Assombrações made in Pernambuco

Histórias de entidades soturnas e locais macabros resistem ao tempo e permeiam o popular do estado

Enquanto as pessoas tiverem imaginação, existirão lendas. Para encontrá-las, o pernambucano não precisa atravessar fronteiras. O estado é repleto de histórias, da capital ao Sertão. Repassadas de geração a geração, normalmente com alguma “atualização”. “É aquela história: quem conta um conto, aumenta um ponto”, brinca o professor doutor em história da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Severino Vicente da Silva.

Como define o poeta e editor Walter Ramos, “o realismo fantástico povoa a cabeça do pernambucano”, daí vem tantas histórias dos mais diversos tipos, em diferentes lugares. Em praças e parques, é preciso estar atento ao papa-figo. Já no Parque Dois Irmãos, as ruínas do Açude do Prata são habitat não de animais, mas da assombração fantasmagórica Branca Dias, judia acusada de bruxaria que deixou suas riquezas no açude antes de falecer.

 

“Com a internet surgem histórias como a do hambúrguer que seria feito de minhoca, ou a numeração no fundo da caixa do leite que indicaria quantas vezes ele foi reaproveitado”

César Mendonça

Pesquisador da Fundaj

As lendas também chegam à praia. Mais precisamente no Janga, no município do Paulista, Palhaço do Coqueiro observa a lua à noite. Ao andar pelas ruas dos bairros de São José e da Boa Vista, além da atenção para não ser assaltado, é aconselhável estar atento à presença do Cabileira, figura violenta que mata os transeuntes e foge pelo Rio Capibaribe.

O rio, aliás, contribuía coma realidade e ajudava na geração de novas lendas e histórias. “O Rio Capibaribe tem uma fama muito grande de ser mal-assombrado e as histórias eram voltadas para as pessoas que morreram afogadas ou que morriam jogando-se das pontes”, pontua o pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) César Mendonça.

A vocação pernambucana para histórias surreais é extremamente rica e vem de séculos passados. “Maurício de Nassau, por exemplo, criou a história do Boi Voador para mobilizar a população e ela é absurda. Onde já se viu boi voar? Tem coisa que só aconteceu no Recife. A cidade tem uma história muito peculiar”, relata Walter Ramos.

Há ainda as lendas nacionais e até internacionais que ganham contornos e cenários locais. Em 2008, por exemplo, um suposto lobisomem aterrorizava o bairro de Cajueiro Seco, Jaboatão dos Guararapes, estampou as páginas do jornal Aqui PE. Na ocasião, até um cartaz foi espalhado pelo bairro para alertar os moradores e uma ronda foi organizada nas proximidades da estação do metrô, onde a “criatura” atuava.

“O caso da emparedada da Rua Nova, por exemplo, é uma história que tem várias correspondências com outros casos do Brasil e do mundo, de pessoas que colocavam familiares mortos dentro da parede de casa para ninguém notar que haviam morrido”, acrescenta Severino da Silva.

César Mendonça destaca que as lendas vão sendo reinventadas e não é raro que aproveitem supostos casos de crimes. “Lembro que, na década de 1990, havia a história do papa-figo motorizado, que sequestraria  pessoas e tirava órgãos para transplantes ilegais”, conta Mendonça. Walter Ramos também tem uma memória semelhante no bairro da Várzea. “Na minha infância havia a kombi azul, que levava crianças para o papa-figo”, relembra.

“Todos os povos têm suas lendas que fazem parte da identidade cultural, passam entre as gerações e são mudadas de acordo coma época vivida. As novas gerações terão novas lendas

Severino Vicente

historiador da UFPE

Assombrações para todos os lados

Personagens foram registrados na obra O livro ilustrado das assombrações de Pernambuco, de Walter Ramos e Daniel Araújo

PAPA-FIGO

Local: Praças e parques
Usa presentes e doces para atrair crianças. A origem viria de um médico hemofílico da família Amorim, morador da Zona Norte do Recife. Por conta do estado de saúde, foi aconselhado a ter uma dieta rica em ferro e consumia muita carne vermelha e fígado.

BRANCA DIAS

Local: Ruínas do Açude-do-Prata, Parque Dois Irmãos
A judia do Recife, foi acusada de bruxaria e seria condenada em Portugal. Revoltada, jogou todas as joias no açude antes da viagem, porém, antes de partir, faleceu. Às noites, ronda as ruínas e assombra quem estiver por lá.

O CABILEIRA

Local: Bairros de São José e Boa Vista
Um homem forte e violento que machuca e mata pessoas nas ruas da região central do Recife. Normalmente, busca os cidadãos indefesos e, após os crimes, foge pelo Rio Capibaribe.

BARÃO DE ESCADA

Local: Todo o estado
A lenda vem de Belmiro da Silveira Lins, tenente-coronel da Guarda Nacional e primeiro barão de Escada, assassinado em Vitória de Santo Antão. Anda por todo o estado coberto por um lençol ensopado de sangue.

BOCA-DE-OURO

Local: Perto de bares
Anda em busca de pessoas solitárias na rua e pede que acendam-lhe um cigarro. Antes que o façam, dá uma gargalhada e exibe os dentes dourados, que lhe dão o nome, e continua perseguindo a vítima.

PADRE SEM CABEÇA

Local: Ruas do estado, próximas a igrejas
Se a mulher que tem relações com o padre vira mula-sem-cabeça, o religioso se transformaria no Padre sem cabeça. Persegue as vítimas pagando penitência que perdurará por uma eternidade de assombração.

NEGO D’ÁGUA

Local: Rio São Francisco
Protetor do rio, é uma entidade meio homem, meio anfíbio, que aborda pescadores e desatentos levando-os para dentro d’água. Para escapar e não morrer afogado, é aconselhável não ficar sozinho nas margens do rio.

PERNA CABELUDA

Local: Região Metropolitana do Recife
É apenas uma perna que percorre todo o estado, principalmente os arredores do Recife.A história foi criada por Raimundo Carreiro em texto publicado no Diario em 1976. Programas de rádio e de TV encontraram“vítimas”.

LOBISOMEM

Local: Todo o estado
Das lendas mais difundidas do mundo, em Pernambuco, o monstro invocado pelas luas cheias teria aparecido mais recentemente em ruas de Jaboatão dos Guararapes, sem que ninguém tenha conseguido filmá-lo.

JOÃO GALAFOICE

Local: Litoral
Um preto velho que assombrava marinheiros e estivadores na beira do mar. Prenunciava mudanças climáticas e tempestades. Corria com sua cabeleira brilhante e esvoaçada pela praia. Cabelos cor de fogo que podiam ser vistos à distância.

ACENDEDOR DE LAMPIÃO DA PONTE D’UCHOA

Local: Ponte D’Uchoa
Características: Chefe da estação teria sido assassinado entre a Estrada do Arraial e Dois Irmãos. Sua alma seguiu atormentando os acendedores de lampião, que alegavam ver vultos e o fantasma.

VIRAROUPAS: FANTASMA PERVERSO

Local: Zona Norte do Recife
Nunca visto, mas, dentro das casas, as roupas arrumadas à noite “amanheciam” numa cena de desarrumação. Famílias de Casa Forte, Poço da Panela e Casa Amarela acumulam histórias.

MAURICÉIA: A MENINA QUE VIRAVA CABRA

Local: Mata Sul, Cabo de Santo
Agostinho e Jaboatão Inspirada em Portugal. Trata-se de uma mulher que, por bater na mãe, teria sido amaldiçoada pela mesma. Virava cabra durante e noite e só parava de andar pela manhã.

O NEGRO VELHO QUE ANDAVA EM FOGO VIVO

Local: Fogueiras de São João
Um homem capaz de andar sobre as brasas vivas da fogueira nas noites de São João. Relatos de Gilberto Freyre dão conta da presença do Negro Velho, que teria sido visto pelos próprios olhos do escritor.

A MULHER EMPAREDADA

Local: Rua Nova, bairro de Santo Antônio
Trata-se do fantasma de uma filha que engravidou do namorado e, como punição, foi emparedada por seu pai. A origem da história é de um livro escrito por Carneiro Vilela e difundido na imprensa no início do século 20.

CUMADE FULOZINHA

Local: Matas do estado
Trata-se de uma protetora das matas. Em versão índia ou cabocla, ela também poderia ajudar caçadores a encontrar presas em troca de oferendas, caso contrário, os desorientaria no meio da mata.

PALHAÇO DO COQUEIRO

Local: Praia do Janga
Como o nome indica, fica em cima de coqueiros na praia, durante a noite, frustrado por não ter tido talento em vida para fazer as plateias rirem. Fica à espera do sorriso da Lua minguante para aliviar sua frustração.

MENINA DO ALGODÃO

Local: Banheiros de escolas e hospitais
Anda com algodões em seus ouvidos e boca, gerando sustos e desmaios por onde passa. Vários colégios e hospitais do estado acumulam relatos da aparição. Tem a Loura do Banheiro como releitura da lenda.

A LOIRA DE SANTO AMARO

Local: Cemitério de Santo Amaro
Aparição recorrente no portão do Cemitério de Santo Amaro, no Recife. Se você pretende andar na rua do cemitério de madrugada, é melhor desistir ou arcar com as consequências.

O VELHO SUASSUNA PEDINDO MISSA

Local: Casa Forte, Recife
O fantasma do Visconde de Suassuna,um velho alto “tão branco a ponto de parecer todo ele um lençol que andasse sozinho”, diz Gilberto Freyre. Vagava pedindo orações por arrependimento dos maus-tratos aos quais submetia seus escravos.

Lendas longe de serem inocentes

Wikipedia/Reprodução

As lendas surgem com um objetivo a ser alcançado. “O bicho-papão, em sua origem, funcionava para controlar e cercear as crianças dentro de casa. Hoje em dia perdeu um pouco a função”, brinca o pesquisador da Fundaj César Mendonça, referindo-se à inserção das crianças na tecnologia e redes sociais. Com o mesmo intuito, Mendonça cita a lenda da Loira do Banheiro, protagonista de histórias e medos em diversos colégios. “Para evitar que os alunos fossem ao banheiro sem necessidade, os professores criaram essa história, que acaba mexendo no imaginário dos jovens”, aponta.

O mesmo princípio de controle aplica-se à lenda da mula-sem-cabeça, mas nesse caso, focado na religião. “As moças que tivessem relação sexual com padres virariam mulas sem cabeça. A lenda foi criada numa época em que a Igreja começou a cobrar com mais força o celibato no Brasil”, explica o historiador da UFPE Severino Vicente. A dita transformação ocorreria na noite de quinta para sexta-feira. Já houve o uso das lendas também para fins bem práticos. Um exemplo era o consumo de manga e banana durante prática de exercícios. “Isso foi difundido nos engenhos para que os trabalhadores não comessem enquanto trabalhavam e rendessem menos”, completa o professor.

A história passada que pode ser esquecida

A difusão das lendas acaba modificando-se com o tempo e novas histórias surgem, por vezes, sobrepostas pelas mudanças. “As histórias eram passadas em conversas de famílias, entre grupos de amigos. Atualmente, não há mais esse hábito e as memórias compartilhadas são mais recentes. Muitas histórias ficarão restritas à cultura livresca”, prevê o doutor em história da UFPE Severino Vicente.

Entre as correntes que podem ser perdidas na história estariam as lendas indígenas. “Pouco se fala do Boitatá e da Comadre Fulozinha, por exemplo”, pontua. “Mas se você parar para pensar: o homem destruiu as matas e animais, qual o sentido da Comadre Fulozinha, se ela não tem mais mata para proteger?”, lamenta o professor.

Com o intuito de tentar reavivar essas lendas no imaginário infanto-juvenil, o poeta Walter Ramos e o artista plástico Daaniel Araújo criaram a obra independente O Livro ilustrado das assombrações de Pernambuco, em que lendas pernambucanas são retratadas com características e “locais de atuação”.

“É necessário ressignificar para manter a história viva para as próximas gerações”, afirma Walter Ramos. “Sempre me interessei muito por histórias de mistério. Pensei que teríamos que “importar” histórias, mas, na pesquisa, conseguimos fazer o material com lendas pernambucanas voltado principalmente às crianças”, completa Daniel Araújo.

Mesmo sem a difusão de outros tempos, as lendas persistem em algumas localidades, opina o pesquisador César Mendonça. “Uma amiga minha era professora na Mata Norte e os alunos diziam acreditar na Comadre Fulozinha, alguns juravam de pés juntos já terem visto”. Enquanto houver imaginação, as lendas ainda terão vida.

[ Curiosidade

O livro Assombrações do Recife Velho de Gilberto Freyre é uma das principais fontes para obras sobre lendas da capital pernambucana, sendo considerada a referência do assunto no estado.

gilberto

João Vitor Pascoal

João Vitor Pascoal

Repórter

João é estudante de jornalismo na Universidade Federal de Pernambuco.

Samuca Andrade

Samuca Andrade

Ilustrador

Samuca é ilustrador e cartunista do Diario de Pernambuco