Cidades sertanejas atingidas por granizo sofrem com pior seca em 30 anos

“Nesse ano, choveu ainda menos que no ano passado. A primeira chuva que teve agora foi a de sexta (25 dezembro), quando caiu um bocado de granizo, por 10 a 20 minutos. Para quem nunca viu, dá medo. Começou com um vento, que derrubou até a parede da casa ao lado”. O agricultor Paulo Herculano, 36, conhece cada hectare do terreno onde cresceu e mora até hoje, na zona rural de Sertânia, a 316 km do Recife. A primeira chuva robusta do ano seria inesperada até para os mais devotos de São Pedro – veio acompanhada de granizo. A força da tempestade derrubou parte da construção de Paulo, mas os bombeiros não registraram nenhuma vítima.

Em Pernambuco, além de Sertânia, outra cidade sertaneja foi atingida pela precipitação de granizo, no dia 22 de dezembro: Flores. A capital do Piauí, Teresina, e municípios do Ceará, Paraíba e Alagoas também registraram o fenômeno. Desde 2011, quando a Agência Pernambucana de Águas e Clima (Apac) foi criada, o episódio havia sido contabilizado pelo menos cinco vezes em Pernambuco. Agora, o gelo e o calor parecem estar lado a lado. Sertânia e Flores, assim como outros 54 municípios do Sertão pernambucano, estão desde outubro em estado de emergência pela seca e pela condição anormal das reservas de água. O decreto do governador do estado, Paulo Câmara, vale por seis meses e impede que programas e benefícios sociais sejam cortados.

Vinícius de Brito/Cortesia

Mas a chuva de granizo é mesmo um fenômeno raro na região. “Não acontece todos os anos e pode voltar a ocorrer em outras regiões”, explica o professor de Geografia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Ranyere Nóbrega. “Mas no Sertão existe um sistema atmosférico chamado de vórtice ciclônico de altos níveis, que produz alguns tipos de nuvem com característica normalmente de chuva forte, raios, trovão e pode acompanhar granizo”.

Estudioso do clima semiárido e também professor de Geografia da UFPE, Lucivânio Jatobá diz que o granizo pode cair tanto em lugares úmidos quanto no semiárido. “O que vai determinar a existência de granizo é a formação de um tipo especial de nuvem: a cumulonimbus, que se desenvolve verticalmente até 12 quilômetros. Existe uma subida e descida do ar dentro da nuvem, o que gera um movimento das gotículas de água a níveis altos, resfriando essa água”. O líquido resfriado forma uma espécie de bola congelada, que deixa a nuvem em direção a terra.

De acordo com Jatobá, o que parece inédito é o fato de ter chovido esta época do ano em pleno El Niño, efeito que atinge o Nordeste do país e geralmente traz como consequência a estiagem. “Teoricamente, quando nós temos uma época de El Niño, como agora, um dos maiores desde os anos 1980, há uma inibição de nuvens cumulonimbus e o que acontece agora é o contrário”, compara.

A resposta, então, para o temporal tem a ver com a formação de um fenômeno meteorológico no Nordeste e Sudeste do país, recentemente. “Aconteceu o chamado vórtice ciclônico de alto nível, que é um centro atmosférico de baixa pressão que gira no sentido horário. A periferia desse vórtice tem uma quantidade imensa de nuvens e o centro fica seco”. Ao redor do que o geógrafo Lucivânio Jatobá chama de periferia, ficam as nuvens cumulonimbus.

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Gelo foi um primeiro ato. Estado pode receber ainda chuvas intensas

“Tenho mais de 30 anos de meteorologia, mas nunca tinha visto um vórtice como o que se formou no dia 26 de dezembro. Ele está gigantesco em cima do oceano, indo do Ceará a Pernambuco e, pela quantidade, parece um ciclone desses que atingem a América Central. Se essa situação de hoje implicar um deslocamento das nuvens, nós vamos ter pesados aguaceiros”. No domingo (27), o vórtice continuou firme um pouco mais próximo ao oceano Atlântico.

Lucivânio afirma que, nos idos de 2004, Pernambuco registrou cheias com um cenário climático similar, mas só que isso aconteceu no início de janeiro, não em dezembro. Porém, a seca no Sertão não deve ser associada a fenômenos globais como as mudanças climáticas, segundo o geógrafo Ranyere Nóbrega. “Mas se a seca continuar com mais frequência pode vir a se tornar algo global. A seca tem relação ao clima do Sertão, porque o período de chuvas lá não é como no Recife”. Nóbrega diz que a estiagem é mais comum em cidades como Sertânia e Flores, em comparação com o regime de chuvas no Recife, que pode ter vários dias de pancada contínua no inverno.

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Na cidade de Sertânia para um almoço de Natal com a família, Paloma Bezerra, 20, teve surpresa maior que muitos dos moradores, já que deixou o frio de Erechim (RS) para visitar os pais, em pleno Sertão. “Desde que moro lá em Erechim, há dois anos, teve uma chuva de granizo em outubro e foi bem parecida com a daqui. Eu lembro que aqui em Sertânia teve uma chuva de granizo mais ou menos em 2000 ou 2001. Só que essa foi bem mais forte e a reação de todo mundo foi de espanto total”, conta. “Quem diria que nesses dias tão quentes, como foi neste mês de dezembro, surgiria uma chuva assim? Se eu pudesse, traria a chuva do Rio Grande do Sul no bolso para molhar toda a minha terrinha”, diz.

Reféns do clima

Vinícius de Brito/Cortesia

Longe da academia, poucas vezes o agricultor Paulo Herculano sentiu o cheiro de terra molhada de chuva no Sítio Pinhões, em Sertânia, onde mora. Não por menos, a seca do Nordeste já é considerada uma das piores em três décadas. “Eu não crio animais nem planto desde 2013 porque a água aqui é difícil, é comprada. Para beber, fazer comida e lavar roupa, a água é comprada. Se falta água até para a gente, não dá para manter um animal”, conta. Para viver, recebe um caminhão d’água do Instituto Agronômico de Pernambuco (IPA), órgão ligado ao governo estadual, mas são cerca de oito mil litros, divididos com a família de oito pessoas, por até três meses.

Em outro sítio, Carmelita Herculano, 38, conta que o sustento próprio dependia da terra, mas a seca que já dura mais de três anos mudou o dia a dia. Agora, trabalha como caseira em uma fazenda e sustenta os dois filhos com o dinheiro da Bolsa Família (o valor varia de acordo com a quantidade de herdeiros e idade da criança) e da pensão que recebe do pai dos pequenos. “Quando caiu o granizo, fiquei com medo, porque a pessoa vê e não tem outra reação. Mas já tinha visto quando era criança, com oito, nove anos”.

“O que me parece é que não se deve ter a ilusão de que as chuvas de agora vão trazer um inverno excelente para o semiárido”, avalia o professor Lucivânio. “O evento dura dias e desaparece. Pode ser que as chuvas causem uma ilusão e tenhamos uma seca verde. Significa dizer que, além de Pernambuco, a seca pode continuar de fevereiro a abril no Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e parte de Alagoas”.

O que se forma agora no céu vai definir os planos de Carmelita, do irmão Paulo e de milhares de sertanejos. “Sem água não tem como fazer pastagem, nada. Esse ano nós ainda não plantamos. Vai fazer cinco anos que não tem um inverno como é de ser”, diz o camponês.

Vinícius de Brito

Vinícius de Brito

Repórter e Fotógrafo colaborador

Vinícius é estudante da Universidade Federal de Pernambuco e já passou pela redação do Diario. É uma das testemunhas do granizo em Sertânia e admirador das grandes histórias que o interior guarda.