Casas de recuperação: a cura em nome de Deus

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Dependentes químicos conciliam tratamento baseado na religião com trabalhos ambulantes nos ônibus em busca de dignidade e sustento do tratamento, no Recife

 

Antônio não era milionário, mas até vivia bem. Tinha um Opala imponente, capaz de arrastar olhares pelas quadras meticulosamente desenhadas da capital nacional. Na mesa da sala, escrevia os quatro nomes que lhe faziam homem com cocaína. Cheirava um de cada vez, os intercalando com uma dose de Whisky. Não sabe bem quando, nem como, mas tem certeza que em algum momento da vida o hábito lhe tomou tudo. Casa, carros, dinheiro, os celulares que, irritado, jogava contra as paredes, três filhos e dois netos. Só restaram as tatuagens e o gênio forte. Hoje, os movimentos agitados foram substituídos pelo tremor de alguém em abstinência, separando doces de forma sistemática, colocando-os dentro de um saco com a palavra do Senhor em uma sala espaçosa do bairro de Boa Viagem, Zona Sul do Recife. É um dos seis homens em tratamento para dependência química no projeto Liberte-se, da igreja Luz do Mundo, uma das casas de recuperação que utilizam preceitos religiosos para tratar o problema de saúde pública. Os doces vão para as mãos de centenas de passageiros de ônibus, ao valor simbólico de R$ 2, que custeiam os tratamentos, por uma chance diferenciada de cura das drogas – não por remédios ou por médicos, mas pela Palavra de Deus.

Com menos de um mês de implementação, a casa de Boa Viagem é a segunda do projeto em Pernambuco. A primeira, com capacidade para 40 internos, foi inaugurada em Jaboatão dos Guararapes em janeiro de 2017. Desde então, não é difícil ver os rapazes de camisa amarela nos coletivos da cidade. Os “ex-viciados em drogas”, como costumam falar quando anunciam o produto, são sempre de outro estado, já que a igreja tem sedes em todos os pontos do mapa e trabalha com sistema de intercâmbio. “Fazemos isso porque tirando eles de onde moram cortamos o vínculo de amizade e do conhecimento do território. Dificulta a desistência, porque é mais difícil saber onde vende drogas”, explica o diretor local, Deivyson Weiller, que saiu do Mato Grosso do Sul para o Rio Grande do Norte apenas para curar o vício no crack e conta estar livre há sete anos. O ex servidor público, hoje com dedicação exclusiva ao projeto, se apressa em desmentir a visão que muitos têm daquele trabalho. “Falam que essa é uma ‘mão de obra escrava’, mas não é. Isso forja o caráter deles. Eles estão acostumados a roubar, matar, ser presos, não ter horários…”, explica.

A forja do caráter explicada pelo diretor é perceptível a partir da terceira fase do processo de recuperação, de quatro a seis semanas após a chegada do paciente. Naquele momento, as crises mais graves de abstinência já passaram e é possível saber melhor qual o temperamento de cada um. O comportamento na rua é previamente avaliado e quem demonstra menos descontrole quanto aos desafios do mundo é finalmente confiado com cerca de 60 kits de doces. Como na maioria dos trabalhos, saem após o café da manhã, voltam para almoçar e depois saem novamente. A agenda fora desses horários é cheia. Nas terças, quintas e domingos assistem ao culto, nas segundas e quartas, assistem a vídeos motivacionais ou filmes. No sábado, têm um dia de lazer. Algumas conversas em grupo são coordenadas pelo pastor, como uma forma de medir a saúde mental de cada um. Ali, não há tarja preta ou psicanálise. “Nosso remédio é a Palavra, nosso psicólogo é Deus”, conta Deivyson.

é a média de pacientes só do projeto Liberte-se no Recife

anos se passaram desde a abertura da primeira casa, em São Paulo

Reais é o valor da internação para mensalistas (não saem para fazer a venda, mas trabalham na casa)

O único que ainda não pode sair para vender, por orientação da família, é Antônio. Para ele, cuja droga mais difícil de largar, aos 42 anos, foi o álcool, resta o trabalho de cozinhar. Após passar por uma série de casas de recuperação (inclusive, outra relacionada à religião), ele é o retrato da dualidade de alguém que tenta recuperar quase três décadas de abusos químicos com horas diárias de cultos, montagem de kits e conversas com diretores. Ao mesmo tempo que conta peripécias de uma vida regada a drogas, fala que quer ser batizado. “Mais de duas vezes já previram que eu serei ministro, usarei minha voz no púlpito”, recorda. Poucos minutos depois, lembra das tatuagens que ainda vai fazer, antes do batismo. Pergunta uma, duas, cinco vezes para qual lado tem uma parada de ônibus ou por onde precisa andar até chegar ao aeroporto. “Ainda planejo visitar Machu Picchu (no Peru), onde vive um amigo meu da faculdade”, comenta pouco antes de perder a linearidade e lembrar de como o projeto de libertação ajuda mães desesperadas: “Os irmãos sabem mais do que eu, mas acho que é em um versículo de Apocalipse que tem uma passagem sobre isso…”.

meses é o tempo médio de tratamento no local

reais é a média de uma internação em outras casas de recuperação

Peu Ricardo / DP

Fases da internação da igreja Luz da Vida

Pré-internação
O dependente químico precisa aceitar o tratamento. Ele nunca será internado à força. A princípio, a rejeição é comum, mas estima-se que 90% aceitem internação após ouvir testemunhos dos diretores.
1ª fase - Abstinência
1º ao 15º dia (podendo estender até para um mês)
No corpo: Nos primeiros dias, os internados terão as mais severas crises de abstinência. Os sintomas, segundo psiquiatras, podem vir em forma de tremores, enjoos, agitação e insônia.
Na casa: eles passam por um processo chamado pelos funcionários de “pressão psicológica”, que consiste em seguir horários para acordar (7h), fazer as quatro refeições do dia, participar dos cultos e ajudar com afazeres domésticos. “Ele vai querer fugir daquelas obrigações e vai ser pressionado até chegar em um ponto que não aguenta mais e bota para fora os sentimentos”, explica o diretor Deivyson Weiller.
2ª fase - Acompanhamento (ou, fase de confiança)
15º ao 30º dia
No corpo: A fase das crises mais fortes já passou, é mais fácil fazer ações sem tremer ou não sentir tanta irritabilidade.
Na casa: Depois que o paciente está mais tranquilo, ele é levado para as primeiras saídas na rua, sempre acompanhado de um diretor ou de um obreiro (alguém curado das drogas há mais tempo). Durante todos os passeios a farmácias, mercadinhos e padarias, o comportamento é observado. “Nesse período a gente compartilha histórias, faz o mapeamento da vida, entende o porquê dele entrar naquela situação”, diz Weller.
3ª fase - Formação de Caráter
2o ao 6o mês
No corpo: Ainda há 70% de chances de uma recaída
Na casa: É a hora de dignificar o homem. Os mensalistas (são poucos) trabalham cozinhando, montando os kits ou ajudando dentro de casa. Quem está lá de forma gratuita vai trabalhar nos ônibus. Geralmente, acordam às 5h, saem depois do café, voltam para o almoço e saem à tarde até voltar para o jantar. “Ele vai sair, trabalhar, andar com dinheiro sem gastar, cumprir uma meta e voltar para casa”, conta o diretor.
4ª fase - Liberdade

6o ao 9o mês

No corpo: As chances de uma recaída caem para 50%.

Na casa: O assistido pode fazer uma série de atividades sem companhia do obreiro, tem permissão de sair para o shopping ou para a praia. No fim desse nono mês, se recuperado, ele pode voltar à sociedade em busca de um emprego ou continuar ajudando dentro da clínica.

 

 

O encontro de Emerson e Deus

 

 

 

Emerson conta o testemunho de forma apressada, no meio de uma mudança da cidade de Fortaleza para o Recife. Tem retórica aprumada, talvez pela vocação secreta para ser pastor, talvez pela quantidade de vezes nas quais entrou em ônibus para vender os doces. Conta estar “curado em Deus” há sete anos. Com 26, esta é a segunda grande guinada na vida dele. Ambas consequentes do projeto Liberte-se. Da primeira vez, saiu de casa para Salvador, quando já vendia bens da família para comprar drogas. A mãe, de vida humilde, “sentiu no coração a vontade de levar um kit informativo desses quando estava dentro do ônibus, na esperança de ajudar”. Foi o suficiente. No dia anterior, enquanto não conseguia dormir, o rapaz de 18 anos tinha pedido a Deus uma forma de sair daquela situação. Apenas seis meses de tratamento foram necessários para uma mudança completa. É como se o encontro com a Palavra, remédio efetivo para aquela dependência, não pudesse esperar nenhum segundo. Hoje, tem tudo que pediu: “Ele foi tão misericordioso que fez uma transformação na minha vida. Colocou uma mulher de Deus nela. Uma esposa”, comenta, enquanto a aliança brilha no dedo e a foto deles dois junto ao filho reluz na tela do celular. Agora, tem o trabalho de coordenar a nova casa.

Sobre as “mulheres de Deus”, a casa, com 22 anos de formação, também traçam planos de abrir centros voltados ao público feminino. “No caso delas, a dependência é ainda pior, pois chegam a se prostituir para comprar droga”, frisa Weiller. A ideia é que elas sejam menos “expostas” que os homens, trabalhem com a confecção de materiais que possam ser repassados e vendidos por eles no lugar dos bombons.

 

O que a medicina diz sobre isso?

 

A relação da igreja com o tratamento de dependentes químicos é anterior à da medicina. “A dependência era vista como uma fraqueza do indivíduo, não como uma doença. Por muitos anos, quem cuidou dessas pessoas eram as instituições religiosas”, explica o psiquiatra do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e especialista no assunto, Thiago Queiroz. A falta de um profissional habilitado para acompanhar momentos tão delicados, porém, não é indicada por quem estuda o assunto. “A dependência química hoje é considerada uma doença crônica. Ela precisa da contribuição profissional, porque é uma questão que não envolve apenas a vida espiritual de um indivíduo”, pontua.

Dentro do projeto, porém, o pastor Gustavo Diniz, psicanalista em formação, garante que os comportamentos são analisados, e, se necessário, tratados. “No ambiente religioso prestamos muita atenção aos problemas psicológicos dos dependentes. Sempre que necessário os encaminhamos a clínicas especializadas”, explica o pastor. Para o psiquiatra Thiago Queiroz, o distanciamento entre paciente e local onde mora é apontado como algo benéfico nos casos mais extremos, mas a ressocialização daquele paciente ao espaço, porém, precisa ter atenção redobrada. “Se um paciente volta para casa e ali tem fatores que o influenciaram a usar drogas, isso é prejudicial. A espiritualidade é algo importante para a recuperação a médio e longo prazo do paciente, mas não deve ser colocada como a única forma de tratamento”, defende.

Lorena Barros

Lorena Barros

Repórter

Lorena Barros é jornalista formada pela UFPE. Integra a equipe do CuriosaMente desde maio de 2016.

Peu Ricardo

Peu Ricardo

Fotógrafo

Peu é fotógrafo do Diario de Pernambuco desde 2015.