Agroflorestas: um romance que cultiva mais que amor à terra

por

Sistema de produção que mistura vegetação nativa a plantações aumenta produtividade de sítios pernambucanos e envolve histórias de afeto que revolucionam o agronegócio local

 

Quando Lenir Ferreira Gomes Pereira e Jones Severino Pereira se casaram, em 1981, trocaram votos entre si e passaram a compartilhar as duas vidas também com a terra. Dos frutos que geraram juntos, nasceram dois filhos e uma plantação, com macaxeira, inhame, batata, feijão e milho. Assim como num relacionamento, porém, tratamentos tóxicos acabaram por gerar frustração. Após primaveras trabalhadas em agrotóxicos, queimadas e enxadas, a terra dava cada vez menos retorno, a ponto de Lenir ter que trabalhar fora para suprir as necessidades de casa. Como casal que reencontra o caminho dos braços, a terra voltou a dar frutos. Não apenas os cultivos originais, que ganharam novos vizinhos. No mesmo punhado de terra, cajá, sapoti, cupuaçu, manga, caju, banana, mamão e limão passaram a fazer parte da família: 13 toneladas deles por ano. Descobriram ali, 13 anos depois do casamento, o sistema agroflorestal de plantação e redescobriram a tal história de amor que compartilhavam.

O modelo implantado no Sítio São João, em Abreu e Lima, Região Metropolitana do Recife, foi pioneiro em Pernambuco. Ele consiste em abrir mão do cultivo único de um vegetal (e dos cuidados específicos dispensados numa produção desse tipo) para que haja uma variedade de plantios, promovidos pelo homem, e vegetação nativa. A propriedade hoje apresenta uma diversidade de mais de 100 espécies que rendem hortaliças, frutos e grãos, graças ao sistema, que visa alcançar um modelo de produção que traga sustento para o agricultor e recupere e preserve a natureza. Dessa forma, a variedade na colheita dá um salto qualitativo e quantitativo.

 

A façanha no mundo da agroecologia envolveu visitas à Bahia para aprender sobre a interação da mata nativa com a produção pretendida e até uma consultoria do agricultor e pesquisador suíço Ernst Gotsch, que apontou os resultados e as próximas ações do casal. “Ele disse que o solo tava bom. Era só plantar mais capim e crotalária para continuar o trabalho”, lembra Lenir. Porém, o estímulo recebido não era comum vindo de outros agricultores. “As pessoas muitas vezes chamavam a gente de louco, diziam que era um serviço de preguiçoso porque só tem mato”, completa, sobre os comentários feitos durante o processo de recuperação do solo, que precisava do cultivo de plantas forrageiras, como o capim.

A percepção de que o amor e o tratamento adequado à terra recuperaria a possibilidade de voltar a viver da agricultura não os deixou desestimularem da iniciativa. Deu certo. A família voltou a produzir, agora o ano todo. Os dois filhos do casal, Juvenal (35) e Verônica (34), puderam ter uma educação superior (ele, em biologia e ela, em geografia). “É um trabalho que não dá apenas retorno financeiro. Ele dá um retorno de autoestima, de bem-estar com a vida, com nós mesmos e com todos ao nosso redor”, aponta, orgulhosa, Lenir.

Em 24 de maio de 2017, Seu Jones faleceu, mas viu os frutos das lições que plantou. A exemplo da Associação Agroecológica Terra e Vida, criada por ele e Lenir. Fundada em 2009, ela é formada por 22 famílias agricultoras que realizam troca de conhecimentos, mutirões e reuniões. Além da associação, Jones e Lenir também estiveram desde o lançamento do Espaço Agroecológico das Graças, a primeira feira orgânica do Recife, fundada em 1997, e agora o pioneiro também nomeia um curso para quem deseja ingressar na área da agroecologia, o Curso de agrofloresta Jones Severino Pereira, promovido pelo Centro Sabiá na Zona da Mata, Agreste e Sertão de Pernambuco. A iniciativa promove capacitação teórica e técnica sobre o assunto e tem vagas abertas previstas ainda para o segundo semestre de 2017. O legado do corajoso Jones germina de uma maneira diversificada e renovadora, assim como a plantação que semeou há 23 anos.

Acervo Centro Sabiá/Cortesia

A diversidade e os afetos promovidos pelas agroflorestas

Um dos primeiros passos para a implantação de um sistema agroflorestal é conciliar conhecimentos de duas fontes distintas. “É preciso dos protosaberes das famílias camponesas, que desenvolvem diversas práticas no meio rural, junto com os saberes da academia e dos pesquisadores”, explica o professor Marcos Antônio Bezerra, da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), membro do Núcleo de Agroecologia e Campesinato do centro de ensino. Segundo ele, é preciso que se faça um diagnóstico da área para saber as condições ambientais de cada localidade, além de um planejamento das práticas e dos manejos produtivos. O trabalho coletivo e a organização de mutirões também é essencial para implantar esse sistema, buscando recuperar áreas degradadas e incrementar a biodiversidade.

O trabalho coletivo é facilitado por meio da formação das associações. A Rede Espaço Agroecológico, assessorada pelo Centro Sabiá, conta com sete dessas organizações e reúne cerca de 240 famílias agricultoras. A produção é, em grande parte, comercializada diretamente nas cinco feiras orgânicas que fazem parte da rede. A mais velha do estado fica em Gravatá, já a do Recife fica no bairro das Graças. As outras ficam nos bairros de Santo Amaro, Setúbal e Boa Viagem. Nelas, os produtores vendem tanto o cultivo in natura, como eles já beneficiados (sanduíches, pastéis, doces etc).

O agricultor João Ribeiro, do Sítio Feijão, em Bom Jardim, no Agreste, participa da Agroflor, uma das associações pertencentes a rede. O modelo agroflorestal foi adotado em sua produção no ano de 2003. Antes disso, a família tirava o sustento da farinha que fazia a partir de sua plantação de macaxeira. Hoje, essa dependência acabou. O Sítio Feijão agora conta com o cultivo de milho, feijão, fava, acerola, jaca, laranja, graviola, coentro e a lista de culturas comercializadas passa de trinta. Segundo Davi Fantuzzi, do Centro Sabiá, a Agroflor chega a produzir 19 toneladas por mês.

E essa produção leva alívio para os bolsos e diversidade paras as mesas. Segundo Marcones Braz, pesquisador de geografia econômica da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), há um barateamento nos produtos vendidos nas feiras pelos produtores. Isso acontece porque não há intermediários entre o agricultor e o consumidor, já que eles produzem e vendem direto nas feiras. Assim, grande parte dos produtos orgânicos apresentam um custo menor quando comparados aos comercializados em supermercados e feiras convencionais.

A diversidade foi demonstrada numa pesquisa de 2015 feita pelo Centro Sabiá nas feiras das Graças e de Boa Viagem. O estudo apontou que há uma diversidade média de 29 produtos diferentes por barraca, totalizando 144 produtos diversos disponibilizados para os consumidores. Além dos números, os comerciantes/produtores também destacam a boa relação com os clientes. “Uma coisa que dá muita felicidade é a amizade que se cria entre cliente e produtor. Eu me sinto muito feliz porque a gente tá levando saúde para esse pessoal. O dinheiro é importante, mas o carinho e a confiança desse povo é muito mais”, conclui dona Lenir.

Rostand Tiago

Rostand Tiago

Repórter

Rostand é estudante de jornalismo pela UFPE. Escreve para o Diario desde janeiro de 2017, no projeto de dados do jornal, o CuriosaMente. Descobriu as agroflorestas por acaso, mas, até hoje, não consegue criar nem feijão em pedaço de algodão…

Rafael Martins

Rafael Martins

Fotógrafo

Rafael é fotógrafo do Diario de Pernambuco desde 2015. Baiano mais pernambucano em linha reta que o jornal já teve, é adepto até de florestas de apartamento, não perdendo oportunidade de levar muda de uma nova espécie para criar em casa.

Diario de Pernambuco. Reportagem publicada integralmente em 04/09/2017