Recife recebe 1ª sessão de cinema adaptada para crianças com deficiência

por

Cinema da Fundaj, em Casa Forte, recebeu sessão adaptada para crianças com sindromes raras e seus familiares, durante semana estadual de conscientização

 

Em meio à sessão, os cabelos trançados de uma garota inquieta recebe a luz da projeção. O rosto funde-se ao contexto cinematográfico. Um grita “assim não dá para assistir”. Um grito fino, nervoso, urgente. “Ela quer entrar no filme”, assegura uma voz compreensiva, calma. Alguns riem. A menina continua andando em frente a tela. Uma birra ou conversinha a mais geraria irritação, transtorno e aquela postura onipotente que versa sobre a educação dos filhos dos outros. Não aqui.

O cinema da Fundação Joaquim Nabuco, em Casa Forte, recebeu, neste dia 27 de fevereiro de 2016, um público como nenhum outro. Trata-se da primeira sessão adaptada de Pernambuco, voltada a crianças com algum tipo de deficiência – a maior parte delas, com transtornos do espectro autista. As luzes não foram apagadas. O som, bem baixo. E, entre os adultos presentes, uma compreensão partilhada como não se vê mais com tanta frequência: todos sabem quais são os calos que apertam – e o quanto doem.

Respeitável público

O passeio não é dos mais comuns. Foi na sala de cinema que Matheus Felipe Baltar comemorava, sem saber, seus quatro anos. “Evitamos lugares públicos, com muita gente. Aqui, não tem como ter vergonha se ele gritar, espernear… todo mundo passa pela mesma situação. Não vão dizer que é mal criação”, explica o pai, o vigilante Itamar Marcondes Paulino Júnior, 27.

Como Matheus, Mariana Andrade da Silveira, aos 7 anos, também nunca tinha entrado num cinema – a única diferença é que ela prefere Peppa Pig à Galinha Pintadinha na hora de assistir vídeos em casa. “Era meu sonho que ela pudesse vir ao cinema. Já levei o irmão dela, de 2 anos, mas ela nunca. Sempre tive muito medo. Ela não gosta do escuro, nem de muito barulho. Estou ansiosa. Não sei como ela vai reagir…”, conta a mãe e artesã Débora Andrade, 26. Os garotos têm transtorno do espectro do autismo e, normalmente, não reagem bem à grandes aglomerados, sons altos ou escuridão – uma das formas de definir o próprio cinema…

A iniciativa faz parte da I Semana Estadual de Conscientização sobre Síndromes Raras, instituída em 2015 pela Lei n° 15.569. “É importante para que possamos oferecer experiências a essas crianças e para que as pessoas discutam a questão dos raros”, resume a coordenadora regional do Instituto Baresi, que lida com as doenças raras – grupo de cerca de 8 mil enfermidades que afetam um em cada 50 mil habitantes. No domingo, 28 de fevereiro, a mobilização fica por conta de um grande ato no Marco Zero, da Aliança de Mães e Famílias Raras (Amar), que convoca famílias a atividades e à doação de leite, fraldas e alimentos não perecíveis que serão encaminhados às famílias cujos filhos foram diagnosticados com microcefalia, condição que se multiplicou desde a epidemia do zika vírus em 2015.

Luz, câmera, ação

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

No exibidor, surgem cenas de animação em stopmotion com o DNA pernambucano. Dia estrelado, de Nara Normande, e Até o sol raiar, de Fernando Jorge e Leandro Amorim, ambas obras pernambucanas, vão apresentando um realidade de um nordeste colorido, marcado por sobrevivência, festa e cangaço. Os olhos dos pequenos ficam vidrados na tela, enquanto as mãos sistematicamente abastecem o corpo da tradicional pipoca. O som dos sacos vai dialogando com pedidos de “calma” e convites ao foco, interrompidos apenas por um ou outra requisição “biscoito! Chocolate”. Assim, em sequência.

A maior parte dos pais está em casal, vestem azul (em referência à luta pelo respeito ao autismo) e a atenção de ambos é voltada aos garotos. Com o tempo, os corredores vão ficando mais movimentados. A urgência de uma infância cheia de vontades exige exploração do espaço – sempre acompanhados de perto. “Não. No braço, não, Daniel. Não quer andar? Ande. Conheça”, diz a juíza Camila Cabral ao garoto de sete anos, entre pequenos pulos.

Enquanto isso, Débora vai suspirando aliviada, comentando as partes mais interessantes dos filmes. Mariana só se movimenta para trocar confidências com o saco de pipocas. Atrás dela, Matheus está mais concentrado que o usual. Ri, estica as pernas na cadeira. E, já nos minutos finais, levanta, ao som de um xote junino, para dançar no corredor iluminado, com sorriso largo. São trinta minutos. Pouco, alguns pensariam. Uma experiência surpreendente, diriam outros. “Foi bom demais. Ele viu tudo e até dançou”, diz Itamar ao fim da sessão.

Quando os créditos iniciam, Gabriel Souza, 5, do colo do pai, bate palmas, puxando aplausos. Com a concordância dos demais, leva o dedo aos ouvidos e se encolhe por instantes. São momentos, simplicidades, delicadezas. São limiares. Que são revistos a todo o tempo. Antes de levantar, ao lado do menino, passa Camila, com Daniel Cabral, 7, nos braços. Cedeu, mas sorri. Ele conseguiu o que queria. Ela também.

Talvez a tal vida seja assim mesmo – não mais difícil para alguns, mas apenas uma sequência de negociações e vitórias comemoradas momento a momento. Numa hora, reclamamos que tem alguém em nossa frente, em outra, só queremos ir até a tela e “entrar” no filme…

Ed Wanderley

Ed Wanderley

Repórter

Roberto Ramos

Roberto Ramos

Fotógrafo