Uma seleção natural muito além do trabalho
No segundo dia da série As cidades dentro do Recife, mostramos como a renda pode definir realidades distintas dentro de um mesmo bairro. Amanhã, destacamos o quanto a educação influencia o futuro do cidadão
O Poço da Panela é um bairro que possui um dos metros quadrados mais caros do Recife. A renda dos moradores também é acima da média. De acordo com dados do Pnud 2014, o rendimento médio de um domicílio no local é de R$ 9,3 mil, bastante superior à media da capital, de R$ 3,7 mil. Ao andar por suas ruas, enxerga-se uma região tranquila, que chama a atenção por grandes casas e condomínios residenciais. Na área, e com o mesmo nome mas realidade diferente, também há uma “comunidade”, de baixa renda, fazendo do bairro um elegante retrato da desigualdade.
Laura Ferraz, 46, mora no Poço, numa casa de 400 m², junto ao rottweiller Kalil Max. Nascida em Petrolina, em uma família de nove irmãos, veio ao Recife aos 16 para estudar, com ajuda do pai advogado, profissão da qual atualmente tira o sustento. Conta que a família vivia bem no Sertão, mas conquistou tudo com fruto do próprio esforço. Credita o padrão de vida à formação em Serviço Social, Direito, além de cinco pós-graduações, pagas, desde os 18 anos, com ganhos do trabalho.
Ainda em início de carreira, Laura foi empregada por uma ONG alemã associada a jesuítas, no interior do Rio Grande do Norte, que lhe rendia alto salário pago em dólares, suficiente para permitir a evolução profissional do resto da vida. “Aos 22 anos, retornei ao Recife e comprei um apartamento nas Graças com o dinheiro que havia juntado”, conta. Desde então, adquiriu apartamento e casa no Poço, e residência de fim de semana em Aldeia, Camaragibe.
A algumas dezenas de metros de sua morada, as características de subúrbio vão ganhando destaque. Casas mais simples, menores e ampliadas de modo quase sempre improvisado. Foi onde Erenice Campos, a “Nize”, 39, nasceu e criou as filhas Milena, 18, e Amanda, 4. Há poucos anos, era doméstica – “lavava, passava, cozinhava e era babá” – e o salário era somado ao do marido, o pedreiro Adeildo, 54. Conta que o pessoal de lá (da parte nobre do bairro) “não é metido” e, de modo geral, tratam todos com respeito. As diferenças são estruturais. “Quando quebra algum encanamento público, é dois, três dias pra consertar. Lá é diferente. Energia quando cai, aqui demora mais também e o policiamento fica mais no lado de lá”, explica.
IDHm Recife: 0,734
Renda: 0,736
Educação: 0,662
Longevidade: 0,813
Para o economista Raul Silveira, a desigualdade é uma característica comum às Regiões Metropolitanas, e o Recife não foge disso. “São locais que concentram, de um lado, os indivíduos mais qualificados (com os maiores salários) e proprietários de capital (empresários) e, de outro, tendem a atrair indivíduos com baixa qualificação, a quem são oferecidas oportunidades de emprego, sobretudo, no setor de serviços”, aponta. De acordo com ele, na Região Nordeste, a situação se agrava por conta da pobreza histórica e dos contrastes mais acentuados.
Nesse sentido, o Recife amplia o diagnóstico do país. Segundo a Pnad 2015, os 10% mais pobres do Brasil possuem renda per capita de R$ 256, enquanto os 10% mais ricos, R$ 7.154 – o 1% do topo, R$ 20.364. Mudar essa realidade exige ações dos poderes públicos. Para isso, Silveira destaca investimentos em educação e, sobretudo, ações de curto prazo como a transferência de renda via Bolsa Família. No estado, ações de melhoria no ensino, a exemplo de escolas integrais. “De fato, tanto a qualidade do ensino federal quanto a do estadual têm melhorado, embora não na velocidade necessária para redução acentuada das desigualdades”.
rendimento médio de um domicílio no Recife (em R$)
rendimento de um domicílio no Poço da Panela (em R$)
Fonte: Censo 2010
Consenso entre os especialistas ouvidos, a desigualdade, somada à insuficiência da poder público em prestar serviços básicos, contribui para a segmentação drástica do mercado – o que acaba enfrentado por ações particulares e realimentando as diferenças. No entanto, com contextos culturais distintos, moradores de diferentes classes coexistem, sem, no entanto, compartilharem conceitos de “necessidade”.
Para Laura, ter uma boa condição financeira não significa cultivar hábitos extravagantes. Mas fazer o que tiver vontade, a exemplo das tradicionais duas viagens anuais ao exterior – em 2016, já foi à Colômbia e segue aos EUA em setembro – ou da coleção de obras de artes espalhadas na sala e no terraço. Além disso, poder ter, dentro de casa, secretária, cozinheira, jardineiro e alguém para passear com Kalil. Basta para lhe satisfazer.
Evolução de renda no Recife
Consenso entre os especialistas ouvidos, a desigualdade, somada à insuficiência da poder público em prestar serviços básicos, contribui para a segmentação drástica do mercado – o que acaba enfrentado por ações particulares e realimentando as diferenças. No entanto, com contextos culturais distintos, moradores de diferentes classes coexistem, sem, no entanto, compartilharem conceitos de “necessidade”.
Para Laura, ter uma boa condição financeira não significa cultivar hábitos extravagantes. Mas fazer o que tiver vontade, a exemplo das tradicionais duas viagens anuais ao exterior – em 2016, já foi à Colômbia e segue aos EUA em setembro – ou da coleção de obras de artes espalhadas na sala e no terraço. Além disso, poder ter, dentro de casa, secretária, cozinheira, jardineiro e alguém para passear com Kalil. Basta para lhe satisfazer.
O desafio de evoluir junto
Apesar das diferenças no próprio Poço da Panela, há a tentativa dos moradores de socializar o bairro como um todo. Laura Ferraz é a presidente da Associação dos moradores e amigos do Poço da Panela (Amapp), que realiza a Feira Livre do Poço, em que dezenas de ambulantes trabalham na venda de comidas e bebidas. “Acho que ajudamos as pessoas para que, através do trabalho, possam evoluir”, aponta, tratando ainda da parceria com bares e restaurantes locais, que estabelece elo entre moradores e empregos disponíveis. “Consigo ajudar muitos moradores juridicamente. Coisas que normalmente tem custo razoável, mas faço de graça”, garante Laura. Além disso, realiza cursos profissionalizantes, em parceria com instituições como o 11° Batalhão da Polícia Militar.
A iniciativa tenta preencher uma carência que o poder público ainda é incapaz de suprir. De acordo com o secretário de Planejamento e Gestão da Prefeitura do Recife, Antônio Alexandre, a conta da desigualdade do Recife é um débito que vem de décadas passadas e bastante trabalhoso de ser superado. “O Recife cresceu desigual. Entre as décadas de 50 e 70, por exemplo, a população quase dobrou. A cidade recebeu levas de pessoas e evidentemente não estava preparada para isso”, aponta, ressaltando que não é algo superável em “quatro ou oito anos” (ou seja, em dois mandatos de prefeitos). “É preciso uma estratégia de ação que vá além da gestão”.
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população economicamente ativa do Recife
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população economicamente ativa desocupada
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população economicamente inativa do Recife
João Vitor Pascoal
Repórter
João é estudante de jornalismo na Universidade Federal de Pernambuco.
Peu Ricardo
Fotógrafo
Peu integra a equipe de fotografia do Diario de Pernambuco desde 2015.