Jovita: a história perdida da mulher que quis ir à guerra

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Cearense fingiu-se de homem para tentar ir à Guerra do Paraguai e pernambucanos dizem que ela passou por Ouricuri, atrás de amor convocado

No arquivo fotográfico da Fundação Joaquim Nabuco, um rosto sobressalta da foto amarelada, esperando ser descoberto. De traje militar e botinas, Antônia Alves Feitosa, a Jovita, aos olhos mais desatentos, pode ser confundida com um homem. Esta era, aliás, a intenção da cearense que atravessou o país na tentativa de ser aceita num batalhão que seguisse para lutar na Guerra do Paraguai, entre 1864 e 1870. A jovem se fez lenda e, no Sertão do Araripe, sua odisseia virou até filme. Historiadores locais contam que ela tentou alistamento em Ouricuri, de onde partiria o 7º Batalhão de Voluntários da Pátria e onde viveria um namorado pernambucano. Não há certeza da vida de Jovita e mesmo sua morte é cheia de divergências.

O livro Ouricuri, História e Genealogia, do falecido pesquisador da história de Ouricuri Raul Aquino, diz que ela nasceu em Brejo Seco (CE), em 1848 e, após a mãe padecer do cólera, aos 12 anos, foi morar com um tio em Jaicós, divisa entre Piauí e Pernambuco, onde aprendeu a atirar. “Ela tinha um noivo, que vivia em Barra de São Pedro, distrito de Ouricuri, e havia se alistado. Decidiu ir à guerra com ele. Quando o disse, o rapaz respondeu: ‘Jovita você não pode ir para a guerra. Quando eu voltar, a gente se casa’”, conta a pesquisadora Maria Natal. Inconformada, acochou os seios e vestiu-se de homem. “O comandante Filipe Coelho não a levou. Decidiu, então, tentar em Teresina e fez a viagem a pé”, diz Riverdes Falcão, descendente do coronel.

Descrita por Gustavo Barroso em À margem da história do Ceará como moça de “18 anos de idade, feições de índio e falar desassombrado”, Jovita repetiu o plano de vestir-se de homem. “Foi identificada na feira de Teresina por outra mulher que notara as orelhas furadas e apalpara seus seios, apesar de sua oposição. Ela também avisara à polícia”, escreveu Raul Aquino.

Apesar de não aceita como praça, Jovita ganhou título de sargento, por trabalhar de enfermeira. A autora de Jovita Feitosa, Kelma Mattos, coloca que, de lá, tomou um navio para o Rio de Janeiro, de onde partiam as tropas. “Jovita foi usada como estímulo para os homens que não queriam se alistar. Se até uma mulher queria batalhar, por que eles não?”, afirma. Durante a viagem, entre agosto e setembro de 1865, sua figura foi amplamente explorada. “Ela fez várias paradas para ser apresentada à sociedade”, conta Kelma.

No Recife, a missão coube ao presidente da província, João Lustosa Paranaguá, em cerimônia de gala no Teatro de Santa Isabel, onde, da plateia, um poeta disse: “Peço palmas para a moça/ que ocupa um lugar ali/ Ela vale uma epopeia/erguei-vos, nobre plateia/ essa amazona aplaudi!”.

No Rio, Jovita não conseguiu se alistar. “Retornando a Jaicós, demorou-se algum tempo, até ser avisada da morte do noivo, quando resolveu voltar ao Rio, onde, no anonimato, terminou seus dias”, apontou Raul Aquino. Segundo reportagem do Cruzeiro de 27 de julho de 1950, a cearense morreu esquecida: “E a pobre Jovita terminou seus dias ninguém sabe como. Melancólico o fim da heroína, que sonhara vingar na guerra as mulheres do Mato Grosso violentadas e mortas pelos invasores”.

Controvérsias não faltam. Primeiro, pesquisadores acreditam que ela, no Rio, casou-se com o engenheiro holandês Guilherme Noot e morreu aos 19 anos. Uns dizem que, abandonada, suicidou-se. Outros, que morreu num incêndio. Há ainda a hipótese de ter, enfim, ido à guerra. “Há comentários de que ela poderia ter ido como vivendeira, junto a um soldado, Eusébio, que, sem saber atirar, logo morreu. A que achavam ser sua esposa teria ‘ficado louca’, vestido uma farda e começado a atirar”, lembrou Kelma Mattos, em documentário de 2013. Se fato ou lenda, talvez nunca saberemos.

Fenômeno mais atribuído à identidade que ao gênero

De acordo com o pesquisador e professor de história do Colégio Aplicação Edson Silva, antes da Guerra do Paraguai, já haviam tensões por território entre Brasil, Paraguai, Uruguai e Argentina. “O Brasil, que sempre teve uma postura imperialista na América Latina, foi invadido pelas tropas do presidente paraguaio Solano López e o imperador Dom Pedro II, num arroubo de empolgação foi o primeiro alistado para defender o território”, explica. O pesquisador atribui a disposição do império para a guerra ao momento de formação da identidade nacional. “O nacionalismo era uma febre. O Brasil pensava que venceria a guerra em 6 meses, demorou seis anos para tal, porque não contava com as epidemias e o desconhecimento do território de combate, pantanoso”, continua. A princípio, os jovens que iam à guerra eram realmente voluntários. À medida que os horrores do confronto eram divulgados, contudo, aumentou o desinteresse no alistamento. “Uma segunda fase da guerra tem início após a Batalha do Curupaiti, em 1866, da qual o Brasil saiu perdedor. Depois tivemos os ‘voluntários da corda’, índios e negros forçados a ir batalhar, pela falta de civis interessados”, diz Edson.

Se haviam homens que vestiam-se de mulher para evitar o recrutamento, mulheres que ofereciam-se para ir à guerra acompanhar os maridos também eram numerosas. “Elas recolhiam balas, limavam as armas , faziam comida e socorriam os homens, às vezes, arrancando pedaços do vestido para fazer ataduras. Existiram outras mulheres que tentaram se alistar, sem sucesso. A guerra representava uma possibilidade de fugir de um ambiente opressor, sem muitas perspectivas”, conclui.

Uma história quase esquecida e controversa

O artista ouricuriense Junior Baladeira dirigiu o curta-metragem Jovita Feitosa, de 12 minutos, feito em parceria com a a produtora Montserrat Filmes, que conta a parte da história da cearense. “Tentamos retratar o sentimento das famílias dos muitos que se foram e não voltaram. Esses homens não eram soldados por formação, nem tinham armamentos ou fardas. É preciso exaltar a bravura de Jovita”, comenta. Ao contrário do que dizem os estudiosos de Ouricuri, a pesquisadora Kelma Mattos afirma que Jovita nunca passou pelo interior de Pernambuco e que não foi à guerra por um noivo. “Através do tio, com quem aprendeu a atirar, ela também ficava sabendo das supostas atrocidades que os paraguaios cometiam com as mulheres brasileiras em território nacional. Muitas dessas histórias eram inventadas, para inflamar as pessoas a ir à guerra”, argumenta.

Marília Parente

Marília Parente

Repórter

Marília é repórter do Diario desde 2016. Estagiou no jornal na editoria Vrum antes de integrar a equipe de dados, no projeto CuriosaMente. É fã das histórias de mulheres empoderadas que fizeram história.