Um amor bicentenário – a história do casal de mais de 100 anos, junto há 8 décadas
Ele tem 101 anos. Ela, 100, recém-completados. Casados há 80 anos, os dois moradores da zona rural de Iguaracy, no Sertão do Pajeú, têm mais tempo de relacionamento que muitos, de vida
Do ano em que houve o primeiro voo em avião comercial da história e o mundo enfrentava sua primeira grande guerra, José Miguel Lucio só lembra de ter nascido. Era 1914 e uma das últimas testemunhas ainda vivas do tempo em que Venceslau Braz sucedia ao Marechal Hermes da Fonseca na presidência do Brasil começava a desmamar, numa pequena casa do Centro de Belo Jardim, no Agreste pernambucano. José Miguel Lucio faz parte de um grupo raro: aos 101 anos, integra uma demografia que se resume a 0,07% da população. Na casa de alvenaria, coberta por madeira, no meio do barro da caatinga que castiga a zona rural de Iguaracy, a 365km do Recife, ainda reside outra improbabilidade: Rita Josefa de Jesus, que acaba de completar seu centenário.
Por poucos meses, o casal, junto há 80 anos, não foi contemporâneo do naufrágio do Titanic, ainda que o ambiente de mar nunca lhe tenha sido familiar. No meio tempo, foram oito filhos, 38 netos, 56 bisnetos e um tataraneto.
Os dois se conheceram na Paraíba, depois de Seu Lúcio fugir de casa, ainda com 12 anos. Bateu na porta da mãe de Rita, então criança, para pedir abrigo, depois de quase se afogar num rio durante uma enxurrada. O menino se fez homem na enxada. E, nos anos seguintes, trabalharia de carpinteiro a professor. Ela, filha de um agricultor dono de sítio, ia, sem sucesso, se dedicando a possíveis paixões e ao terço, de quem não desgruda desde os primeiros anos de vida. “Era pra ser. Ninguém que aparecia agradava minha família. Mas, desde sempre, todo mundo gostava dele, mesmo quando eu nem pensava nada”, diz.
Apenas anos de convivência depois foi que a possibilidade se desenhou. Foi numa novena do município do Congo, na Paraíba, que “se engraçaram”. Do namoro ao casamento, um ano. Ele, que lembra de ter sido professor de português e matemática, não conseguiu ensiná-la a ler. Ela, que ensinava o terço, até hoje se ajoelha sozinha em sua devoção a São Sebastião.
Desde 1966, se mudaram para Iguaracy, na mesma casa onde estão desde então. Ao atingirem cem anos e quase cem descendentes, são a definição do que seria complementaridade. Lúcio, de pernas frágeis, passa a maior parte dos dias na cama ou em cadeiras reclinadas, contando longas histórias sobre a própria vida e, do quarto, ouve cada cômodo da residência. Rita teve os olhos visitados pela neblina do tempo e só ouve o que é importante o bastante para lhe ser quase gritado e, no entanto, se desloca a passos pequenos pela casa até a pequena sala, onde ajoelha diante das imagens de seus protetores.
Questionados sobre o tempo que desejariam viver, dizem apenas seguir vivendo. Sem planos, sem expectativas, sem preocupações. Com a simplicidade de quem viveu mais que a maioria, sem, no entanto, se importar com ela.
Saúde à base de café, fumo e reza
Os olhos já não identificam muito além de vultos e algumas pequenas luzes. Os ouvidos captam apenas o que os demais fazem questão que seja ouvido, vários decibéis acima. Mas as mãos já sabem o caminho dos bolsos em cada vestido. Nele, papéis de seda. A passos lentos, segue à cozinha. Cospe no chão e começa a produção do próprio cigarro. São oito por dia, desde os 15 anos. É por ele que interrompe um ou outro terço rezado religiosamente ao fim de tarde e após cada refeição. Sim, Rita é uma mulher incomum.
Ri alto. Bate palmas ao falar da família, seu bem mais precioso e motivo de cada oração. Lembra não ter faltado opção quando jovem, mas que nenhum relacionamento “dava liga”. Também não deixa passar as indiscrições do passado namorador do marido com quem mantém bodas de carvalho. Tudo entre risos. “Ele era muito trabalhador, obediente. Todo mundo gostava dele. Eu também. Eu tive amor por ele e ele por mim”, resume sua história, sem mais detalhes do que sua discrição permite.
Interrompe a conversa, vez por outra, para perguntar se o marido comeu, se os dois filhos octogenários que tomam conta do casal ainda estão presentes na residência, assim como o amigo da família que revelou a história de amor dos dois, Amaury Torres. Sem anúncio prévio, se recolhe para dormir ou para fumar no banheiro da parte de trás da casa. Ao fim de tarde, se põe à janela e penteia os longos cabelos brancos.
Ao ouvir mal, se não entende uma pergunta rebate com um “é isso mesmo” ou um “isso”, como quem se acostumou a não discordar por opção. “Se não faltar café, fumo e um espaço pra ela rezar, ela fica feliz. Já deixou meu pai irritado por sair pedindo cigarro a qualquer um que encontrasse se faltasse. Era só assim que se desentendiam”, garante o filho, Manoel, 75.
O segredo de um casamento duradouro, diz desconhecer. Conta, no entanto, algo que o marido enfatiza sobre ela própria: “Ele é muito atencioso. Sempre me deu muito carinho. Isso faz diferença”, garante.
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Dois pernambucanos centenários em um
Seu Lúcio não é apenas ele. Aos 101 anos há dois homens vivendo em um corpo. Um deles está impedido de se deslocar com facilidade pela própria casa e transborda educação a cada frase pontuada. O outro, tem 11 e corre pelas ruas de Belo Jardim. E é sobre esse que tanto se ouve.
“Meu pai era metido a professor e a cachaceiro. Me procurava pelas ruas até um dia não me encontrar”, conta sobre a infância difícil, marcada por agressões e muito ressentimento. Se emociona. Puxa de volta as lágrimas contidas e se reidrata. À cidade, só retornou 16 anos depois de deixá-la ao pegar carona sem sequer saber para onde.
“Passei cinco dias de lado pra outro. Me escondia e dormia embaixo da sombra de árvore da caatinga até outro pessoal passar”, vai contando por mais de duas horas, em detalhes, cada traço da criança triste que o faz passar a mão pelas marcas na cabeça sem cabelos, mais que exposta.
Desde 1966, vive em Iguaracy, mas o coração ainda está por lá, em Belo Jardim. Tanto que para início de conversa, os filhos apresentam estranhos sempre como “um moço de Belo Jardim que quer lhe conhecer”. E aí, são oferecidos espaços e bancos em seu próprio quarto. “Rita tá bem?”, pergunta do nada. Apenas para saber se está acompanhada, alimentada ou se dorme no quarto ao lado.
Não fala de paixões. Ri quando lembra do relacionamento iniciado bem jovem. Dizia ficar de olho nela de longe, porque trabalhava com outros “peões” e nunca se imaginou junto à mulher com quem casou-se há mais tempo que tanta gente vive. O motivo da relação durar é o mesmo elogio que a mulher lhe tece: “ela é muito atenciosa. Ela cuida de mim e eu dela”.
Ed Wanderley
Repórter multimídia
Ed é repórter do Diario desde 2010 e se especializou em jornalismo de dados e digital voltado para assuntos de Direitos Humanos. Conta nas mãos as vezes que foi ao Sertão, mas já coleciona histórias inesquecíveis na terra que ainda vai virar mar…
Rafael Martins
Fotógrafo
Fotógrafo baiano de 26 anos, Rafael se encontra no Sertão e viaja na história de cada personagem.