Um Mazzaropi de Gravatá na Agamenon Magalhães

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Marcado por um visual inconfundível, Mário Braz carrega dezenas de produtos em um grande guarda-sol e, a passos lentos, ganha a vida numa das vias mais movimentadas do Recife

 

No pingo do meio-dia, uma montanha de acessórios veiculares e para celulares se move com dificuldade em plena Avenida Agamenon Magalhães. Os meninos riem, os homens se espantam e as mulheres ajudam. Em um passo meio bambo, vai para um lado, para outro e nada de alguém entender do que se trata. Os pezinhos indicam que é algo como gente. O olhar foge à quinquilharia para não deixar dúvidas: o camelô Mário Braz está ali.

Um guarda-sol embrulhado com um plástico recebeu, em sua estrutura, pedaços de madeira nos quais são penduradas as mercadorias. A engenhoca totaliza 80 kg, enquanto Mário, 87 kg. Em suma, carrega a si mesmo nas costas todo dia. “Deus é quem dá força, porque quando saio daqui não aguento nem andar direito”, explica. O colega Will Robson, que vende garrafinhas de água mineral endossa: “não sei como ele aguenta. É só Deus mesmo” – também comenta, aos risos, que não cansa de ser parado por transeuntes curiosos sobre a figura de Mário. “O povo quer saber o que é”.

Vida de filme

É o Mazzaropi da Agamenon. Mário explica: “eu morei na cidade em que ele nasceu, Taubaté (São Paulo), mas antes de ir para lá, já conhecia Mazzaropi – que sou velho, né? Quando estive lá, fiquei admirando mais ainda. Porque ele era completo, era ator, cineasta, escritor…”, empolga-se e relembra o museu do artista, que visitou no interior paulista.

Foi lá, que o pernambucano de Gravatá conheceu uma das “encarnações” de Mazzaropi, Isidoro Colepícula – motorista que, após discussão com a polícia num semáforo, foi levado a uma mansão e conheceu seu avô, em estado terminal, de quem herdou quantia robusta. Após ser atacado por robôs, Isidoro acorda pobre e descobre que apenas sonhava. “Lembro que ele não gostava de colocar dinheiro no banco. Aí, fez uns pacotinhos com as notas e pendurou no guarda-chuva, um em cada haste. Quando os ladrões foram assaltá-lo, bateram nele, mas não conseguiram pegar o dinheiro, porque ninguém sabia onde estava escondido. Ai eu disse: ‘oxe, vou fazer que nem Mazzaropi, vou pendurar mercadoria no guarda-chuva e vender sem ficar no sol”, lembra, afirmando já ter sido ameaçado por um câncer de pele.

Os primeiros guarda-chuvas, no entanto, não resistiram à dura jornada de trabalho e demandaram a troca pelo equipamento atual. “A dor ensina pra gente. Quebra um, você vai melhorando o outro”. Ninguém diria que o interesse por um comediante poderia coexistir com um par tão triste de pupilas azuis. “Observe direitinho: muitos jovens são sorridentes porque ainda não têm do que se queixar. Os velhos são todos carrancudos”, murmura, enquanto nega um sorriso para a câmera, cujas lentes conseguem apenas arrancar sorriso tão seco que não haveria olho azul capaz de fertilizar.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Vida real

A Agamenon nem sempre foi casa e esposa de Mário. Já foi dono de bar na orla de Aracaju, em Sergipe, até ter que abrir mão de quase tudo num divórcio conturbado. No Recife, sempre apostou em sua capacidade de vender. “Eu tinha três bancas de relógio na Ponte de Ferro, que liga a Imperatriz à Rua Nova. Trabalhava lá há 25 anos até que, em 2013, a prefeitura resolveu tirar a gente. Fomos de um lugar para o outro, ninguém entendia nada. Ficamos sem ter onde vender e passei até fome”, lembra.

Depois de sucessivos fracassos para se reestabelecer enquanto comerciante em locais diferentes, Mário narra que chorava “que nem menino” em frente ao Mercado de São José quando um amigo o abordou. Dele, veio a ideia de vender bandeiras do Brasil na Agamenon durante a Copa do Mundo de Futebol. “Enquanto o Brasil estava ganhando, aos trancos e barrancos, consegui me virar, mas quando houve aquela vergonhosa derrota de 7 a 1, ninguém mais quis as bandeiras: ‘vai fazer feijoada, coloca naquele lugar’, o pessoal gritava”. A mercadoria foi substituída pela chuva de acessórios que escorre de seu guarda-chuva e o ponto comercial que nunca “veio”, estabeleceu à beira do canal. Com o trabalho, sustenta esposa e a filha de 11 anos.

Uma questão de memória De acordo com o presidente do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Comércio Informal do Recife (Sintraci), Severino Souto Alves, em 2013, os ambulantes começaram a ser alertados da possibilidade de remoção da Prefeitura do Recife, que chegou a impedir a comercialização na Ponte da Boa Vista (Ponte de Ferro). “Eles foram realocados na Avenida Dantas Barreto, que, além de não ter muita circulação de pessoas, já está com muito comércio. O resultado foi que muita gente não conseguiu trabalhar nas ruas indicadas pela prefeitura e foi para outras”, avalia.

Por meio de nota, a Prefeitura do Recife esclarece que a remoção integrou um projeto de ordenamento do comércio informal com o cadastro de 4,1 mil ambulantes e a indicação de novas áreas de trabalho, em nome da mobilidade dos pedestres. Foram investidos R$ 12 milhões com a aquisição de imóveis para receber os vendedores e a desapropriação de seis terrenos no Centro.

Unidades de comercialização propostas aos ex-ambulantes

Ruas da Saudade e do Riachuelo – Obras iniciadas

Ruas Sete de Setembro e da Saudade – Imóveis desapropriados

Rua do Giriquiti – Em negociação

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Vida que se vive – e só

Cego de um olho, graças a um terçol tornado calosidade nunca operada, Mário casou-se com uma avenida surda há cerca de dois anos. Aos 68 anos, reúne o fôlego restante para berrar, incontáveis vezes ao dia, para dentro dos carros: “capas e volantes; capas e carregadores; suporte para GPS, para-sol e pau de selfie”. A cantilena marca o ritmo dos passinhos curtos, apressados e sofridos – desde que fraturou o joelho direito ao cair num vão entre a plataforma e o metrô, num desses cotidianos “empurrados”.

Segue num vai e vem pelo acostamento na altura da praça do Derby, sempre das 6h às 16h30. Quando a dor aperta, arrasta o banquinho azul e se senta, até que o sinal feche novamente. Um caminhoneiro chama por ele. “Me ajude, diga qual você quer?”, diz, antes de perder o cliente, impaciente com a demora. Nos encontros do dia-a-dia, encontra amparo. “O pessoal me dá roupa, comida, presente. Essa camisa com proteção UV que estou usando, uma mulher me deu por causa da minha pele, não sabe? Faço muitos amigos”, conta, dizendo, nostálgico, que se a vida lhe desse chance

de escolher, teria sido professor. Gosta de ensinar. Retoma as forças e volta aos berros. Quase ninguém ouve, mas é impossível não ver a geringonça em forma de guarda-sol na qual Mário se transforma. Vai seguindo. Sua diferença com o Mazzaropi, que acordou de um sonho, é que não cultiva o seu.
Marília Parente

Marília Parente

Repórter

Marília é estudante de Jornalismo pela UFPE. Escreve para o Diario desde 2014, a maior parte do tempo na editoria do Vrum. Integra a equipe de dados do jornal, no projeto CuriosaMente, desde janeiro de 2016. É apaixonada pelas histórias encontradas pelas ruas da cidade.

Peu Ricardo

Peu Ricardo

Fotógrafo

Peu é fotógrafo. Integra a equipe do Diario desde 2015. Faz registros incríveis e diz que nenhum presta – esconde o jogo tal qual Colepícula e o Mazzaropi da Agamenon…