Rio Doce/Barra de Jangada: a viagem mais longa em linha (quase) reta do estado
Linha completa 10 anos sendo uma verdadeira lenda urbana, cuja viagem de ida e volta dura 4h, passando por três cidades. Entre as linhas mais movimentadas, é a mais longa e demorada
Em quatro horas de viagem, você pode sair do Recife e chegar a Natal, no Rio Grande do Norte, distantes 285 km. O mesmo período de tempo é gasto pela linha Rio Doce/Barra de Jangada, numa viagem de ida e volta por três municípios da Região Metropolitana: Jaboatão dos Guararapes, Recife e Olinda. Ainda que os tempos sejam semelhantes, a diferença é de “apenas” 210 km percorridos, numa das mais longas e demoradas linhas de Pernambuco – que demanda de seus 2,8 mil usuários diários, doses regulares de paciência e adaptação.
Com empregos ou estudos na capital, muitos moradores das cidades vizinhas acabam dependendo do transporte público e, ao enfrentar o trânsito e os longos percursos, aproveitam para pôr o sono e os papos em dia ou fazer novas amizades.
“Nessas idas e vindas, a gente conversa bastante. Inclusive numa empolgação dessas, fui parar em Setúbal e faltava 10 minutos para eu abrir a loja”, conta a vendedora de Rio Doce, Thalita Veras, que sai às 6h30 para o Shopping Recife.
Quando não tem com quem conversar pessoalmente, Thalita opta por escutar música ou olhar as redes sociais. “Em uma dessas conversas, eu disse a um menino: Eu já tinha escutado quatro músicas de Racionais Mc’s e ainda tava em Olinda’. Porque as músicas de Racionais costumam ter quase 10 minutos de duração, né?”, brinca.
Apesar do ônibus fazer o trajeto Rio Doce/Barra de Jangada, os primeiros passageiros sobem no veículo com o objetivo de seguir somente até Piedade, segundo bairro após Barra de Jangada ou até o Shopping Center Recife, localizado no Bairro de Boa Viagem, este último devido à vantagem do ônibus deixar as pessoas próximas à porta. É no centro de compras que a linha assume a função de ponto de partida e chegada de usuários dos três municípios.
As mais mais
(Em distância)
1) Araçoiaba/TI Camaragibe – 92,59 km
2) Rio Doce/Barra de Jangada – 75,36 km
3) Piedade/Rio Doce – 74,44 km
4) TI Igarassu (Dantas Barreto) – 63 km
5) Araçoiaba/TI Igarassu – 62 km
Fonte: Grande Recife Consórcio de Transportes
Num mar de fones de ouvido que sacolejam durante a viagem, há quem aproveite o momento para descansar, a exemplo da cozinheira Marcela Simões, 32, que vive em Jardim Maranguape, Paulista, e utiliza a linha diariamente para trabalhar em Boa Viagem, no Recife. “Saio de casa às 4h50 e pego o ônibus no terminal de Rio Doce, entre 5h15 e 5h30. Chego cedo e só entro no ônibus se eu puder me sentar. Durante a manhã, o resto do meu sono é no ônibus”, conta a mulher que se queixa ainda sobre os horários dos ônibus. “Pelo valor da passagem, respeito zero. Principalmente nos fins de semana e feriados. Várias pessoas, como eu, trabalham durante esses dias, mas parece que eles não querem saber. Acho que reduzem 50% a frota.”
Depender de uma viagem tão demorada não é para todo mundo. A cabelereira Luciene Melo, 44, mora em Barra de Jangada e trabalha em Rio Doce, porém considera a viagem tão longa que prefere dormir na casa da irmã, em Olinda, e só voltar para casa nos finais de semana. “Pego o ônibus às 4h40 e chego às 5h50, quando não tem trânsito. Quando tem trânsito, só chego Às 6h30, 7h”, estima.
Número de viagens por dia
Duplas de motoristas e cobradores da linha
Horas gastas em uma viagem completa
Km da viagem
Uma longa viagem todo dia
Trabalhar realizando pelo menos duas viagens diárias, de cerca de 4h cada, não é tarefa para qualquer um. Motoristas e cobradores ainda têm que lidar com a questão do trânsito que define se chegarão atrasados no ponto de retorno (Rio Doce) e no terminal (Barra de Jangada), o que, na prática, interfere diretamente em seu tempo de intervalo.
Marcelo de Araújo, 41, conduz o ônibus há mais de 20 anos, mas faz a linha há cerca de seis meses. Apesar do pouco tempo, acabou acostumado ao curto intervalo de descanso, que muitas vezes só permite tomar um café pequeno e uma ida ao banheiro. “Só sou motorista porque gosto de percurso longo”, diz. Caso tenha um tempo menos curto, aproveita para conversar com a mulher e utilizar as redes sociais.
O cobrador Denilson José, 40, também trabalha na linha há pouco tempo, mas tenta lidar com o fato de o trânsito gerar atrasos na viagem quase todos os dias. Quando há um tempo regular de intervalo, diz que aproveita para se alimentar. Ele conta que além do estresse de alguns passageiros, que segundo ele, sempre reclamam da demora, já presenciou uma tentativa de assalto. “A gente se livrou de um. Eram dois homens. Eles entraram normalmente, pagaram a passagem e quando o segundo passou e me viu, reconheceu e desistiu do assalto porque eu moro próximo a ele”, afirma. Apenas mais um dia no “campo de batalha”.
Segurança, um desafio constante
Exaustos, muitos trabalhadores cochilam durante o percurso Rio Doce/Barra de Jangada, mas parte dos passageiros dispensa a distração temendo assaltos, em especial à noite. A professora olindense Maira Egito, 34, utiliza a linha até quatro vezes por semana para ir ao trabalho, à noite em Piedade, o que a faz falar de rotinas policiais com certa naturalidade.
“Já aconteceu até situação de pânico. O ônibus estava lotado e entrou um rapaz com uma faca. Ele começou a tentar furar as pessoas e não tinha intenção de roubar, só furar. Aí o povo enlouqueceu. O motorista abriu a porta e as pessoas desceram correndo”, lembra, acrescentando que nem toda história é violenta.”Um rapaz estava com fome e desmaiou no ônibus. As pessoas se solidarizaram e começaram a dar comida e dinheiro, se preocuparam mesmo com ele. Foi uma situação muito bonita.”
Para os condutores, a insegurança também é um problema. A partir das 18h, o percurso sofre alteração e, além de ir à integração de Rio Doce, precisa subir até outros residenciais do bairro, o que gera incômodo. “Subo com medo, mas tem que subir. A gente sobe muito tarde e fica muito vulnerável”, diz o motorista.
Daniele Alves
Repórter
Daniele é estudante da Aeso – Faculdades Integradas Barros Melo. Acostumada a andar de ônibus, costuma ouvir e escrever sobre as histórias que o modal oferece no Grande Recife.
Rafael Martins
Fotógrafo
Rafael é o fotógrafo baiano do Diario. Prefere andar de bicicleta a deslocar-se de ônibus, mas vai colecionando – e registrando – histórias por onde anda…