Edmilson tinha o nome do meu pai e não me pediu um real…

Arte de Shelley Bain sobre os pés de um sem-teto

Um Recife frio, numa noite qualquer, uma abordagem comum e um pedido que revirou o estômago. Ele não queria muito, mas já era tanto…
Por Ed Wanderley

 

Lua nova de uma quarta-feira, quando a escuridão tende a afogar olhares, saio do trabalho pouco depois das 23h – aquele horário em que erguemos as pontes elevadiças de nossos castelos motorizados para baixar o volume do mundo. Sigo no automático, como se as cores do semáforo fossem as únicas relevantes, na dúvida se chegaria em casa e compensaria o jantar perdido ou investiria nos minutos extras de sono.

Sinal vermelho.

E não há maior resgate à realidade que um sinal vermelho ao início de madrugada no Recife – em especial um que cruza a Avenida Agamenon Magalhães. Olhos habituados escaneiam todos os retrovisores. Do lado direito, se aproxima uma figura masculina, quase baixa, como que arrastando o próprio corpo ao interromper uma tentativa de descanso. Vem em direção ao carro. Me olha nos olhos e, devagar, se dirige ao vidro da porta do passageiro.

O checklist de classe média-inclusiva-desde-que-cada-um-em-seu-quadrado é revisto rapidamente. Portas travadas, primeira marcha engatada, verificação de armamento e sinais de embriaguez, retrovisores a postos para ver se há movimento de terceiros… Nada. Sua fome e o frio lhe demandavam mais resistência que urgência a estilhaçar-me o vidro. O homem de seus sessenta e tantos anos, pés descalços, não estende a mão como quem suplica moedas. Faz sinal com os dedos para que desça o vidro e não mais se move.

Desço.

“Olha, você passa sempre por aqui, meu filho. Por favor, veja se tem algumas roupas que não usa mais e lembre de mim e da minha esposa. Lençol também, que a gente passa frio. Se não for pedir demais, uma ‘fuba’ ou qualquer coisa, viu? Deus lhe abençoe” e me dá as costas. “O senhor está sempre por aqui?”, pergunto. “Moro nessa calçada. Pode trazer que vou estar aqui”, responde prontamente, mas sem traço algum de impaciência. “Como é seu nome, senhor?”. “Edmilson. Pode me chamar”.

Edmilson tinha o nome de meu pai e não me pediu um real. Nem me tirou coisa alguma além da presunção dos preconceitos da falsa segurança. Naquela noite, nem jantei, nem dormi. Na manhã seguinte, observei o guarda-roupas lotado, mais alto que eu – cercado de tantas roupas que nem servia mais a circunferência de minhas experiências. Separei a colcha de tigres, presente de minha mãe, que mal usava por achar bonita demais para alguém dormir por cima. Peguei também roupas, ainda com etiqueta, compradas no maior estilo “vestuário-incentivo”, que servisse de novidade assim que perdesse peso. Calça e camisa polo, tal qual vestiria meu pai. Junto a outras tantas coisas, trouxa feita, joguei no banco de trás do carro.

Nas noites seguintes, não vi Edmilson.

 

Grafite de Blek Le Rat de série sobre desabrigados

Na moda do “homo trabalhadoris”, perdi a urgência do pedido. Assim como já o havia feito com aniversários e despedidas, com afagos, “desculpa”s e “eu te amo”s. Adaptado a levar socos no estômago e, em seguida, focar na máxima de que o mundo não te espera levantar para continuar girando.

Numa noite de lua qualquer, de um dia qualquer, daquelas em que não se tem tempo nem para verificar as horas, vejo o semáforo da Agamenon enrubescer e, a poucos metros dele, um casal entre pedaços de pano e papelões. “Edmilson!”, grito pela janela. Quase num sobressalto em velocidade condizente à sua idade, o homem – mesma roupa e boné – se aproxima, desconfiado. “O que o senhor pediu”, disse. Dentes revelados, me dispara: “ô, rapaz, não precisava!”. Silêncio. Ele acena um “obrigado, meu filho”. Sigo calado.

“Ô, rapaz, não precisava”.

Edmilson tinha o nome do meu pai, não me pediu um real e me agradeceu tal qual meu velho, a cada presente recebido. De um vidro de doce em compota a passagens aéreas. Não precisava. Fiz nada. Custou nada. E aquele senhor me sorriu com os olhos. E me restou o amargo de quantas vezes passei por aquele semáforo antes. Quantas pessoas “não precisavam” e a urgência de meu conforto optou por ignorar todas as urgências dos demais?

Se passaram algumas semanas até ver Edmilson novamente. Estava abraçado com a esposa, numa calçada de farmácia, às margens de um semáforo da Agamenon, ambos enrolados numa manta de tigre cheia de sentimentos. Percebi que fiz absolutamente nada por ele. Não lhe consegui dormida ou emprego e se conseguisse, certamente ouviria um “não precisava” como o que ecoou na mente. A vergonha do nada fazer é tão maior que a do precisar, Edmilson. Você não precisava dizer, eu que precisava ouvir…

Ed Wanderley

Ed Wanderley

Repórter Multimídia

Ed é repórter do Diario desde 2010, onde se dedica ao jornalismo de dados, multiplataforma e com recorte de Direitos Humanos. Nas horas vagas, também se dedica à literatura e, até agora, tem dois livros publicados.