Melquisedec: recifense foi “maior livreiro do Brasil”
Apesar de ter frequentado a escola por apenas sete meses, o “maior livreiro do Brasil” mudou a forma de consumir livros usados no Centro do Recife
O nome Melquisedec é conhecido pela Bíblia como o instrutor de Abraão e rei de Salém, munido de iluminação sobrenatural. Numa palafita do bairro de Afogados, zona oeste do Recife, porém, um outro Melquisedec nasceu em 1921. O Melqui dos mocambos foi uma criança pobre que só passou pela escola durante sete meses da sua vida e, ainda assim, mudou a forma como livros usados são vistos e consumidos no Centro do Recife. O legado do maior livreiro do Brasil (título conquistado, em 1998, no I Congresso Internacional de Literatura Nordestina) é a Praça do Sebo, que chega, em 2016, aos 35 anos, ainda tentando resistir às mudanças dos hábitos de leitura da população.
Escondido por trás dos prédios da Avenida Guararapes, o espaço destinado unicamente aos sebistas da cidade foi uma conquista de Melquisedec, que,junto a outros vendedores de livros usados do Recife, conseguiu pressionar o poder público o suficiente para conquistar, em 1981, o direito de uso da praça. A relação entre o sebista e a praça continuou firme até seis meses antes do fim de sua vida. Beirando os 90 anos, diabético e hipertenso, deixou de frequentar religiosamente a praça que o fez famoso até sucumbir a um infarto, em fevereiro de 2011, pouco antes do aniversário de 30 anos do local.
Nos primeiros anos de “ocupação” da área, quem via o senhor ali, com mais de 60 anos, não imaginava que a sua relação com a venda de livros usados tinha surgido ainda na adolescência, quando trabalhou como ajudante de Manuel Belarmino da Silva, em um sebo na Rua do Rangel, no bairro de São José. Brincalhão, ainda que reservado, passava grande parte do tempo dentro do box de número 10 da praça da Rua da Roda e, ainda que não negasse uma conversa, protagonizou poucas entrevistas. “Jô Soares veio aqui por causa dele, chamou para ir para o programa e ele não foi, eles eram amigos”, recorda Iraci Petronilo, uma das sebistas que mais têm lembranças do livreiro, com quem trabalhou, lado a lado, por 13 anos.
Melqui é lembrado com carinho e gratidão, principalmente pela paciência que tinha para ajudar qualquer um que chegasse com dúvidas na Praça do Sebo. “Ele lutou muito por essa praça. Essa grade de proteção, os guardas municipais… tudo ele que foi atrás. Cuidou muito do espaço. O negócio dele era o livro. Foi o livro que ensinou tudo a ele”, afirma Augusto da Silva, que trabalha no local desde a fundação e tem, entre as lamentações, o fato de não ter dado o último adeus ao maior livreiro do Brasil.
Brasileiros que preferem leitura
Fonte: Instituto Pró-Livro
- 2007 36%
- 2011 28%
Preferências de lazer
Fonte: Instituto Pró-livro
“É preciso ler, é preciso ir aos sebos, santuários de raridades bibliográficas a preço de sebo”, disse, em entrevista ao repórter Clóvis Campelo, no ano de 1997, ao ser perguntado sobre que mensagem gostaria de passar ao mundo. Dados de pesquisas do Instituto Prólivro, organização que estuda os hábitos de leitura dos brasileiros, mostram que entre 2007 e 2011 a quantidade de pessoas que gostam de ler no tempo livre diminuiu de 36% para 28%. Os números sugerem que a mensagem de Melquisedec não chegou a ser ouvida e as condições de venda na praça parecem confirmar.
No local, o período de maior movimentação é a época de volta às aulas. Os acervos de livros didáticos e escolares são grandes e os preços, mais em conta, chegam a custar metade do valor de livros novos. “Fora a volta às aulas, quando começa o Enem e quando vai chegando perto de concursos vem muita gente procurar livros, principalmente de ensino médio”, lembra Iraci. Quase no meio do ano, porém, é difícil ver o local movimentado. “Está fraco demais, temos dias muito difíceis”, desabafa Augusto.
Bancos quebrados e falta de estrutura nos banheiros ampliam o vazio de pessoas num espaço que é lar do poeta Mauro Mota e de sua ode ao Rio Capibaribe, aguardando desbravadores. A história de Melquisedec vai dependendo da memória dos colegas de profissão que, no futuro, começará a falhar. Vão restando recortes de jornais, que, como a própria Praça do Sebo, acabam sendo suprimidos pelos avanços da tecnologia, em contraponto a resgates pontuais que tentam impedir que livreiro e legado virem só mais uma história.
Lorena Barros
Repórter
Lorena integra a equipe de dados do jornal, no projeto CuriosaMente, desde maio de 2016. É apaixonada pelas histórias que a cidade, em segredo, guarda e pelos momentos de sorte em que ela as revela. A reportagem tem fotografia de Malu Cavalcanti.