram. Vinícius Gregório, 28, começou nessa aventura aos 14 anos para descrever a saudade originada com a mudança para o Recife. “Eu comecei a relatar as fases da minha vida e a temática varia entre a saudade, amor, amizade e questões sociais”, conta o autor de dois livros Hereditariedade, de 2008, e o inédito, ainda sem nome, previsto para ser lançado em julho de 2016. Fruto de São José do Egito, não fica longe da música e, enquanto o segundo livro não fica pronto, dedica-se à banda Baião Nós Três, com dois amigos que já se convenceram que não há vida sem poesia…
Imagens gentilmente cedidas do curta “Não tem só mandacaru” de Tauana Uchôa
A poesia
“Explicar a poesia
Ninguém consegue explicar
É mais pesada que o chumbo
É leve igualmente o ar
É fina como cabelo
É bela como luar
Toca na alma da gente
Fazendo rir ou chorar
Faz a tristeza morrer
E o sonho ressuscitar
A poesia é ão santa
Que quando o poeta canta
Deus para pra escutar
A poesia seu menino
Como tudo que é divino
Não da pra gente pegar…”
Trecho da obra Explicar a Poesia de Dedé Monteiro
Aprendendo a poesia de São José do Egito
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Gerações de poetas à base de talento herdado e técnica ensinada
Leves aos ouvidos, os versos cantados desafiam os jovens, a exemplo de Ana Clara Menezes, 16, que recentemente se envolveu com o estilo de poesia que ouvia desde a infância. Neta de Gregório Filó, poeta respeitado na cidade, ela vem desde os 12 anos tentando expressar os sentimentos ao mesmo tempo em que encara o desafio das métricas.
“No início, peguei um livro de família bem antigo, o Reino dos Cantadores, de José Rabelo de Vasconcelos. Li e comecei a praticar, mas comecei a me questionar: ‘Por que meu verso não está saindo igual ao do meu avô?’. Foi muito difícil dominar a métrica”, conta. Desde 2013, passou a estudar na Escola Estadual Edson Simões, uma das unidades de ensino do município que oferecem na grade curricular a disciplina de poesia.
Nem sempre o assunto foi tão formal e estruturado. Uma das primeiras famílias a destacar-se no Pajeú foi a Nunes da Costa, ainda em 1850, em Teixeira (PB). “Eles são ancestrais da minha família e já utilizavam o improviso e a viola, por influência dos mouros, quando começaram a se destacar e a viver do repente”, conta Antônio Marinho, poeta e vocalista do grupo Em Canto e Poesia, há 10 anos. “Eles faziam apresentações na feira e na estação de trem. Em uma época onde o sustento vinha da agricultura, o cantador era o artista nordestino”, completa. Mas, mais que artistas, os violeiros, que viviam viajando, faziam as vezes de jornalistas e levavam as notícias de uma região a outra, entre eles, nomes como Augustinho Nunes da Costa, Ugolino do Teixeira, Romani da Mãe D’água.
Imagens gentilmente cedidas do curta “Não tem só mandacaru” de Tauana Uchôa
As gerações se passaram e três irmãos cantadores fizeram história em São José do Egito: Lourival Batista, conhecido como Louro do Pajeú, Dimas Batista e Otacílio Batista. “Eles fizeram a primeira apresentação de cantoria do Brasil, no Teatro de Santa Isabel, em 1946, convidados por Ariano Suassuna”, conta Antônio Marinho, neto do Louro do Pajeú, falecido desde 1992, mas em nome de quem se faz festa de aniversário no município até hoje. “Eles protagonizaram momentos importantes para a arte e o repente foi ganhando respeito. Otacílio foi o primeiro repentista que teve uma obra sua gravada por outro artista”, reitera. A obra em questão foi a música Mulher Nova, Bonita e Carinhosa, interpretada por Zé Ramalho.
Mulher nova, bonita e carinhosa
por Zé Ramalho
A terra e a festa de um “louro” sertanejo
Um dos poetas mais famosos do Sertão pernambucano, Lourival Batista assinava suas obras com o próprio nome, mas era reconhecido mesmo como Louro do Pajeú. Precursor da “escola” da poesia de São José do Egito, teve o talento reconhecido por nomes políticos e artísticos de expressão nacional, com reconhecimento que o fez famoso em todo o país. Entre os nomes que o reverenciaram estavam Gilberto Gil – que, na época da Tropicália, visitou sua casa no Sertão pernambucano – ou Luiz Gonzaga, que não escondia admiração ao sertanejo. Tanto clamor o ajudou a ir além da poesia aos olhos da população local.
Mayra Couto
Repórter
Mayra é estudante da Aeso – Faculdades Integradas Barros Melo e estagiária do Diario. Integra a equipe de dados, no projeto CuriosaMente desde janeiro de 2016. Arrisca-se a fazer poesia, mas mostra a ninguém (é aquariana)…