Uma ode de amor ao pão
Regionalismo, gourmetização e filosofia fit chegam com força ao mercado pernambucano, resultando em 1.001 formas de manter o pão como queridinho das refeiçõesPor Marcela Assis
Se fosse preciso apontar, entre diversos alimentos da culinária mundial, as comidas mais versáteis e afetivas, o pão entraria nas primeiras colocações da lista. Com uma produção média de 380 kg por minuto no estado, a massa ganha variadas versões nas mesas pernambucanas. Em pernambuco, filé de siri, abóbora, castanha de caju, inhame, caldo de cana, goiaba e até carne de sol dividem espaço com a farinha de trigo em misturas irreverentes. Além de carregar elementos regionais e movimentar a economia local, padarias despertam lembranças familiares e fazem parte do imaginário coletivo.
A relação com o alimento que nasceu há 12 mil anos na Mesopotâmia, em paralelo ao cultivo do trigo, transpõe os limites das padarias. Algumas pessoas cultivam paixão pela culinária e optam por fazer a massa em casa a partir de receitas de família e dividem entre amigos. Outros, motivados por restrições alimentares, como intolerância ao glúten, também recorrem ao próprio forno. Na prática, cada um vai achando uma forma de não retirar o “rei do café da manhã” do cardápio familiar. Tanto que, no Brasil, são cerca de 34 kg de pão consumidos por pessoa a cada ano.
Exploramos a cultura do pão entre pernambucanos, sua face econômica e inovações propostas por padarias locais, discutimos os benefícios do alimento milenar para a saúde e elaboramos um roteiro de pães diferentes que você precisa experimentar – se quiser tentar fazer o seu próprio pão, ensinamos também. Não aconselhamos seguir na página em caso de fome: cada palavra e foto foram pensadas para seu deleite.
Quando o pão vira representante de uma terra
Adaptações que agregam toques regionais à indústria de panificação e movimento de gourmetização do setor esquentam mercado e conquistam paladar pernambucano, mas exigem capacitação e uma habilidade de pensar fora da caixa e desafiar a imaginação do consumidor na maior linha “agradar gregos e troianos”
Fotografia: Rafael Martins
Há cheiros e sabores capazes de despertar memórias afetivas, descortinar lembranças, desafiar a passagem do tempo e o esquecimento. Alimento milenar, o pão percorre o imaginário de famílias inteiras. Difícil um pernambucano não recordar com carinho o aroma de massa ao forno, típico de estabelecimentos que reforçam a tradição do consumo de pão no estado. Com produção mensal média de 20 mil toneladas, o mercado local não apenas empresta cheiros a afetividades, mas vem se adequando ao gosto e às necessidades de seus clientes, formando uma nova lógica de mercado gastronômico, em especial na capital, Recife. São pães de linha fit, mais saudáveis e leves, outros com ausência de glúten ou fermento industrial, além de inúmeras variações gourmet, das quais se destacam aquelas que usam elementos da terra em sua composição, como jerimum ou coco na massa ou a apresentação do produto já recheado com siri ao consumidor. O paladar mudou e a panificação fez o mesmo.
Usar a regionalidade como ingrediente para valorizar receitas tem se mostrado uma aposta certeira. “O Nordeste tem alguns elementos que acabam fazendo parte dos pães. O doce, por exemplo, é popular porque somos grandes fornecedores de açúcar e algumas padarias usam frutas locais por causa da abundância que temos”, destaca o chef de cozinha e professor do Senac João Lima. Na prática, o processo de adaptação faz com que o produto tenha a cara de seu povo. Justamente por isso, os pães doces com amêndoas, típicos de culinárias europeias, aqui, ganham goiabada, coco ou amendoim.
Se pudesse revisitar a própria infância através de aromas, o paranaense Marcos Gugel prepararia uma fornada de pães. Descendente de italianos, radicado no Recife há 22 anos, o padeiro aprendeu a manusear massas quando ainda nem sabia segurar com firmeza um lápis entre os dedos. Depois vieram uma graduação em gastronomia e cursos profissionalizantes na Europa. O talento descoberto entre brincadeiras hoje é emoldurado pela Campo Fertile Padaria Gourmet, localizada em Igarassu, Região Metropolitana do Recife, desde 2005. No local, além de atribuir afeto a cada receita e nutrir satisfação pessoal, o empresário fortalece o segmento da panificação, em especial a fatia especializada na personalização dos produtos. Entre os pedidos dos fregueses, o pão de batata com siri, especialidade da casa, compete em popularidade com o tradicional francês.
Nas mãos dos padeiros responsáveis pelas criações vendidas no estabelecimento, cacau é misturado a castanhas de caju, massa de jerimum ganha recheio de carne de sol, caldo de cana divide protagonismo com o trigo e bacalhau vira ingrediente especial. Ervas e temperos regionais suavizam o sabor de algumas criações do empreendedor Marcos (ou “padeiro artesão”, como prefere se intitular). Em 2009, quando um funcionário propôs homenagem aos catadores de siri de Igarassu, o estabelecimento passou a produzir o pão de batata com o crustáceo, que mais tarde ficou em primeiro lugar na terceira Copa Bunge de Panificação e Confeitaria e hoje conta com demanda diária de 10 pães, um total de 7 kg. “O pão tem até bloco, o Siri no pão – o bloco que já nasceu campeão, que sai no Carnaval desde 2011”, conta Marcos.
A aposta no regionalismo reforça o mercado gourmet, atribui personalidade ao estabelecimento. “A customização artesanal cativa o cliente, já que ele sente que o alimento foi feito para ele. A especificidade do mercado local é a regionalidade com produtos voltados para o estado”, destaca o analista técnico do Sebrae Emílio Honório. O aditivo de requinte acaba reforçando o papel de protagonista que o alimento adquiriu nas mesas pernambucanas. “O pão é considerado a base da alimentação, não só aqui, mas da humanidade em geral. O hábito de comer pão é completo, nutritivo e ainda desperta lembranças familiares”, completa o chef João Lima.
Mesmo em cenário de recessão econômica, setor de panificação cresceu 3,08% em 2016 e espera crescimento semelhante em 2017
Em Pernambuco, 2,5 mil padarias ascendem recordações, eternizam histórias familiares a cada fornada. “O pão está diretamente ligado às nossas histórias, ao nosso imaginário e memória. Pão lembra infância, a cidade onde vivemos e família”, pontua o presidente do Sindipão-PE Paulo Pereira, que destaca a frequência de um mesmo cliente a uma padaria no estado: 14 vezes por mês, talvez por isso sejam estabelecidos elos comuns entre clientes e funcionários.
Mas a relação de proximidade com a clientela não é o único fator capaz de garantir longevidade e lucro aos estabelecimentos do setor. “A gente está em um período em que parou de crescer um pouco por causa da crise. Houve uma queda no número de padarias. Por isso que há empresas se reinventando, criando pães gourmet, apostando na fermentação natural, que são boas estratégias”, destaca. A indústria de panificação no estado é responsável por gerar 100 mil empregos, 30 mil deles diretos.
Nos últimos cinco anos, o setor de panificação, biscoitos, massas e bolos registrou crescimento de 39% no faturamento, de acordo com a Associação Brasileira dos Atacadistas de Autosserviço (ABBAS). “Empresários pensam que inovação significa apenas tecnologia, mas envolve outros aspectos, como atendimento especializado e estrutura. Apostar em receitas irreverentes é um ótimo caminho. É preciso entender que o mercado mudou. Hoje existe maior busca por comida mais saudável”, avalia o analista do Sebrae Emílio Honório.
A Vila Amizade Padaria Artesanal, aberta neste ano, é um exemplo. A casa número 54 na rua da Amizade, Graças, Zona Norte do Recife, era uma propriedade de família desocupada quando o empresário Frederico Luna, o pai e o irmão decidiram abrir uma padaria. Dos primeiros esboços de projetos até a inauguração, foram 12 meses de estudos, planejamentos e consultorias.
Entre as análises, os sócios decidiram apostar na fermentação natural. “O pão é milenar, é clássico, mas tem sido tratado sem muita consideração por padarias que industrializam demais o processo. A fermentação natural, apesar de levar mais tempo para ser feita, em média 24h, faz com que o pão fique mais leve, saudável e nutritivo. Além disso, volta às origens da panificação”, destaca o empreendedor, cujo negócio oferece mais de 30 tipos de pães, com destaque para o de abóbora com sementes de girassol – a aceitação do público vem demonstrando que limites, só se for de imaginação.
kg/ano é o consumo médio de pão por cada brasileiro
%
do trigo produzido no país é para a panificação
milhões de empregos, 640k diretos/1,8M indiretos no país
mil toneladas de pão são produzidas por ano no estado
Adaptação à la Do it yourself
Por restrições alimentares ou opção por uma vida mais saudável sem abrir mão do prazer de comer pão, pernambucanos investem em receitas caseiras
Além de ganhar forma nas mãos de padeiros profissionais, pães também ocupam espaço em cozinhas domiciliares. O forno da recifense Juliana Sampaio assa semanalmente versões caseiras das massas ciabatta, australiana e centeio. Entre os vizinhos e amigos dela, não há quem ignore o cheiro do alimento que permeia os cômodos do apartamento onde mora, no Cordeiro, no Recife.
“Eu costumo dizer que o cheiro de pão é sinônimo de amor. Convido pessoas para sentirem esse clima com um pão quentinho, feito na hora. É indescritível a sensação. Quando eu mesma faço, tenho maior controle dos ingredientes, da matéria prima. Eu controlo tudo, vejo como está sendo feito”, conta.
O prazer por fazer os próprios alimentos é tanto que acabou virando negócio, sob a marca da Sra. Massa, especializada em massas italianas, mas cheia de receitas de família, de sobremesas a pães. “Meu pai sempre fazia pão caseiro, minha família cozinha tudo. Eu ficava por perto, ajudava, fazia massa, prestava atenção em cada detalhe. Desde que me entendo por gente, meus familiares fazem a própria comida”, recorda.
Desde que descobriu intolerância ao trigo, há quatro anos, a chef de cozinha Fabrisa Silva também passou a fazer pães especiais em casa. “Eu comia pão e outros derivados diariamente. Na minha casa podia faltar qualquer produto, menos pão fresquinho. Um alimento como pão é difícil de substituir de forma integral por causa de sua complexidade”, destaca. Além das receitas caseiras que não levam glúten, a recifense recorre a produtores artesanais para não abrir mão do alimento.
A produção individual, assim como os empreendimentos especializados reforçam a relação de afetividade aquecida pelo pão entre os pernambucanos. O alimento vai além, é democrático: “O pão é um alimento muito popular, pode ser consumido por todas as classes sociais. Ele é alimento básico desde que o homem descobriu a agricultura”, completa João Lima.
3 receitas para fazer em casa hoje:
Pão sem glúten de liquidificador
INGREDIENTES
25g de de fermento biológico para pão
1 colher de sopa de açúcar
2 copos americanos de leite ou água, levemente aquecidos
10 colheres de sopa de farinha de arroz
3 colheres de sopa de polvilho doce
3 colheres de sopa de amido de milho
3 colheres de sopa de fécula de batata
3 ovos inteiros
2 colheres de óleo
1 colher de café de sal
MODO DE PREPARO
Coloque no liquidificador o fermento biológico, o açúcar e o leite (ou água) levemente aquecido. Ligue o liquidificador e acrescente a farinha de arroz, o polvilho doce, o amido de milho, a fécula de batata, os ovos, o óleo e sal. Desligue, tampe e deixe crescer até atingir a tampa do liquidificador. Se fizer numa tigela com um mixer, cubra-a com filme plástico. Demora de 15 a 20 minutos. Unte duas formas para pão com óleo e polvilhe com farinha de arroz. Coloque a massa nas duas formas e ponha no forno preaquecido a 180°C. Asse por 30 minutos ou até fazer o teste do palito e verificar que a massa não está mais grudando.
Pão integral caseiro
INGREDIENTES
400 ml de água morna
25 g de fermento fresco para pão
100 ml de óleo
1 colher (sobremesa) de sal
2 colheres (sopa) de açúcar mascavo
1 xícara (chá) de aveia
1/2 xícara (chá) de gérmen de trigo
1 xícara (café) de semente de linhaça
2 copos (requeijão) de farinha de trigo integral
Farinha de trigo até dar o ponto
MODO DE PREPARO
Em uma vasilha, misture o fermento com o açúcar e acrescente os outros ingredientes. Em uma superfície lisa e enfarinhada, sove bem a massa e deixe crescer até dobrar de volume. Modele os pães e coloque em forma de bolo inglês forrada com papel manteiga. Deixe crescer novamente. Leve ao forno a 200º C, por aproximadamente 25 a 30 minutos (observe, já que o tempo pode ser alterado, dependendo do forno).
O vilão das dietas?
Item indispensável na mesa de muita gente, o pão tem produção média anual de 200 mil toneladas no estado, de acordo com o Sindipão-PE. Apesar da popularidade, principalmente no café da manhã, há quem atribua alcunha de vilão ao alimento. No cardápio dos que decidem fazer dieta por conta própria, é um dos primeiros itens eliminados. A decisão precipitada, esclarece a nutricionista Roberta Bastos, pode refletir na disposição diária: “O pão é um carboidrato, nutriente que tem a função de dar energia para a realização das nossas atividades, como estudar ou trabalhar”.
Ricos em glicídios, os pães funcionam no organismo como calmantes naturais. A massa estimula a formação da serotonina, neurotransmissor capaz de gerar sensação de bem-estar e humor saudável. O benefício não pressupõe exageros. Mesmo ao promover sensação de felicidade, o alimento se enquadra no argumento de que tudo em excesso pode resultar em efeitos negativos. “Nada é proibido desde que não seja consumido em quantidades exageradas”, pontua Roberta. Ela destaca ainda que quem tem um gasto calórico mais alto, ou seja, quem faz muito exercício, pode consumir mais. Já quem tem uma vida sedentária, deve comer em porções menores.
“A quantidade dependerá do nível de atividade corporal e da idade da pessoa. Além disso, aqueles que têm uma vida bastante ativa, como esportistas, podem e devem consumir pães preparados com farinha branca. Aqueles que têm como objetivo reduzir a quantidade de gordura corporal, emagrecer, reduzir colesterol ou triglicérides, é melhor optar pela versão integral”, explica, garantindo que o vilão da dieta, na verdade, é a falta de bom senso na busca por uma alimentação bem-sucedida.
Marcela Assis
Repórter
Marcela é repórter do Diario de Pernambuco. Começou escrevendo para o jornal como estagiária para o caderno Viver, de cultura local. Gosta de escrever sobre inúmeras paixões, comida é uma delas.
Rafael Martins
Fotógrafo
Rafael é fotojornalista do Diario desde 2015. Cobre pautas diversas, de economia a questões de conflito social. Baiano, não perde a oportunidade de experimentar as sensações de registrar (e provar) culinárias fortes, como têm que ser.
Ed Wanderley
Editor
Ed é repórter e editor do CuriosaMente e de marketing de conteúdo no Diario, que integra desde 2010. Escreve sobre temas sociais, saúde e economia sustentável e nessa pauta, aproveitou para experimentar mais que palavras.