Mais que duas rodas no asfalto
Com postura de irmandade e solidariedade, moto clubes destoam do imaginário popular que os ligam a crimes e violência
No imaginário popular, os grupos de motociclistas são vistos como violentos e praticantes de atividades criminosas. O estereótipo ganha força através de produções audiovisuais norte-americanos, como o icônico filme Easy Rider (1969) e a série Sons of Anarchy (2008-2014). Em Pernambuco, porém, essa imagem é desconstruída. Os moto clubes organizados no estado, direcionam sua existência ao prazer de cair na estrada e acelerar suas motos como parte de um lazer familiar somado à responsabilidade social.
Exemplo disso é o Brasil Caveira Motoclube. A sede do grupo, chamada de “Cemitério dos Caveiras” pode assustar em uma primeira impressão, mas o ambiente promovido pela organização mostra o contrário. “Nós praticamos o ‘motociclismo familiar’, nosso lema é irmandade, respeito e liberdade’’, afirma Brasil Caveira, presidente do grupo que leva seu nome.
Com 12 anos de existência, o moto clube é considerado o “marco zero do motociclismo em Pernambuco’’, aberto aos apaixonados pela atividade nas duas rodas. Brasil Caveira pilota o “Caveirão”, um grande triciclo, empanturrado de ornamentos como cabeças de boneca, peneiras, um penico e, obviamente, caveiras. Intitula com orgulho o triciclo como o “mais feio do Brasil (e quem sabe do mundo)”.
O Brasil Caveira, assim como diversos motoclubes do estado e do país, operam sob o alicerce da irmandade, prontos a auxiliar qualquer membro que passe por dificuldades. De reboque e conserto para motos até ajudas profissionais, a ajuda mútua é uma das bases do movimento em Pernambuco. “Semana passada, um casal membro teve um problema com a moto em uma localidade esquisita. Conseguimos o reboque e todo o apoio para eles”, relata Edson Araújo, jornalista e membro do Brasil Caveira.
Quem confirma isso são os integrantes novatos do grupo, Conceição Penha, conhecida como Ceça e Ismael Cordeiro, chamado pelo bando de “Comissário”. Ceça participa das atividades do grupo há três meses, o Comissário está com um mês na organização. Ambos participam das reuniões e eventos, demonstrando felicidade pelo acolhimento dos demais membros. “Aqui prevalece o sentimento de irmandade, ninguém é melhor que ninguém”, apontou Ismael.
Ceça chama bastante atenção, pois, além de ser uma das poucas mulheres integrantes do grupo, ainda leva seu marido como garupa oficial. “Não sinto preconceito no Brasil Caveira, aqui sempre prevalece o respeito acima de tudo”, afirma Ceça.
Ponto de encontro
No Cemitério dos Caveiras acontecem as reuniões com motociclistas, triciclistas e moto clubes de todo o estado. Escorpiões do Asfalto (de Itamaracá), Harmonia, Cães de Guerra, Rota de Cristo, A Rota 51 e Lobos Ágeis são alguns que têm o local em Engenho do Meio como ponto de encontro para uma diversão familiar e troca de experiências.
Nas reuniões, participam motociclistas com diferentes filosofias de vida. Gabriel Hippie, que comanda um motoclube que leva seu nome em Gravatá, é um exemplo. “Em 1971, eu entrei no movimento hippie, viajando por todo país. Em 1985, eu conheci a cultura do motociclismo, que se encaixava em uma vida de liberdade”, relata Gabriel. Além das atividades motociclísticas, Gabriel ainda trabalha como artesão, produzindo artigos de couro condizentes com a estética do motociclismo.
A confraternização entre os amantes da velocidade acontece também de outro lado da RMR, na cidade de Olinda. O município abriga o Coyotys MC Brasil, com sede na Rua do Sol. O grupo começou no bairro de Jardim Atlântico, em 1999, sob o nome de Coyotys do Asfalto. Hoje, é responsável por promover eventos que trazem motociclistas do Brasil inteiro para a cidade. São cerca de 80 membros e sub-sedes pelo país, que apoiam as viagens mais longas e auxiliam outros membros.
Segundo Sérgio Coyoty, presidente do moto clube, para entrar na organização precisa ser indicado por algum membro. Porém, ele ressalta que visitando a sede e conversando com os diretores também pode ser uma porta de entradas. As reuniões do Coyotys são realizadas às quintas-feiras, por volta das 21h. Ainda segundo Sérgio, as reuniões contam com uma atmosfera familiar, sendo frequente a presença de crianças filhas dos membros nelas. Assim como o Brasil Caveira, o Coyotys preza pela construção de um ambiente descontraído e familiar, evitando associações do movimento motociclista com a violência.
O motoclube de dois membros
Quem também produz acessórios para motociclistas é o casal Luiz Cavalcanti e Izabel Cristina, conhecidos com Embaixador e Embaixatriz. Os dois são os únicos membros do A Rota 51. Eles desenvolveram uma balaclava especial para evitar acidentes com cerol, que serve como uma alternativa para a tradicional antena acoplada às motos. “Os acidentes envolvendo cerol vêm aumentando muito e uma grande parte dos motociclistas não gosta de utilizar a antena na moto por motivos estéticos”, afirma o Embaixador. O acessório desenvolvido pelo casal conta com uma estrutura reforçada e até flashs capazes de cortar as linhas. Além do ornar com a vestimenta típica de moto clubes, a balaclava é economicamente acessível, a mais barata custa R$ 25 e R$ 30 a mais cara.
A preocupação do Embaixador em ajudar na segurança dos companheiros de motocicleta é bem justificada. Há 28 anos, ele sofreu um acidente de trânsito, onde precisou implantar uma perna mecânica, além de três discos de titânio na coluna. Hoje, já aposentado, ele só pode pilotar triciclos ou motocicletas que possuem um sidecar, estrutura acoplada a moto onde pode-se levar caronas. Segundo o Embaixador, a justificativa apresentada é que ele não teria força para apoiar uma moto com sua perna mecânica. Hoje, ele possui uma Harley-Davidson com um sidecar, a única moto do estado com essa estrutura.
Desafios superados ao cruzar as estradas nacionais
Encarar as estradas sempre apresenta seus perigos e desafios. Em 16 de outubro de 2013, um comboio de 30 integrantes do Brasil Caveira voltavam do município de São José da Coroa Grande, quando foram surpreendidos por uma caminhonete em alta velocidade. O motociclista Ricardo foi atingido e faleceu. Além dele, mais dois integrantes ficaram feridos.
A imprudência e precariedade das estradas nacionais exigem que os motociclistas nunca se sintam totalmente satisfeitos em relação a segurança. Estar atento é vital sempre para que a liberdade sentida ao encarar as pistas seja prolongada por um bom tempo. Para isso, a parceria exercida pelos moto clubes aparece com um aliado poderoso.
Segundo Sid Alencar, diretor de comunicação da Associação de Motociclistas e Triciclistas de Pernambuco (AMT-PE), motociclistas do movimento nunca estão sozinhos por todo o Brasil. “Nós possuímos tentáculos em todo o país”, afirma Sid. Gastos com hospedagens, por exemplo, podem ser eliminados utilizando contatos com organizações parceiras, espalhadas pelo país.
Mesmo assim, o experiente Brasil Caveira relata que é preciso um planejamento logístico e financeiro antes de realizar viagens mais longas. Há viagens em diversos custos, variando de acordo com a distância a ser percorrida. Os bate-e-volta, feitos geralmente em um dia, não demandam um esforço financeiro árduo. Jornadas mais longas, como as que cruzam os estados, devem ser bem planejadas para evitar incidentes. Um ano de antecedência para se organizar pode ser uma boa saída.
Ao cair na pista, muita atenção é necessária, pois as condições das estradas nacionais muitas vezes são precárias. Equipamentos de segurança são essenciais para prevenir acidentes mais graves: calça com proteção interna, luvas, botas, colete e capacete. Andar em grupos ajuda na segurança em relação a assaltos, principalmente pela noite. Paradas a cada 150 km para descanso, alimentação e checagem das motocicletas devem ser feitas.
Essencial em Viagens Longas
- Checar Lâmpada
- Calibrar os Pneus
- Tração Nova
- Pneus Novos
- Documentos Atualizados
- Roteiro Programado
- Compartilhar o roteiro da viagem com alguém para acompanhamento
- Observar os equipamentos de segurança
- Administrar paradas para alimentação e descanso
Estradas mais difíceis
Segundo Sérgio Coyoty, as BRs apresentam mais desafios quando comparadas as rodovias estaduais. A BR-101, por exemplo, traz uma série de buracos e uma deficiência na sinalização. A BR-232 começa a apresentar esses mesmos problemas, especialmente na sinalização. Um relatório da Confederação Nacional do Transporte (CNT) de 2016 apontou que 96% das rodovias estaduais são regulares, ruins ou péssimas.
A preocupação social do movimento motociclista
Se a atmosfera de irmandade e respeito já afasta qualquer julgamento preconceituoso sobre as organizações de motociclistas em Pernambuco, a responsabilidade social que os moto clubes puxam para si elimina de vez qualquer visão estereotipada. Além das aventuras no asfalto e das longas viagens, essas organizações vêm empreendendo atividades de solidariedade que ultrapassam as sedes dos grupos, trazendo o bem possível para organizações e para a própria comunidade.
O Brasil Caveira, por exemplo, se orgulha dos eventos beneficentes que promovem várias vezes por ano. No dia das mães, o grupo arrecada eletrodomésticos e outros utensílios para as mães do Engenho do Meio, além de promover um café da manhã aberto para a comunidade. O mesmo se repete no dia das crianças, onde centenas de brinquedos são doados para a garotada local.
Além disso, o Brasil Caveira e o Coyotys frequentemente promovem doações coletivas de sangue para a Fundação de Hematologia e Hemoterapia de Pernambuco (Hemope), onde os membros se reúnem para fazer a doação, principalmente em épocas que há muita demanda e baixos estoques. “Ações sociais hoje formam a imagem dos moto clubes”, aponta Sérgio Coyoty. Brasil Caveira mostra orgulhosamente o registro em sua sede de doações de alimentos feitas ao Grupo de Ajuda à Criança Carente com Câncer (GAC), onde conseguiu arrecadar mais de uma tonelada de alimentos.
Fases de um membro do moto clube
Para se tornar membro veterano de um moto clube, o aspirante precisa passar por algumas etapas até atingir o status máximo dentro do bando, o chamado “colete fechado”. Até chegar nessa fase, o motociclista precisa estar frequentando as reuniões e eventos, além de se mostrar prestativo em ajudar os colegas.
PRÓSPERO
Essa é a fase inicial da jornada. O próspero é identificado por um colete liso, com apenas o seu nome e o do moto clube na parte frontal da vestimenta. Ele precisa aprender lições básicas de auxílio nas viagens, como primeiros socorros. Nessa fase, se passa de 3 a 6 meses conhecendo o funcionamento da organização. A frequência nas reuniões é vital para chegar na próxima fase.
MEIO-ESCUDO
Na fase intermediária, o motociclista já possui o nome do moto clube nas costas do colete. Sua frequência em viagens, reuniões e eventos continua necessária. O membro meio-escudo pode ser designado para atuar em alguma diretoria da organização do grupo (comunicação, administrativo, mecânica).
COLETE FECHADO
A última etapa na escala dos moto clubes. O “colete fechado” possui o escudo e o nome do bando nas costas do colete. Para chegar nesse nível, o motociclista precisa estar a pelo menos um ano dentro do grupo. Ao se tornar colete fechado, já se pode liderar efetivamente, organizando eventos e viagens.
Rostand Tiago
Repórter
Rostand é estagiário do Diario de Pernambuco desde janeiro de 2017
Rafael Martins
Fotógrafo
Nando Chiapetta
Fotógrafo