O poeta do Poço da Panela: Aos 72 anos, ele tenta aprender a ler para registrar seus versos
A poesia de Seu Natal são criadas e perdidas desde a década de 1960. Ele busca estuda para conseguir ler e, então, escrever os próprios versos
Para Natanael Soares, sempre há tempo de ir em busca de um sonho. Munido de um caderno que achou no lixo e de aulas dadas por uma moradora do bairro, ele tenta aprender a ler, aos 72 anos. É uma tentativa de conseguir registrar os versos que inventa de uma hora para outra. Os temas são as próprias vivências, antigas ou atuais, e, em especial, o bairro onde vive desde que nasceu: o Poço da Panela.
“Posso cantar uma música toda de uma vez, criando os versos enquanto ela sai. É preciso de muita concentração, como quem usa arco e flecha, mas ela vai saindo… O problema é que depois, a música termina e eu já não consigo cantarolar os versos do mesmo jeito”, explica Seu Natal, como é conhecido no bairro, por ter nascido em 25 de dezembro.
“Quem é artista é bom, porque a profissão já é aquela. Você dorme com umas frases na cabeça, acorda com elas, pega a caneta e escreve. Eu também durmo e acordo com versos na cabeça, mas eles se perdem.”
Seu Natal já consegue identificar todas as letras, mas ainda tem muita dificuldade em juntá-las para criar uma sílaba. De setembro a novembro de 2015, pagou R$ 100 mensais por aulas, interrompidas por falta de tempo da professora. Em janeiro, retoma os estudos com outra moradora. O interesse na leitura vai além do objetivo maior – produzir arte. Sabendo ler, quer compreender a bíblia.
“Já peguei livros bons no lixo e tive que dar. Não lembro nem a quem, mas não tinha por que ficar com eles. Lembro de um sobre o profeta Nostradamus e outro chamado A mágica do saber”, recorda.
Seu Natal não sabe dizer quando começou a criar os versos, mas acredita que já era adulto. Vinham sem necessidade, como um passatempo entre os momentos de trabalho. “Meu pai é que era bom. Ele fazia esses poemas de boca, mas conseguia lembrar bem deles. Uma pessoa veio aqui e escreveu quase um caderno inteiro com os versos dele. Ele também era analfabeto porque passou a vida trabalhando para criar os 14 filhos”, conta.
Até então, o poeta desconhecido segue os passos do pai. De 1963 a 2015, criou porcos e galinhas junto ao rio, mas não tinha licença para o trabalho e precisou se desfazer dos animais porque alguns familiares o denunciaram. Atualmente, produz lavagem para alimentar porcos de outros criadores, além das palavras, que lhe alimentam o espírito. “Hoje, com os versos, estou mais vivo do que nunca. Meu coração está batendo melhor que em qualquer época.”
Uma estreia por acaso
Os versos criados por Natanael nunca haviam sido registrados. Até agora. Durante a conversa, mais uma composição fluiu. Como nunca antes, cada verso foi ganhando forma no papel, transcrito por quem estava ali para escrever sua história e encheu um caderninho, tal qual a lembrança do pai nutrida por Seu Natal. A ode ao bairro que ama desde nascença não poderia ter outro nome e foi o primeiro título, da primeira obra de outras tantas, perdidas numa falta de letras tão danosa quanto a de memórias…
Lembranças do Poço da Panela
(Natanael Soares – Seu Natal)
Dois Irmãos, Casa Amarela, Casa Forte
Que coisa bonita é aquela?
A igreja do Poço da Panela!
Falo pra você, digo pro seu irmão:
“Do lado, tem uma rua e tem um casarão.
Do outro lado, tem uma estátua:
Um homem com barbão.
Junto dele, um “negão”,
De corrente na mão,
Ele é do tempo da escravidão…
Preste atenção, que besteira!
No lado da igreja, naquela mangueira,
fizeram uma “escavucação”
e encontraram 63 caveiras.
Mas não tem tristeza, só animação
Foi tudo do tempo da escravidão.
Paulo Trigueiro
Repórter
Paulo é jornalista e psicólogo. Escreve para o Diario desde 2013. Integra a equipe de dados do jornal, no projeto CuriosaMente desde 2015. Assina as fotografias desta reportagem e, como Natal, se arrisca nas poesias e na música – em que também investe no aprendizado.