Sororidade made in Recife: juntas, mulheres asseguram espaço na arte

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Literatura, cinema, fotografia e grafite feitos por mulheres ajudam a legitimar o espaço feminino na Região Metropolitana do Recife

 

A luta pela igualdade de gênero é uma batalha diária. Espaços dedicados às mulheres ainda são escassos no Recife e Região Metropolitana. A solução encontrada por grupos femininos foi colocar a mão na massa. Tomar para si a responsabilidade de unir as mulheres em um espírito de sororidade para divulgar e fortalecer realizações femininas na literatura, no cinema, na grafitagem, fotografia, na arte como um todo.

Thalyta Tavares/Especial DP

Chegaram à conclusão que não havia espaço para as artes feitas por mulher em Pernambuco. No seu nicho, o Hip-Hop, o espaço era ainda mais restrito, poucas se reuniam para produzir.  “Elas não costumavam fortalecer a luta das outras e isso enfraquecia a arte. Precisávamos criar momentos de atividades coletivas, mutirões de graffiti, rodas de diálogo. Inspirada por uma das primeiras graffiteiras de Pernambuco, Dona Cor, decidi começar a reunir a mulherada em momentos para socializar e trocar experiências”, afirma Jouse, que já expandiu a ação do grupo, levando-o, entre outras atividades, para palestrar sobre direitos humanos em presídios femininos.

Um dos primeiros grupos a agir nesse sentido foi o Cores Femininas, criado em 2009, derivado da ONG Cores do Amanhã.  Lá, a arte de mulheres envolvidas com fotografia, grafite, música, dança e artesanato é difundida em eventos e rodas de conversa, que atuam para combater o preconceito e incentivar o trabalho, desafiando os obstáculos. O grupo é formado por 15 mulheres – frequentadoras assíduas – mas já chegou a reunir 150 em um evento, vindas de várias partes do país.  Foi idealizado por Jouse Barata, atual coordenadora, durante uma conversa em casa com quatro amigos.

Thalyta Tavares/Especial DP

Hoje, o grupo expande as atividades, inclusive com palestras em presídios femininos, iniciativa que mexe com a pedagoga e professora de dança Raquel Araújo, 43. Em um evento de cabelos e penteados no presídio feminino de Abreu e Lima, ela ouviu histórias comoventes de muitas detentas. Algumas reclamavam de não poder passar tempo suficiente com os filhos durante visitas, outras desabafavam sobre as condições nas quais eram mantidas. “Elas disseram que às vezes não tinham sabão para lavar roupa, água para tomar banho ou até mesmo uma água decente para beber. É uma realidade em que muitas delas já estão muito desesperançosas”, lembra. Mesmo com essa falta de esperança nas mulheres, Raquel espera que as ações do Cores Femininas as afete positivamente, seja por alguns momentos ou eternamente. “A gente espera que tenha dado um novo olhar para elas. A gente sabe que muitas delas são desacreditadas delas mesmas e a gente está lá para tentar que ela veja a vida de outra forma”, relembra.

Força no diálogo horizontal

Pelas redes sociais, outras iniciativas ganham corpo. É o caso do Leia Mulheres, presente em várias cidades do Brasil, entre elas o Recife. Os encontros físicos são mensais, sempre para discussão de um livro escrito por uma mulher. Em estrutura horizontal, sem palestra ou palco, sem que “ninguém saiba mais que ninguém”, todas as presentes participam da construção da conversa. “Se olharmos em nossas estantes ou na bibliografia que lemos ao longo da vida, vamos perceber que quase não há mulheres nessas prateleiras e nessas listas. É constrangedor que continuemos a negligenciar a literatura escrita por mulheres”, explica uma das organizadoras do grupo e pesquisadora de cinema Carol Almeida.

 Gabi Vitória/Divulgação

Há um grupo pequeno de participantes fixas, pois boa parte se interessa muito por um livro em particular ou uma autora e por isso vai a um ou dois encontros. Apesar do foco em autoras femininas, o público não é estritamente feminino. Qualquer pessoa é bem-vinda, basta ter interesse pela discussão do livro apresentado. Para Rebeka Gomes, frequentadora do grupo, a iniciativa fez uma diferença clara na sua estante. Antes, ela não tinha nenhum livro nacional e poucos de autoras mulheres.

Foi com esse incentivo que eu passei a perceber que eu só lia autores homens e sempre os mesmos. Gosto da experiência também pelo fato de ter com quem discutir as ideias dos livros, porque todo mundo que gosta de ler sabe como é complicado não ter com quem falar sobre a leitura”. O grupo explora prosa e poesia e autoras que falam de lugares e épocas distintos, priorizando na lista, inclusive, escritoras brasileiras, negras ou de países e vivências distantes da pernambucana.  

Protagonistas também por trás das câmeras

Tirar das sombras as mulheres que normalmente são diminuídas pela presença de cineastas do sexo masculino. Esse é o principal objetivo do grupo Mulheres do Audiovisual de Pernambuco, criado em 2016 e que já mobiliza 580 mulheres. O grupo aprende sobre o trabalho de cineastas, discute sobre o mercado e o espaço da mulher, além de difundir o trabalho realizado pelas profissionais no estado. “É importante prezar pela qualidade das profissionais mulheres do Estado. A área audiovisual ainda é muito dominada pelos homens brancos, o que desmotiva mulheres a irem atrás e invisibiliza as que conseguem trabalhar. Quantas diretoras talentosíssimas tiveram seus trabalhos não divulgados em meios de comunicação do estado? Quantas diretoras são consideradas importantes na história e se tornam referência do cinema pernambucano? E não é porque elas não existem, afinal, apesar de todas as barreiras que precisamos quebrar para chegar lá, a gente chega”, afirma Laíse Queiroz, uma das organizadoras do grupo.

O próximo passo, de acordo com ela, é capacitar mulheres que ainda não integram a área, mas têm interesse. Essa seria uma maneira de enfrentar algo que, de acordo com a antropóloga Marion Quadros, já é naturalizado na área do audiovisual. “Há uma ilusão de que o homem é mais maestro do que a mulher em certos assuntos, mas não existe uma lógica por trás disso, é como se o homem tivesse mais capacidade, pela presença mais natural. Já as mulheres precisam ter alguma característica a mais, coisa que o homem normalmente não precisa. Se o homem precisa saber uma língua, a mulher precisa saber duas”, exemplifica.

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Definição

“Sororidade é a união e aliança entre mulheres, baseado na empatia e companheirismo, em busca de alcançar objetivos em comum.”

Tiago Calanzas/Cortesia

Tábata de Morais é assistente de direção e entrou ativamente no grupo pouco depois que ele foi criado e, para ela, a discussão sobre o espaço para a voz da mulher no audiovisual é extremamente importante, além de se ver na obrigação de partilhar seus conhecimentos com outras mulheres da área. “É muito interessante, para mim, dialogar com minhas pares, com as mulheres com quem eu trabalho, que são uma inspiração para mim. Discutimos o mercado, que discursos queremos imprimir dentro do cinema, sobre que tipo de processo de mudança queremos estabelecer para nós mesmas e para o mundo. Tudo que a gente coloca a mão, a gente precisa tirar os discursos dos eixos que eles estão estabelecidos.”

Uma ideia em modificação

A própria ideia de sororidade teve que passar por um processo de mudanças para chegar ao significado que tem hoje, que é mais feminista e inclusivo. De acordo com a antropóloga Marion Quadros, sororidade costumava excluir mulheres que eram “diferentes” dos grupos. As mulheres não são iguais umas às outras e não é possível haver um tratamento igualitário só pelo fato de uma pessoa ser mulher, pois a própria sociedade exclui, como é o caso de mulheres negras ou trans. 

Para que todas sejam de fato contempladas dentro de uma sororidade, é preciso ter consciência de que são mais marginalizadas do que outras e que há uma necessidade de lutar contra isso para trazer todas as mulheres ao mesmo patamar e, em seguida, serem todas colocadas igualitárias aos homens.

Segundo Marion, a ideia atual de sororidade faz com que esse processo se torne mais prático, pois há essa consciência, e os grupos estão buscando, de fato, espaço para todas as mulheres, apoiando aquelas mais excluídas e dando espaço para que as vozes delas sejam tão ouvidas quanto às das outras. Porém, enquanto os grupos passam por esse processo internamente, é preciso externar as pautas e agir em busca de novas políticas. 

Thalyta Tavares/Especial DP

“É preciso trabalhar para igualdade de gênero em todas as áreas, principalmente na educação. Os grupos tomam consciência dos processos que levam a esse tipo de desigualdade durante esse processo de trabalho e isso deve levar a algum tipo de ação. Isso ajuda as próprias mulheres do grupo e pode levá-las a conseguirem mais atuação da desconstrução da desigualdade, além de promover positivamente as mulheres”, conclui.

Paula Paixão

Paula Paixão

Repórter

Paula é estagiária do Diario de Pernambuco desde janeiro de 2017

Thalyta Tavares

Thalyta Tavares

Fotógrafa