Após perdão do Papa, Juazeiro do Norte tem 20% mais romeiros
Após um século de retaliação da Igreja Católica, homenagem a Padre Cícero leva 2,5 milhões de fiéis ao Cariri, a maioria de Pernambuco e Alagoas
Por Vinícius de Brito
Em tempo de romaria, 2,5 milhões de peregrinos transformam Juazeiro do Norte, no Ceará, em um microcosmo do sagrado e profano. Com maioria de fiéis de Pernambuco e Alagoas, eles tomam as ruas daquele rincão do Cariri, dividindo as calçadas com pedintes e ambulantes munidos de imagens de santinhos em tabuleiros. Na virada do século 19, uma hóstia teria ensanguentado a boca da beata Maria de Araújo, em 1899. Não previa o padre Cícero Romão Batista, que celebrara a missa, o fenômeno adorado por milhares e rechaçado pela Igreja, que mudaria o futuro da cidade.
Encabeçado pelo capelão, o “milagre da hóstia” não foi reconhecido pela Santa Sé. O perdão sacro só veio em dezembro de 2015, pelo atual Papa Francisco, após 100 anos de punição ao “padim”. Ano da Reconciliação, “as romarias de 2016 já registram 20% de aumento em relação ao ano passado”, conta a secretária de Romaria da Prefeitura de Juazeiro, Marli Bezerra.
Sentada à sombra da estátua de um Padre Cícero com 27 metros de altura, no alto da Colina do Horto, Maria da Silva Gomes, 67, sai de Delmiro Gouveia (AL) em peregrinação até a cidade há 40 anos. “Eu adoro ‘padim’ Ciço e Mãe das Dores”. Padroeira local, Nossa Senhora das Dores é a santa por quem os católicos peregrinam no mês de setembro – em 2015, 350 mil migraram no período para o Cariri.
“Todo desdobramento da história do Padre Cícero, do Juazeiro e da devoção que se toma em torno desse milagre, inclusive de adversidades com certa perseguição do poder eclesiástico local, ganham contornos extraordinários”, afirma Antônio Braga, sociólogo especialista na vida do pároco. A chave da questão é que o Padre Cícero não liderou apenas uma igreja e um rebanho, mas também foi responsável pela prosperidade econômica e política de Juazeiro do Norte, da qual chegou a ser prefeito. Juazeiro deixou de ser um lugarejo submisso ao Crato (CE) – sendo emancipado pelo religioso há 105 anos – para receber uma turba de romeiros o ano inteiro.
O homem por trás da batina tinha aproximação a políticos, como o amigo e deputado federal Floro Bartolomeu (1876-1926), que lhe trouxe um faqueiro de prata e porcelana da Europa (a coleção é exposta no Memorial Padre Cícero, em Juazeiro). Esse cerco ao poder é visto por críticos como nefasto para a vida santa do padre. Já o sociólogo Antônio Braga relaciona o poderio à conjuntura social. “Você não consegue entender o que é o Padre Cícero sem entender o contexto histórico em que ele estava inserido e parte desse contexto está ligada ao coronelismo”. Mas o crédito do Padre Cícero surgiria, justamente, do papel carismático dele como liderança religiosa.
“Discordo daqueles que atribuem ao Padre Cícero um papel de coronel clássico, porque isso o coloca no enquadramento de vários outros coronéis que existiam no Nordeste da primeira metade do século 20. A força dele não vinha das relações de dominação clássicas que fundam o poder”.
Antônio Braga
Sociólogo
O viés religioso motiva os romeiros a rezar pelo padre e a clamar por ele nos momentos de alegria e, sobretudo, de dor. “Estou aqui pagando uma promessa de uma doença que tive há três anos. Foi um começo de AVC, hérnia de disco e bico de papagaio”, fala o músico Mestre Expedito, 67, feliz por ter chegado a pé à famosa estátua de Padre Cícero (após uma caminhada de cerca de duas horas) na Romaria de Finados, em novembro de 2015. Por causa da enfermidade, ele só andava com apoio de uma muleta.
Tampouco é atrás da figura política do líder popular que a neta do cangaceiro Antônio Ferreira Lima paga uma promessa rogada pela avó há cerca de um século. Maria José de Souza, 58, talvez não estivesse viva não fosse a piedade de Lampião e a fé no “padim”. “Para escapar de Lampião, foi preciso minha avó fazer uma penitência: vir para o Juazeiro a pé, vestir a batina de Padre Cícero”. Lampião era primo do avô dela, que largou o cangaço para viver com a família em um sítio de Serra Talhada, no Sertão do Pajeú pernambucano. Para descontar a “traição”, Lampião jurou morte ao filho do casal, mas acabou poupando o nascituro. A devoção de Maria José, hoje moradora de São José dos Campos (SP), ressoa no coro de outros 2,5 milhões de fiéis anuais, segundo cálculo da Prefeitura de Juazeiro.
De acordo com o sociólogo Antônio Braga, a condição do milagre da hóstia, que motivou as primeiras romarias a Juazeiro, foi sendo secundarizado ao ponto de desaparecer, uma vez que os romeiros buscam a figura de proteção e auxílio do vigário. “As romarias mostram que a relação dos romeiros com o padre vai além da figura concreta do sacerdote”.
Além do milagre e da condição religiosa, o cenário geográfico também foi crucial para transformar a pequena vila incrustada no interior do Ceará em um dos centros de peregrinação mais conhecidos da América Latina. “As secas de 1877, 1888, 1898, 1900 e 1915 foram fundamentais para a produção do espaço regional, influenciando decisivamente as migrações para o Cariri e Juazeiro do Norte”, afirma o geógrafo Cláudio Smalley. “O Cariri era uma região de intensa atividade agrícola, com solos férteis e clima que ofereciam condições para o desenvolvimento de uma agricultura forte”.
Lado a lado, o sagrado e o profano
No relógio já passam das 20h. Estou em uma das últimas celebrações da Romaria de Finados de 2015. De longe, vejo o mar de chapéus dos romeiros no pátio da Basílica de Nossa Senhora das Dores. Em uma área de entretenimento ao lado da basílica, Frank Costa, 32, monta o teclado eletrônico, telão, mesa e equipamento de som para o show e bingo que começa em minutos.
Frank aprendeu a fazer música na infância e transformou a diversão familiar em ganha-pão. Quando tem romaria, aumenta o número de festas, de público e de venda de discos – são cinco CDs lançados. “Eu sou católico, mas não devoto de Padre Cícero. Quando posso, faço uma visita ao Horto. Vendo muito CD para os romeiros. Uma coisa une a outra. Eles vêm para fazer suas obrigações e à noite se divertem um pouco”. Forró e arrocha são os ritmos que Frank mais executa, a pedido do público.
Religião e lazer foram sendo misturados com o passar do tempo no município. O milagre regido por Padre Cícero direcionou o povo massacrado por sucessivas secas no Nordeste ao Eldorado de Juazeiro do Norte. A terra servia para a plantação e, aos poucos, a frota de peregrinos alimentava o comércio – não só de artigos religiosos. “[O sagrado e o profano] são mesmo um par dialético, poderíamos dizer. Não há, pelo menos no caso de Juazeiro, um sagrado que não seja penetrado pelo profano. Há uma atividade comercial que existe e que depende da dinâmica das romarias, e isto não é de hoje”, afirma o geógrafo e pesquisador do tema Cláudio Smalley.
Na mesma face da moeda está Francisca Vitalina, 66, negociando as lembrancinhas do “padrinho” há 30. “Eu vendo isso aqui tudo, ó: é rosário, é terço, é escapulário, é fita, é caneca. O que vier, eu vendo. No dia que não der certo, nós vamos para a roça”, mostra o tabuleiro, montado no Horto, cheio de artigos. “A mudança nesses 30 anos é que a venda está muito pouca. Eu atribuo a mudança à dificuldade de ganhar dinheiro. Os romeiros vêm e o pouco dinheiro que eles trazem não podem gastar”.
Francisca vê o número de romeiros cair de ano em ano e a única certeza que tem no fim do mês é a dívida de R$ 20, que paga à associação de comerciantes do santuário. O CDL local tem dificuldade em calcular o ganho direto com os fiéis porque há muito comércio informal.
O dualismo entre sagrado e profano nem sempre é discreto ou se dá por festas e shows na Praça Padre Cícero. Entre 2011 e 2012, o gigante varejista norte-americano Walmart celebrou missas em frente a estátua do Padre Cícero ao inaugurar supermercados na região. “Isso poderia ser considerado como uma profanação da imagem, das crenças e dos valores ligados ao lugar e em proveito do aumento dos lucros dessas empresas”.
A relação entre romeiro, santo, sagrado e profano é densa e as pesquisas só mostram como a raiz da cultura é complexa. Ao deixar Juazeiro, após o Dia de Finados, encontro caravanas de romeiros de Alagoas, Sergipe e Pernambuco ao longo da estrada. Talvez seja o sinal de que o fluxo dessa gente de fé não minguará tão cedo e, como já aconselhava Gonzagão nos idos de 1980, só resta levantar as mãos para o céu e acompanhar o verso: “viva, meu padim”.
Vinícius de Brito
Colaborador - Textos e fotografias
Quando visito, na última Romaria de Finados, a Colina do Horto – onde brota a estátua do pároco popular sobre rochas formadas entre 150 e 90 milhões de anos atrás –, uma música é tocada por um sanfoneiro no templo, lotado de romeiros. Recordo-me de ter gravado a letra: “Olha lá no alto do Horto/ Ele está vivo, o padre não está morto”. É apenas um verso de Viva meu padim, composição de Luiz Gonzaga e João Silva, datada de 1986, sobre a imortalidade do sacerdote.