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Recife, a capital brasileira da desigualdade

Várias cidades dentro de uma. A série As cidades dentro do Recife dá face à desigualdade materializada em índices de desenvolvimento, que apontam a capital pernambucana com a mais desigual do país desde 1991. No primeiro dia de reportagem, o índice que atesta essa realidade. Amanhã, como o cenário desenha o IDH municipal no que diz respeito à renda

 

Não é de hoje que o Recife ocupa o posto da capital mais desigual do Brasil. O título perdura há 25 anos. Quando se trata de concentração de renda, numa escala que vai de 0 a 1, o Recife ocupa nada menos que 0,6894 – bem superior ao último indicador brasileiro, de 0,490. É o coeficiente de Gini, apurado continuamente pela Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios (Pnad) e a cada censo pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A cidade não só é líder entre as capitais, como também é única de grande porte na lista das 50 mais desiguais entre os 5.570 municípios brasileiros.

“Desigualdade pra mim é pobreza”, resume Maria Anunciada da Silva, sem muita certeza, com o pouco de conhecimento teórico que adquiriu ao longo da vida. Acostumou-se ao deficit de infraestrutura. Aos 77 anos, mora com o marido – de cama, depois de um derrame – e duas filhas (uma com deficiência cognitiva), na beira de uma das diversas barreiras que compõem o bairro do Morro da Conceição, Zona Norte recifense. Firme, de concreto, sem risco de cair – bem diferente do cenário encontrado ao chegar, há 40 anos, de mudança do Córrego do Euclides.

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De uma porta, vislumbra os vizinhos de horizonte, habitantes de prédios que sonha em conhecer, apesar do medo de altura. Realidade visualmente tão perto, mas tão distante: “Acho que eles devem ser mais felizes porque têm mais dinheiro. Devem ter do bom e do melhor”, acredita.

Não há indicador de felicidade para confirmar a aposta de Anunciada, mas não é difícil chegar à conclusão quanto às distintas condições financeiras. “O coeficiente de Gini representa o grau de concentração da renda do trabalho (assalariado ou não) e das transferências sociais. Não leva em conta resultados de variações patrimoniais (vendas e compras de bens imóveis) nem de rendas oriundas de aplicações financeiras, que, se fossem contabilizadas, revelariam desigualdade ainda maior entre os recifenses”, esclarece o doutor em geografia humana e professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Jan Bitoun.

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O que (quem) é Gini?

Método criado pelo italiano Corrado Gini afere o quão concentrada é a renda em determinada localidade, sendo 0, a distribuição total e igualitária da renda entre a população e 1, a concentração completa por um indivíduo em detrimento dos demais. O índice é parâmetro internacional de medição de desigualdade.

A desigualdade nas capitais

Considerando dados aferidos pelo Banco Mundial, se fosse um país, o Recife encontraria, na Namíbia e na África do Sul, nações que ocupam mesmo patamar de desigualdade – a primeira, apenas independente em 1990, após profunda exploração alemã e sulafricana e a segunda, que ainda sente os efeitos do fim do Apartheid, regime de segregação racial, em 1994. “Penso que o mais destoa o Recife de outras localidades, mesmo no Nordeste, é a deficiência nos serviços de infraestrutura, particularmente os serviços de saneamento (água, esgoto, drenagem e lixo), educação e saúde”, aponta o professor do Departamento de Sociologia da UFPE Ronald Vasconcelos.

Precariedade que acaba afetando fatia significativa da população de forma contínua. De acordo com o IBGE, o Recife não só ocupa a liderança de desigualdade desde 1991, como ainda expandiu seu índice em 2000 e 2010. “Parte do povo tem representação numa cidade dual, em que existe uma periferia onde a ausência dos serviços de infraestrutura e habitações precárias condena extensas parcelas da população já combalidas pelo baixo poder aquisitivo”, acrescenta Vasconcelos.

Bitoun destaca ainda que o Atlas de Desenvolvimento Humano no Recife, realizado em 2005, mostrou um cenário em que, apesar de melhorias de indicadores sociais, o abismo econômico se evidenciava, o que cria bolsões de desenvolvimento ou pobreza que convivem em disparidade na cidade. “Se existiam impactos positivos nos campos do acesso à educação e aos serviços de saúde no âmbito da implantação do SUS, a renda se configura no núcleo duro da desigualdade no Recife”, relata.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Igualdade não, Anunciada

 

A vida de Maria Anunciada na capital pernambucana começou cedo, já com contornos de trabalho. Vinda de Goiana aos 15 anos para “trabalhar em casa de família”, como define. E família, para ela, sempre esteve ligada ao trabalho. O pai e a mãe saíam de casa logo cedo pra trabalhar na roça. Ela, com seus 11, 12 anos, ficava em casa, cuidando dos irmãos. Diariamente, ia até uma cacimba e buscava água, balde na cabeça. Ler e escrever eram luxos só realizados nas netas, que passam a tarde em sua casa, enquanto os filhos estão no trabalho. “Nunca fui numa escola. Digo pra elas que têm que dar muito valor ao que estão tendo, porque tem muita gente que não tem”, conta, convicta.

 

Desigualdade 1 - Geral - Maria Anunciada 2_lowQuando era um pouco mais velha que as netas, já lavava e passava para famílias recifenses. Num dos trabalhos, conheceu o marido, Manoel Ferreira. É da aposentadoria dele, de uma oficina, que vem a maior parte do ganho familiar – quase R$ 2 mil. Renda destinada, em sua maioria, para a compra de fraldas e remédios para ele. “Dá pra viver, mas é a ‘continha’. Quando o mês tá pra acabar já fico desesperada”, resume o drama mensal.

 

Já foi bem pior. Manoel bebia e Anunciada sequer via a cor do dinheiro para alimentar os 11 filhos. O prato do dia era, quase sempre, toucinho, farinha e arroz. Os bebês eram alimentados da água retirada do arroz cozido. “Era o jeito. A gente sempre soube se virar”, naturaliza. Apesar da idade avançada, não descansa dos afazeres domésticos. Lava e estende roupas encarando o chão escorregadio com a segurança de quem já passou por quase tudo na vida. O quintal, à beira da barreira, é quase uma varanda – como as centenas que vislumbra no horizonte, no alto de prédios resultantes de décadas de mudanças na cidade. “Daqui de cima eu via tudo. Via aeroporto, a (Avenida) Agamenon, até o mar de Boa Viagem! Agora é só prédio em cima de prédio”.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Uma herança açucareira e escravocrata

 

 

 

 

 

 

 

Muita terra nas mãos de poucos. Plantações de cana-de-açúcar a perder das vistas dos senhores de engenho. Aos escravos, senzalas. A realidade vivenciada em diversas capitanias hereditárias do Brasil-colônia atravessou séculos. Mudaram os contornos. De acordo com o sociólogo Ronald Vasconcelos, a realidade de concentração de renda vivenciada na capital pernambucana tem raiz profunda e histórica. “O sistema econômico predominante teve origem na cultura da cana-de-açúcar, baseada na produção escravocrata, cujo dinamismo econômico é baixíssimo, daí a concentração de renda”, resume.

Ao longo das décadas, a população deixou as plantações em busca do que hoje seriam os centros urbanos. No Recife, como ocorre em outras cidades, o “êxodo” acarreta na miséria de fatia expressiva da população. Os antes ocupantes de senzalas passam a ocupar centros urbanos em submoradias. “Com a libertação dos escravos e aumento da urbanização, a massa de trabalhadores é esquecida, formando verdadeiro contingente de mão de obra de reserva, que passa a se integrar, sob baixa remuneração, em serviços não especializados”. Faxineiros, engraxates, carregadores de carga, cuidadores de animais, comércio informal e improviso compõem a realidade de ex-escravizados, seus filhos e netos.

O geógrafo Jan Bitoun ressalta que os trabalhos “qualificados” foram restritos a um pequeno grupo da população. “O trabalho intelectual foi crescentemente remunerado, mas reservado a segmentos sociais, frequentemente vinculados ao estado, que tiveram acesso à instrução, configurando a emergência dos bacharéis, descrita por Gilberto Freyre em Sobrados e Mucambos como um grupo intermediário entre os poucos ricos e poderosos e os trabalhadores pobres”.

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Gini x IDH

O índice de desenvolvimento humano (IDH) é calculado baseado na renda per capita da população, mas também por meio de critérios educacionais (índice de analfabetismo e taxa de matrícula escolar) e de longevidade (expectativa de vida e taxa de mortalidade infantil).
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A esse cenário, junta-se o intenso fluxo de migração da população do interior em busca de trabalho, no século 20, possibilitando extrema redução salarial. “Com a concentração industrial no Sudeste, houve o enfraquecimento de sindicatos operários e a manutenção de formas não monetárias de remuneração (alojamento, comida, roupas), com predominância de mulheres”, completa Bitoun. Talvez por isso, conquistas trabalhistas ainda recentes, como o salário-mínimo e o acesso a serviços públicos de educação e saúde comecem a pavimentar um caminho de mudança de um abismo social ainda marcado por cicatrizes profundas.

João Vitor Pascoal

João Vitor Pascoal

Repórter

João é estudante de jornalismo na Universidade Federal de Pernambuco.

Peu Ricardo

Peu Ricardo

Fotógrafo e videografista

Peu integra a equipe de fotografia do Diario de Pernambuco desde 2015.