Auroras: histórias de vida e resistência de mulheres do Recife

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Cabeleireira, artista, empresária, idosa, travesti, lésbica e cadeirante: em comum, o fato de serem mulheres e vencerem o preconceito diariamente

 

Dentre os propósitos da natureza, o calor possui um dos mais admiráveis. Sua capacidade de reunir as partículas torna o dia especialmente vocacionado aos encontros. Uma rua chamada Aurora não poderia ter outro talento que não o da sedução de transeuntes, com seus banquinhos e vista para o rio, para uma conversa com quem quer que passe, à maneira de uma mãe que pega o Recife inteiro no colo. Vamos aos exemplos: Paula não precisou de muita conversa para empurrar a cadeira de rodas de Suely. Nathália trocou meia dúzia de palavras com Dona Nádia antes de oferecer-lhe suporte ao lado esquerdo do corpo, que a bengala não contemplou. Amanda, Valdimarta e Ju elogiaram a vista aos passantes. A rua, palco dos primeiros protestos de levantes feministas na capital pernambucana, permanece incólume às agressões da cidade. As mulheres que optaram por resistir, em função da própria felicidade, também.

Valdimarta pede emprestado um pedaço de tarde na Rua da Aurora para ler, em voz alta, o cordel “Dia Internacional da Mulher”, escrito por Susana Morais, a quem costuma comprar alguns livretos. Como tudo que possui, os versos foram pagos com o próprio dinheiro. “Comecei trabalhando fazendo unha, cabelo, até conseguir abrir meu próprio salão”, comenta a cabeleireira. Mãe de duas filhas, trocou o autoritarismo do ex-marido pela autonomia. “Ele não me deixava nem trabalhar, era muito machista, achava que precisava obedecer a ele”.

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“Carbonizam como Breu
Presas como animais
No futuro viram símbolos
De protestos pela paz
Por amor e igualdade
E direitos usuais”

É acostumada a ir de encontro ao que lhe dizem, como verdades inabaláveis. “Sou evangélica. O Deus em que eu acredito nos dá livre-arbítrio. Por que as mulheres não podem, por exemplo, abortar? Também é nosso direito controlar nossa natalidade. Recentemente, convenci minha pastora a levar camisinha feminina para a Igreja. Vou me encher de pílula? Engordar, ficar estressada? Depois os homens reclamam”, argumenta.

Criada no Coque, logo aprendeu cedo a se levantar contra as desigualdades sociais. “Na minha infância, quando tinha ameaça de desapropriação, os tratores passavam muito tempo rondando o lugar, para intimidar a população. A especulação imobiliária age como se a gente não tivesse ligação com o lugar, sem respeito à nossa história. Pode ser um 2×2, é sua casa”, comenta. O medo dos tratores foi substituído por uma fé inabalável. “Tem uma passagem da bíblia que diz: ‘não vos conformeis com esse mundo’. A gente tem que acreditar e lutar. No Coque, tem muito isso de mulher chefe de família. Os maridos abandonam, dão três sapatos e a gente assume mesmo. O que sobra é a coragem. Não tenho nem tempo de ter depressão. Minhas filhas não deixam…”.

Valdimarta Vitor, 24 anos, cabeleireira

Ju Cavalcanti, 34 anos, empresária e produtora de eventos 

Se Valdimarta precisou de um casamento para lutar por sua autonomia, a empresária e produtora de eventos Ju Cavalcanti a consolidou no mercado de trabalho.

“Eu sou a maior produtora, mulher, de música eletrônica do Brasil – e são pouquíssimas. Tem quem ache que você é incapaz por ser mulher. Por isso, o trabalho precisa ser perfeito e você precisa estar maravilhosa sempre. Existe essa exigência. Você não pode ser só competente”, diz.

Nathalia Queiroz, 30 anos, artista plástica

Foi justamente quando tornou-se autônoma que a artista e designer Nathalia Queiroz sentiu necessidade de aprofundar-se no feminismo. “Eu precisava correr atrás das coisas, me articular com parcerias, desenvolver trabalhos. Comecei a discordar de algumas coisas”, lembra. Nathalia desbrava seu espaço numa cidade em que a mulher ainda precisa pleiteá-lo e o faz, sobretudo, através da arte. “Calhou que de uns tempos pra cá, tenho trabalhado com questões de gênero. A democracia data de 500 anos a.c e significa o “poder para o povo”. Nessa época, quem era o povo? Os homens. Até hoje, o espaço que temos como mulher é muito pequeno”, completa.

Nádia Lins, 87 anos, pediatra aposentada

A pediatra Nádia Lins completou 87 anos no dia 8 de março de 2016. Quando chegou de Fortaleza ao Recife, aos 16 anos, para estudar medicina, enfrentou uma sociedade ainda mais machista do que a se critica hoje. As dificuldades foram vencidas com muito trabalho. “Morei no Hospital Infantil até me casar. De lá, só saí vestida de noiva”.

A distância dos pais e a vivência no exterior, durante um intercâmbio na Inglaterra, ensinaram Dona Nádia a valorizar sua independência. “Fico agoniada sem ter o que o fazer em casa, agora que estou aposentada. Até aula de informática já fiz. Eu acho que a gente tem obrigação de ficar atual, aceitar as mudanças. Não vejo problema que as moças de hoje possam viver com um rapaz o que elas quiserem antes de casar, que elas vistam o que desejar, que possam viajar sozinhas. Ter as próprias experiências”, comenta.

Amanda Palha, 28 anos, travesti e estudante

Das unhas do pé pintadas de marrom à raiz dos cabelos loiros, Amanda é uma mulher. Tem uma calça de tecido cheia de flores, 1,75 metro de altura e namora Victor, mas namoraria outra moça, se assim desejasse. “Sou bissexual e travesti. Um dia me olhei no espelho e disse: ‘Tá. Se eu não vivesse numa sociedade preconceituosa, o que eu gostaria de ser?’”, lembra, sobre o fim de um longo processo de negação de sua identidade de gênero. Hoje é Amanda Palha.

Seu nome está cravado no topo do listão 2016 do curso de Serviço Social da UFPE, área na qual já atua profissionalmente, em um curso de reciclagem para catadores de lixo. Apesar da familiaridade com área, Amanda está apreensiva quanto à socialização no curso. “Em lugares mais pobres, as pessoas perguntam o que somos e convivem conosco. A maioria das travestis vive em situação de pobreza. Hoje, quando a gente começa a entrar na universidade, precisa lidar com o ‘politicamente correto’ da classe média, que evita piadas, mas não se aproxima. O círculo afetivo das pessoas que estão nela não nos incluem, porque nunca existimos ali. É fundamental existir”, comenta.

Paula Mascarenhas, 29 anos, lésbica e estudante

Para existir é preciso ter visibilidade. É por isso que Paula e sua esposa, Carol, resistem de mãos dadas aos olhares de reprovação e agressões verbais nas ruas. “Sempre fui engajada com as questões LBGT, por conhecer muitos amigos atuantes nesse sentido. Apesar disso, todos os meus namoros haviam sido com homens. Quando conheci Carol, me apaixonei por ela. Simples assim”, responde com a naturalidade que o amor ensina quando questionada sobre seu relacionamento.

Acostumou-se ao passo apressado que as ruas impõem a quem dispensa o “homem ao lado”. “A presença masculina representa respeito para as pessoas. Eu e Carol não somos levadas a sério como um casal. É comum que os homens fetichizem nossa relação, como se pudessem fazer parte dela, ou que a tratem como se fosse uma fase”, reclama.

Suely Guimarães, 51 anos, paratleta e cadeirante

Suely é tão especialista em ser levada a sério quanto no arremesso de disco, que já lhe rendeu três medalhas paralímpicas. “Eu tinha sete anos e estava brincando na calçada de casa, com uma amiga, em São José do Belmonte, no interior do estado. O cara vinha bêbado e atropelou nós duas. Ela morreu, eu perdi as duas pernas”, recorda. A deficiência não impediu que a sertaneja se tornasse uma das principais paratletas do país.

Na versão 2016 do Dia da Mulher, comemora mais que uma efeméride: entre as conquistas que coleciona, agora consta a colação de grau no curso de Educação Física. “Esta data representa tudo aquilo que aprendi com minha mãe, uma mulher muito pioneira, que me ensinou a enfrentar a vida e nunca deixar de lutar por meus objetivos. As dificuldades foram muitas, sobretudo nas aulas práticas, mas eu venci todas elas”, conta, emocionada.

Travesti, cabeleireira, artista, empresária, idosa, lésbica e cadeirante pouco têm nada em comum além do fato de serem mulheres. As diferenças são, possivelmente, o principal motivo pelo qual elas precisam oferecer amparo, umas às outras. A união feminina representa a maneira através da qual a mulher vem podendo existir e ocupar espaços. O Recife empurra, mas Aurora resiste, dócil e fértil à beira do rio, enquanto suas filhas com a cidade vão garantir os seus lugares.

Marília Parente

Marília Parente

Repórter

Marília é estudante de jornalismo da UFPE. Escreve para o Diario desde 2014, a maior parte do tempo para a editoria Vrum. Quase teve um filho com Aurora até que esta reportagem saísse do forno – e se queimou bem pouco na tentativa…

Paulo Paiva

Paulo Paiva

Fotógrafo

Paulo é fotógrafo do Diario desde 2010, onde começou estagiando. Admirador de todo tipo de mulher, fez os registros desta reportagem com as bênçãos de Aurora…