Futebol feminino ganha espaço em ruas e empresas do Recife

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Preconceito que atinge o futebol feminino vai além do campo profissional e se manifesta na falta de incentivo da modalidade. No Recife, algumas mulheres tentam mudar esta realidade

 

Quem acompanha os avanços do futebol feminino no Brasil, terra da melhor jogadora do mundo por cinco vezes consecutivas, pode não saber que as mulheres do país foram proibidas de praticar o esporte durante quase 40 anos. Em 1941, um decreto-lei criou o Conselho Nacional de Desportos, cujas funções incluíam a garantia de que mulheres não jogassem nada “incompatível com as condições de sua natureza”. Passadas quase quatro décadas, em 1979, quando a seleção masculina de futebol já era tricampeã mundial, a lei foi suspensa. É parte da explicação da realidade precária da modalidade no Brasil e do preconceito ainda latente nos campos de grama, de areia e nas quadras. Ainda hoje, há a preocupação do comprometimento da “delicadeza e feminilidade” das mulheres, o que faz da modalidade uma premissa de revolução. No Recife, cidade da goleira olímpica Bárbara, é possível encontrar times de várzea e até mesmo empresas com equipes de mulheres que treinam no horário de almoço para preencher um lugar que lhes foi subtraído por décadas.

Na quadra pública da Rua da Aurora, no bairro Santo Amaro, o Aurora Futebol Clube se reúne às segundas-feiras. A iniciativa foi tomada por um grupo de estudantes que não imaginava a dificuldade de conseguir jogar na quadra de um prédio. “A gente decidiu marcar uma pelada no fim de semana, mas, chegando lá, os caras que estavam jogando não permitiram que a gente usasse a quadra – segundo eles, por regras do condomínio”, lembra a estudante Andrielly Gutierrez. Impedidas de jogar, elas precisaram peregrinar até encontrar o local onde se juntam para praticar.

As jogadoras buscaram um dia no qual a quadra fosse mais vaga, fizeram cotinhas para comprar a bola e redes e, desde janeiro de 2016, resistem no espaço. “No início, os rapazes usavam o argumento da hierarquia. Alguns paravam para olhar e soltavam piadinhas, mas hoje a gente percebe que, de modo geral, somos mais respeitadas”, conclui Andrielly.

“No início, os rapazes usavam o argumento da hierarquia. Alguns paravam para olhar e soltavam piadinhas, mas hoje a gente percebe que, de modo geral, somos mais respeitadas”

Andrielly Gutierrez

Idealizadora da pelada

Com alta rotatividade, as organizadoras calculam que cerca de 100 meninas já tenham passado no local – hoje, em média, há 35 jogadoras recorrentes. “Cheguei um pouco intimidada, por não conhecer ninguém. Não sabia o nível das meninas porque não sei jogar futebol e tive medo de ter algum problema com isso, mas a receptividade foi ótima”, revela a estudante Maria Luiza Barroso, que, há três meses, frequenta a pelada com a namorada Alice. “Acho que a visibilidade é um dos pontos principais para incentivar a prática do futebol entre as mulheres”, completa.

A pelada da hora do almoço também é delas

Na Zona Sul do Recife, as funcionárias de uma companhia de desenvolvimento de softwares querem virar o placar da desigualdade de gênero do futebol. Por iniciativa própria, elas dividem a hora do almoço com treinos há pouco mais de um ano com o objetivo de melhorar o desempenho no campeonato anual do Empresarial MV. Treinam num campo de várzea ao lado do trabalho. Parte das 24 funcionárias do time já teve contato com o futebol em outros momentos da vida, mas a maioria nunca foi incentivada. “Só pude jogar na universidade, treinando com outros meninos. Até hoje, o preconceito de gênero em relação a isso é muito forte”, lamenta Monique Simões, que atua no departamento que cuida dos sistemas da empresa.

Futebol na hora do almoço

As partidas, além de beneficiar a saúde, são levadas a sério para aprimorar o domínio das jogadas e conquistar pontos no campeonato. Até um técnico, também funcionário da empresa, foi selecionado para o time. Andrés Fonseca, consultor internacional, é colombiano e já comandou times universitários no seu país natal, mas lembra que a falta de apoio é um obstáculo para as jogadoras. “Elas não são incentivadas na infância, então, quando você treina mulheres, geralmente precisa começar da base”, diz.

As preparações trabalharam o condicionamento físico e até as relações extracampo. “Tudo é diferente: a qualidade de vida, o clima entre a gente e até mesmo a motivação para vir trabalhar”, lembra Débora Cavalcanti.

O fortalecimento das relações entre jogadoras não acontece por acaso. “A socialização é um dos pontos primordiais do futebol e de esportes em equipe, principalmente na infância e na adolescência, porque você aprende a conviver com as diferenças dos colegas”, afirma o professor do Núcleo de Educação Física e Ciências do Esporte da UFPE, Leonardo Fortes. “Socialização”, “conviver com as diferenças”. Virtudes do futebol, traços da sua essência fulminados num preconceito que ainda está longe de ser vencido.

Tratamento é desigual mesmo na Copa

Para a professora do departamento de Comunicação Social da UFPE, Soraya Barreto, há uma gama de motivos pelos quais o futebol feminino ainda é encarado com olhos preconceituosos: desde pensamentos antiquados afastando mulheres dos esportes de contato até a ideia de que elas deveriam ficar restritas à esfera doméstica, longe da “exposição ao público”. A representação dessas jogadoras na mídia é o objeto de estudo da pesquisadora, mas os preconceitos são encontrados em todas as esferas.

A pesquisa, feita por Soraya em parceria com a também professora da UFPE Ana Veloso e a mestranda Laís Cardoso teve como foco a Copa do Mundo Feminina de 2015. Ao longo de um mês, a cobertura da competição feita por portais pernambucanos foi analisada. As matérias de cinco sites foram divididas em quatro categorias diferentes: resumos breves de jogos; produções que destacavam o desempenho das jogadoras (chegando a entrevistá-las); que inferiorizavam a mulher no futebol e as responsáveis por tratar a jogadora Marta como personagem principal da matéria, às vezes como única representante de toda a seleção.

 

A escassez de notícias sobre os jogos e a superficialidade dessas foi um elemento apontado como desigual em relação à Copa do Mundo masculina. A repetição de termos como “musa” e “bela” para tratar as jogadoras foi um elemento comum nas notícias sobre a copa disputada pelas mulheres, quase nunca encontrado pelas pesquisadoras em notícias relacionadas ao futebol masculino.

°C é a diferença de calor entre grama natural e grama sintética

“Percebe-se não só no entorno midiático que ainda há um preconceito e desleixo muito grandes com as mulheres – basta lembrar da Copa do Mundo de 2015, quando todos os campos eram sintéticos, com uma grama que machuca”, critica. Disputada no verão canadense, a Copa ainda expôs as jogadoras a temperaturas de até 50 graus em campo, uma vez que a grama não desempenha função de absorver naturalmente o calor, como nos campos profissionais de jogos masculinos.

Anatomia do futebol

Seleção feminina passa por mudanças após Olimpíada

Ana Paula Santos

 

Após a disputa do Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, muito se falou sobre o fim do projeto da seleção feminina permanente, do qual a goleira pernambucana Bárbara Micheline fazia parte. O coordenador de futebol feminino da CBF, Marco Aurélio Cunha, logo explicou que o projeto não seria extinto, e sim modificado. Se em 2015 o objetivo era manter em atividades as atletas que estariam nos planos do técnico Vadão para disputa da Olimpíada, ao final dos Jogos, Marco Aurélio esclareceu que o projeto estará mais voltado para as seleções de base, sobretudo às sub-17 e sub-20 que disputarão Mundiais.

“Infelizmente, perdi chances de acertar com clubes de fora do Brasil achando que ainda seria mantida na seleção permanente. No momento, estou sem clube”

Bárbara

Goleira

E foi justamente isso o que ocorreu ao final da Olimpíada. De acordo com Bárbara, as atletas da equipe principal não mais fazem parte da seleção permanente. “Estou um pouco por fora desse assunto, mas segundo as informações que chegaram, a gente está fora. Não estamos nem mais recebendo salário. Infelizmente, perdi chances de acertar com clubes de fora do Brasil achando que ainda seria mantida na seleção permanente. No momento, estou sem clube”, declarou a goleira.

E pensar que a seleção principal muito contribuiu para a manutenção do projeto, que se deu muito pelo sucesso da seleção feminina adulta – 4ª colocada na Olimpíada -, durante os Jogos do Rio. O sucesso de público diluiu qualquer movimento contrário ao projeto, que foi lançado pelo presidente da CBF, Marco Polo del Nero, em janeiro de 2015.

Além de Bárbara, outras quatros atletas que faziam parte da seleção permanente foram convocadas por Vadão para os Jogos do Rio: Formiga, Aline, Bruna Benites e Aline.

Incentivo por obrigação

 

A manutenção de times de futebol feminino pelos clubes do Brasil é algo raro. Houve o Santos, há alguns anos, que investiu na modalidade, mas o projeto enfraqueceu. Em Pernambuco, o Vitória foi um projeto isolado. Nunca os clubes, de fato, tiveram real interesse. A situação vai mudar. Não por vontade própria, mas por obrigação.

Os clubes que não possuem equipe feminina – caso do Sport Club do Recife – vão repensar a ausência das mulheres se quiserem disputar a Copa Sul-Americana ou Libertadores. A Conmebol divulgou estatuto em que pede aos clubes adequação às regras de licenciamento. E nesse pacote de novas regras está a obrigação de se ter um time feminino em plena atividade. A entidade deu um prazo de dois anos para os clubes se adaptarem. Ou seja, a medida começa a valer a partir de 2019.

Mas não basta apenas dizer que tem uma equipe feminina. Segundo o documento, o clube terá de oferecer equipamento e infraestrutura (campo de jogo para a disputa da competição e treinos) para a prática da modalidade e desenvolvimento da mesma. Caso o clube opte em associar-se a uma outra agremiação esportiva que possua a categoria também será válido. Os clubes ficam obrigados a participar de competições nacionais e regionais.

Náutico

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O futebol feminino retornou ao clube alvirrubro em 2014. A equipe alvirrubra, que já foi bicampeã estadual (2005/2006), sofreu desmonte e voltou com um grupo de 19 jogadoras. O retorno da modalidade ocorreu graças à ativação dos esportes amadores em Rosa e Silva. Além do Campeonato Pernambucano, onde foi vice em 2015, o time passou a disputar a Copa do Brasil. Elas treinam e jogam nos Aflitos, em estado de conservação inadequado desde que o time masculino passou a atuar na Arena, em 2013.

Santa Cruz

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O departamento de futebol feminino coral passou nove anos inativo. O Santa Cruz reativou a modalidade este ano. E a volta se deu muito por causa de Nira, que comandou o futebol do Sport por longos anos. É tanto que o elenco tinha muitas atletas oriundas do Rubro-negro. Em sua primeira competição, chegou à semifinal do Estadual. O objetivo é participar do Campeonato Brasileiro a partir de 2017. Nira terminou saindo do Tricolor, mas o futebol feminino permaneceu.

Sport

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São cinco títulos estaduais e um vice-campeonato da Copa do Brasil em 2008. O clube foi o responsável pela formação da goleira Bárbara, que defendeu o Brasil nos últimos Jogos Olímpicos. As conquistas e o prestígio de Bárbara não foram suficientes para manter o time em atividade. O Rubro-negro desativou o futebol feminino em março de 2015 – apesar da queixa dos torcedores. Não havia previsão de volta, mas a decisão da Conmebol tende a forçar a reativação.

A Conmebol mantém uma Libertadores feminina desde 2009. Somente em 2012, um clube brasileiro não foi campeão, em 2012, com o Colo-Colo. O São José, com pouca presença nos principais torneios masculinos, foi campeão três vezes, o Santos duas, e a Ferroviária é a atual campeã. A Libertadores é o único torneio feminino de clubes mantido pela entidade sul-americana, que conta ainda com três competições para seleções e uma para futsal.

Lorena Barros

Lorena Barros

Repórter

Ana Paula Santos

Ana Paula Santos

Repórter

Karina Morais

Karina Morais

Fotógrafa

Ricardo Fernandes

Ricardo Fernandes

Fotógrafo