Adultos aos olhos da lei: os anseios dos adolescentes não adotados aos 17
Centenas de adolescentes de 17 anos contam hoje os dias restantes para sair do Cadastro Nacional de Adoção, divididos entre a expectativa de conquistar uma família e o anseio pela vivência de um mundo ainda incerto
Sofia tem 17 anos e observa diariamente o calendário levar aos últimos meses que restam para ser adotada. Quando nasceu, era pequena o suficiente para caber em uma caixa de sapatos. Dentro de uma, foi abandonada pela mãe diante da Igreja de Santo Antônio, em uma das praças mais movimentadas do Recife. A sorte da vida, como conta até hoje, foram outras moradoras de rua, apressadas em avisar à sua avó sobre o nascimento. A senhora veio ao resgate e a tomou como filha. Mas, 12 anos depois, faleceu. Sem mais ninguém para cuidar dela, a menina, com saúde fragilizada graças a um nascimento prematuro, não conseguia comer e, por meses, morou em um hospital público. Ao adentrar a faixa etária menos desejada para membros do cadastro de adoção, a partir dos 12 anos, foi levada para uma casa de acolhimento no Cordeiro, na Zona Oeste do Recife. Há cinco anos, aguarda uma família, assim como outros cerca de 20 pernambucanos nascidos no mesmo ano que ela.
Há quem diga que o desejo de um adolescente beirando a maioridade é conquistar completa independência. Casos como esses existem em casas de acolhimento de Pernambuco, mas, segundo a visão de quem trabalha diretamente com o assunto, são raros. “Mesmo após os 18 anos, o sonho do adolescente realmente é ter uma família, pais, afinal, ele é como todo adolescente”, explica o juiz da 2ª Vara de Infância e Juventude, Élio Braz Mendes. Assim é Sofia. Ela não esquece dos laços de sangue. Sonha em poder eternizar o nome da avó falecida e do irmão mais velho (único parente vivo, hoje, morador de rua) no corpo, mas não desiste de encontrar alguém para fazê-la filha. “Se eu pudesse escolher, eu queria ser adotada”, garante. De sorriso fácil e baixa estatura, a menina compartilha o quarto com outras de idades variadas. Beira a vida adulta, pelo menos aos olhos da Justiça, mas ainda brinca e ri como uma criança. Queria ser chef de cozinha para fazer um cuscuz tão gostoso quanto o da avó, mas hoje tem certeza que será policial. Garante não se inspirar em ninguém para isso. Só tem vontade.
Crianças mais novas sempre foram preferidas pela maioria dos aplicantes à adoção no Brasil. Hoje, metade dos candidatos manifestam interesse em formar famílias com bebês de até três anos. A realidade moldou por anos as instituições de acolhida para mais velhos: nelas, a orientação geral era considerar a adoção como possibilidade remota. “Costumávamos trabalhar mais a questão deles poderem retornar à família biológica, fazíamos um planejamento de cinco até oito anos para a criança se voltar a essa possibilidade. Se isso não acontecesse, trabalhávamos o jovem para ele se tornar independente”, explica Roseneide de Oliveira, coordenadora da casa Pequeno Nazareno. A instituição cearense com filial considerada referência em Pernambuco acolhe meninos entre 12 e 15 anos na ilha de Itamaracá, desde 2002.
Mário, nascido no mesmo mês e ano de Sofia, é o menor de idade mais velho da casa de acolhimento. Também conta seis meses até a maioridade. Ele não está no cadastro nacional porque ainda tem o pai vivo, mas sem condições de cuidar dele. Assim como Sofia, ele tem uma rotina de disciplina para arrumar o quarto, estudo e lazer com colegas de idades variadas. Já manifestou vontade de ser adotado por uma família, hoje, garante estar focado em estudar para adquirir a liberdade provida por uma profissão.Vai ser cabeleireiro. “Vi um rapaz fazendo em Itamaracá e gostei”, lembra.
adolescentes de 17 anos aguardam por famílias no CNA (7,11%)
mil pessoas aguardam por um filho na lista nacional de adoção
pretendentes aceitam crianças com até 17 anos no Brasil (0,1%)
mil crianças aguardam por famílias no mesmo cadastro
Natural da Zona da Mata de Pernambuco, ele faz um curso semanal na capital para ter formação de auxiliar administrativo. Tudo é fornecido pela instituição, que já formou mais de 80 adolescentes para o mercado de trabalho.
Após a criação do projeto Adote um Pequeno Torcedor, parceria do Sport Club do Recife com o Ministério Público, os adolescentes tiveram oportunidade de gravar depoimentos detalhando os desejos de ter uma família. Desde então, dois meninos da instituição já foram adotados. O terceiro passa pelos últimos trâmites legais para ganhar uma família. “Agora a gente começou a falar mais sobre adoção. Ter uma família adotiva já é uma expectativa no Pequeno Nazareno”, confirma Rose. A campanha logo refletiu nacionalmente e o número de adoções tardias. Em Pernambuco, o ano de 2015 marcou um aumento de 100% de casos do tipo no cadastro nacional. “O estado bateu recorde em 2016. Hoje já podemos considerar que esse preconceito de só querer bebês é coisa do passado”, afirma o juiz Élio.
mil pretendentes pernambucanos aguardam por um filho no Cadastro Nacional de Adoção
pretendentes aceitam adotar adolescentes de 17 anos em Pernambuco
é o número de adolescentes de 17 anos no cadastro de adoção em PE
Quando os 18
chegam
Legalmente, quando um adolescente faz 18 anos se torna, aos olhos da Justiça, um adulto, não necessitando mais de nenhum responsável por ele. Isso não significa, porém, a expulsão automática do local no qual foi abrigado. As instituições (pelo menos em sua maioria) ainda se empenham em garantir seu futuro. Em algumas, o apego entre funcionárias e crianças é tão grande que é levado para a vida. A estudante Sarah Vilas, hoje com 19 anos, completou 18 no Lar Batista Elizabeth Mein (Larbem), casa de acolhimento no bairro do Cordeiro. Além da idade avançada em relação às outras crianças, ela entrava em outro grupo de exclusão: fora deixada ali junto à irmã mais velha, hoje com 21 anos. Seguindo os passos da irmã, a então menina logo foi acolhida por Maria Jorge, coordenadora do local. Na casa de dois quartos esvaziados por duas filhas de famílias já constituídas, a mulher que dedicou uma década inteira a trabalhar com crianças órfãs viu a oportunidade de abrigar duas meninas sem pais aos olhos da lei.
Hoje, mesmo recebendo o apelido de “tia”, Maria elenca cada feito das meninas como se tivessem saído de dentro dela. “As duas estão estagiando, uma está fazendo administração e a outra quer ser enfermeira, mas tem um dom de fazer cabelo e maquiagem que só vendo”, conta. O desafio não foi discipliná-las ou fazê-las se acostumar com uma nova casa. Obstáculo mesmo para quem viveu toda a infância seguindo do abrigo para a escola e da escola para o abrigo é se adaptar ao “mundo real”. “Precisaram de muita ajuda para se acostumar, mas hoje já conseguem desenrolar direitinho”, conta a tia-mãe entre alguns dos causos mais engraçados da fase de adaptação. Na visão de Sarah, a oportunidade de acolhimento, mesmo tardia, foi um belo empurrão para a realidade que um dia a abandonou. “Ela me deu uma nova forma de ver o mundo. Aprendi a andar sozinha, pegar ônibus, ir para os cantos. Ela me ensinou que o medo existe e a gente tem que vencer ele”.
Lorena Barros
Repórter
Lorena é jornalista formada pela Universidade Federal de Pernambuco. Integra a equipe do CuriosaMente desde maio de 2016.
Marlon Diego
Fotógrafo
Marlon é estuda jornalismo na Universidade Federal de Pernambuco e é estagiário de fotografia do Diario desde 2016.