Cachorros e heróis: o cotidiano dos cães de serviço pernambucanos

Labradores, pastores belgas e golden retrievers passam por anos de treinamento e aprendem a ter sensibilidade e instinto de salvador para fazer a diferença nas ruas

 

Os cachorros, geralmente sinônimos de lealdade e brincadeira, ganham uma característica ainda mais significativa no Corpo de Bombeiros, na Polícia Federal e no Clube Kennel de Pernambuco: ajudam a salvar vidas, encontrar substâncias ilegais e dão um novo destino ao trabalho de homens e mulheres na Região Metropolitana do Recife.

No canil do grupo de salvamento com cães, em Abreu e Lima, moram sete animais em idade adulta e quatro filhotes. Divididos em espaçosos dormitórios, têm uma rotina preparada meticulosamente para aguçar instintos de caça. Geralmente, são requisitados para trabalho de campo em período de chuvas, ajudando no resgate de vítimas de deslizamentos de barreira. No resto do ano, trabalham com busca de pessoas perdidas, além de visitarem abrigos e hospitais, onde interagem com as pessoas em situações muito menos estressantes.

Para se tornarem aptos ao dever, precisam passar por treinamentos rigorosos. Nascem com uma missão e já começam a ser estimulados na primeira semana de vida. “Com quatro dias, quando não conseguem nem enxergar nem ouvir direito, distanciamos eles das mães e colocamos alguns obstáculos para chegarem até ela”, comenta o Capitão Antônio Barbalho, coordenador do grupo de salvamento com cães do Corpo de Bombeiros. Até completarem um ano, os filhotes estão em constante avaliação e passando por provações diárias para determinar se têm ou não a habilidade necessária para trabalhar com resgates. 

Igo Bione/Especial DP

Tudo começa com o tamanho: o cão não pode ser muito pequeno, ou não se deslocará com eficiência nas ocorrências, mas também não pode ser muito grande, ou não terá capacidade de entrar em alguns espaços de busca.

Além das avaliações físicas, o temperamento deles também é analisado. O foco nas atividades “de caça” (simuladas pelos bombeiros com flanelas, bolas e panos) e companheirismo com os cuidadores são alguns dos requisitos necessários para determinar se ele vai ser um bom cão de resgate ou não. “Na última ninhada nasceram 10, agora estamos com quatro”, conta o oficial. Alguns cãezinhos morrem por problemas de saúde e outros são “desclassificados”, por não terem os requisitos para o árduo trabalho e são doados para cuidadores voluntários. A corporação garante que a lista de espera é longa.

Os mais experientes do canil de Abreu e Lima, Smart, Ather, Mundo e Trovão não nasceram no local – tinham entre seis meses e dois anos em 2014, quando o espaço foi oficialmente montado. “Foi um pouco mais complicado prepará-los, já que não chegaram filhotes”, relembra Barbalho. Hoje, a rotina é uma grande brincadeira para os bichos. Em treinamento, os pequenos, com apenas três meses de idade, passam por exercícios diários. Uma trilha de obstáculos com algumas cortinas, peças de computador, capacetes e até uma bacia d’água tornam a rotina de treinamentos divertida para os filhotes. Condicionados, eles já sabem a hora certa de pular e desviar.

Toda a preparação simulada é feita para que tenham as melhores condições de realizar os trabalhos reais. “Eles são soldados, bombeiros. Vão para lama, água suja, passam muito tempo sob o sol, em mata fechada. São muitas situações que os predispõem a ficar mais expostos a doenças e acidentes do que cães dentro de nossa casa”, explica a veterinária dos 14 cães, Adriana Vieira de Melo. Garantir a saúde deles, é um papel que ela desempenha com a sensação de dever cumprido. “Eu sei que de alguma maneira, mesmo indiretamente, estou ajudando alguém na outra ponta. Cuidando bem deles para que tenham saúde plena, vigor, força e sejam saudáveis eles vão estar sempre em condição de salvar as pessoas no momento em que precisarem”, comenta.

Igo Bione/Especial DP

Cuidar desses animais pode ser considerado o “trabalho dos sonhos” de alguns, mas exige muita responsabilidade. “Em uma situação de resgate, quando chegamos no campo de busca, cabe ao cão e ao condutor dizer se restam vítimas ou não naquela área. A pressão vem toda nas costas dos dois”, explica o Capitão. A capacidade olfativa dos animais, 40% maior que a dos humanos, é voltada para a busca de partículas de decomposição celular, expelidas pelo corpo constantemente.

Intercâmbio genético

Para evitar o excesso de cruzamentos dentro da mesma família de cães, o Corpo de Bombeiros tem a prática realizar trocas entre comandos gerais de diferentes estados. Dessa forma, há cães de Pernambuco em Santa Catarina e Rio de Janeiro, assim como animais desses estados em solo pernambucano.

A aposentadoria dos animais varia de acordo com as condições físicas de cada um, mas estima-se que eles tenham capacidade de trabalhar até os nove anos. Quando os sete filhotes preparados estiverem prontos para agir, será a hora dos dois mais velhos descansarem. Ao deixar o corpo de bombeiros, eles ficam sob cuidado dos condutores até o fim da vida. “A gente se apega muito a eles”, afirma cabo Marconi Edson, sempre acompanhado pelo labrador Mundo nas missões. Para os funcionários, o ato representa a certeza de que os animais serão bem cuidados; para os cães, nada mais justo do que ter um lar afetuoso após anos de serviço prestado.

Era uma manhã de domingo chuvosa, em 18 de agosto de 2013, quando um deslizamento no bairro do Jordão, Zona Sul do Recife, deixou duas pessoas mortas. Em meio à lama e aos rastros da destruição, os bombeiros conseguiram encontrar alguns membros da família com vida, mas só com a ajuda de cães de resgate conseguiram encontrar o corpo de Julia Aparecida Ramos, adolescente de 15 anos. “Como a vítima estava morta, Smart e Atker não latiram, só notamos uma simples mudança de comportamento neles. Um deles começou a morder o sofá onde ela estava”, lembra o capitão Barbalho.

A ação dos animais, realizada após buscas do efetivo, quando a menina estava há cinco horas soterrada, durou apenas 20 minutos. Felizmente, a utilização de cães em acidentes do tipo não é necessária com frequência. Os trabalhos de busca também são requisitados e quase sempre terminam com final feliz. “Recentemente, realizamos duas buscas de crianças perdidas. Não conseguimos encontrá-las em lugar nenhum e logo descobriram que elas estavam em segurança, na casa de parentes. Casos assim são comuns”, explica o capitão.

COMO FUNCIONA O TREINAMENTO DOS CÃES DO CORPO DE BOMBEIROS?

Entre três dias e duas semanas de vida

Os olhos e ouvidos do animal ainda estão tapados porque ele é recém-nascido. Nesta fase, a ninhada fica distante da mãe por alguns metros e precisa usar o olfato para encontrá-la e poder mamar. Com o passar dos dias, outros obstáculos são colocados nesse caminho. A finalidade deste treinamento é melhorar os instintos de caça do animal.

Entre três semanas e três meses e meio

Os animais passam a ser expostos a cheiros fortes, como erva doce, xilol e formol (compostos químicos), para acostumar o olfato. Durante esse período, também escutam sons altos, como sirenes e motores e fazem exercícios nos mais variados tipos de terrenos, como água, e barro. Tudo é feito exclusivamente com um bombeiro específico para que os cães acostumem-se com todo tipo de ambiente aos quais serão expostos em operações.

Entre três meses e meio a quatro meses e meio

Neste período, o vínculo do animal com o bombeiro é utilizado para ele aumentar o instinto de resgate de vítimas em uma fase chamada autofiguração. O condutor esconde-se em locais improváveis e o cão precisa procurá-lo, como fará em busca de possíveis vítimas durante resgates.

Entre quatro meses e meio e 11 meses

Adaptado à busca ao condutor, o animal passa por um processo de figuração com outras pessoas. Ele é levado aos mais diversos tipos de campos possíveis, assim como nas primeiras semanas de vida, e precisa achar “vítimas” em uma situação de simulação. Mulheres, crianças, idosos e homens diferentes são escondidos e precisam ser encontrados. Depois disso, os outros meses são baseados na apresentação de novos espaços ao animal.

A partir de um ano

O primeiro ano de treinamento é suficiente para deixar os animais “prontos”. A partir disto, ele passa por algumas provocações e distrações durante os exercícios de funções, para ter o autocontrole testado. Essa fase é considerada importante para a própria saúde do animal, já que ele precisa ser controlado em casos de risco para a própria vida.

Heroísmo também na saúde

Caes Doutores/Facebook/Reprodução

De pugs e a rottweilers, cães de todas as raças e tamanhos podem ser utilizados na promoção  da saúde. Os animais participam do tratamento de pacientes em hospitais do estado de forma voluntária, com o projeto Cães Doutores. Todos são adestrados por semanas antes da visita e, no dia anterior, são tosados e têm unhas cortadas para que não ofereçam riscos aos pacientes em possíveis, porém raros, acidentes.

Na ala psiquiátrica do Hospital das Clínicas, da Universidade Federal de Pernambuco, o projeto se apresenta uma vez por mês desde novembro de 2015. Uma das principais funções dos animais no local é ajudar na terapia assistida. “O cão funciona como um instrumento para chegarmos até o paciente em surto psicótico. Ele interage primeiro com o cachorro e depois tem mais facilidade para interagir conosco”, conta a terapeuta ocupacional Naiana Santos.

Um dos motivos pelo qual os cães são utilizados para este tipo de terapia é a capacidade de transmitirem calma. “Quem tem dificuldade de interação não consegue falar direito com pessoas, mas os animais são elementos naturais. Eles se mexem, mas não são tão invasivos quanto os seres humanos”, aponta Naiana. Além de trabalhos psiquiátricos, os “doutores” de quatro patas ajudam também na cinoterapia, processo pelo qual pacientes com dificuldades motoras trabalham sensações e articulações utilizando os bichos. “Quando queremos trabalhar a amplitude de movimento da mão de uma criança com paralisia cerebral fazemos ela massagear o cachorro”, explica a terapeuta.

Quem tem interesse em participar do projeto Cães Doutores pode entrar em contato através da página do Facebook – goo.gl/KbULUh

A bengala com olhos para os cegos

No caso do Clube Kennel, os cachorros são treinados para servirem como cães-guia para cegos. As raças golden retriever e labrador retriever são as mais recomendadas para esse tipo de trabalho por conta do temperamento; é necessário que os cachorros sejam empáticos e tenham uma certa aptidão para esse tipo de interação. O público geral também precisa ter, historicamente, uma boa relação com a raça, pois o cachorro frequenta ambientes menores e utiliza transporte público, daí a necessidade de ser uma raça mais “querida”. Tanto na aparência, quanto no temperamento, labradores e golden retrievers transmitem docilidade e, por isso, são raças mais indicadas ao posto.

Eles passam por três fases, que duram cerca de dois anos e meio no total, para se tornarem aptos ao trabalho com o cego, desde a fase de socialização até o aprendizado do roteiro de rotina do futuro tutor. De 10 cães treinados, apenas quatro passam nos testes finais para serem cão-guia. Os seis animais reprovados são doados para outras atividades, como cão de companhia para idosos ou para crianças com síndrome de Down.

Essa “reprovação” ocorre porque os animais passam por uma bateria de treinamentos muito rígida, pois se tornam os “olhos” do tutor, então muitos não têm as características necessárias. “Tivemos uma cadela que atendeu muito bem aos nossos treinamentos, mas na hora de ir para rua, ela latia todas as vezes que via um gato. Não importava o que a gente fizesse, ela sempre latia, então acabou sendo reprovada e adotada por uma família”, contou o coordenador do clube Luís Alexandre. Temperamento e índole também são características que pesam muito no resultado do animal; os cachorros reagem de forma diferente a estímulos relacionados a dor e barulho, por isso nem todos são aprovados.

Thalyta Tavares/Especial DP

Cães guia em Pernambuco

Cães guias do Clube Kennel

O trabalho de um cão-guia é muito delicado e exige muita sensibilidade, de acordo com o coordenador. O cachorro é capaz de identificar até a altura de uma porta e saber se o tutor consegue ou não passar. “Se a entrada de um local tiver 1,50 m e o tutor tiver 1,60 m de altura, o cão vai parar. Não me pergunte como é que ele faz esse cálculo, mas ele faz. É um cão que praticamente raciocina”.

Os cachorros que trabalham como guia se aposentam em oito anos e, durante todo esse processo, precisam ouvir os comandos de treino diariamente, senão correm o risco de perder a sensibilidade e virar um cão de estimação, além de desperdiçar o investimento –  cerca de R$ 500 mensais com consultas ao veterinário, ração, vitaminas, etc.

As três fases do “nascimento” de um cão-guia

SOCIALIZAÇÃO

Uma família acolhe o animal por cerca de 10 meses para que ele aprenda a socializar

TREINAMENTO

Cachorro passa a conviver com os obstáculos que encontraria na rua, como meio-fio, orelhão, batente, rampas, ônibus, moto, outros animais, etc

FORMAÇÃO DA DUPLA

Cão já treinado passa a ser treinado junto com o cego para adaptação de velocidade do andar, controle de comandos de voz e sinais corporais

Mesmo após a formação da dupla, ainda é necessário fazer aferição da capacidade de atendimento dos comandos do cão. “As pessoas deixam que o cão de serviço seja tratado como um cachorro de estimação e se isso acontecer, ele não vai conseguir trabalhar. Já aconteceu de o cão ter que passar um mês aqui para fazer uma sintonia fina novamente. É por isso que eles usam a placa de ‘não me distraia’”.

Enquanto eles estão com o arreio, os cães-guia não devem ser distraídos de forma alguma nem receber nenhum alimento. O arreio é o ponto de “hora de trabalho” do cão e não deve ser perturbado. Porém, ao remover o arreio, o cachorro pode receber tanto agrado quanto um cachorro de estimação.

O primeiro bio cão de Pernambuco

A cadela Eva é parte de um projeto piloto em parceria com a UFPE e está sendo treinada para farejar carcaça de morcegos para um estudo sobre morcegos que colidem com torres eólicas no Nordeste.

O estudo está buscando entender as rotas dos morcegos para evitar as colisões animais com as torres.

Obrigação séria, trabalho com diversão

Para trabalhar como cão farejador, o treinamento é tão intenso quanto o dos cães-guia, mas o trabalho é interpretado como uma brincadeira pelos animais. Para os cães treinados pela Polícia Rodoviária Federal, drogas e armas de fogo são apenas brinquedos. Eles não entram em contato com com esses artefatos em momento nenhum do treinamento, pois são guiados a encontrarem brinquedos com cheiro de drogas.

Cada animal é designado a um policial – um policial pode ter mais de um cachorro, mas nunca o contrário, pois há uma necessidade de o cachorro só atender ao comando de um tutor. Na PRF, as raças mais utilizadas são pastor alemão de trabalho, labrador americano e pastor belga malinois.

Thalyta Tavares/Especial DP

Os cachorros chegam com 1 ano de idade e devem ter as características físicas necessárias para o trabalho; os animais não podem ter problemas dentários nem de coluna. “Fisicamente, há uma peneira grande no nosso processo de seleção. E também há a questão psicológica do animal, ele precisa ser alegre e vivaz e tenaz, não pode desistir do que quer”, explicou o instrutor Duarte Pires.

A sede por encontrar a droga ou a arma vem da vontade de recuperar um suposto brinquedo. A primeira fase do treinamento envolve uma caça visual, onde o animal tem que encontrar o brinquedo visualmente, e depois é inserido o faro, associado ao odor da droga.

Por causa da exclusividade da relação cachorro-policial, a rotina de treinamento físico dos cães acaba se tornando uma maneira de aumentar a afinidade do animal com o guia, além de melhorar as condições físicas e de comando. O treinamento técnico envolve a busca direta de substâncias escondidas, no qual os cães buscam as recompensas (brinquedos). Na área de treinamento técnico de animais há cerca de 38 gatos, que servem como um “obstáculo” de distração na hora do treinamento. O cão treinado ideal para o serviço deve ignorar completamente os gatos e buscar as drogas sem hesitar.

No final de semana, há a “matilha”, quando todos os cachorros são soltos para treinamento, mas que envolve mais uma questão de socialização do que realmente um esforço físico. “Soltamos todos os cachorros e não há aquela relação de dar comandos, é mais para a diversão e socialização dos cachorros. Os mais velhos, para não se sentirem isolados, também nos acompanham e recebem uma atenção diferenciada. Jogamos os brinquedos mais próximo e sabemos que eles andam mais devagar, mas tudo isso é para tirar o estresse do cão”.

Os cães da PRF atuam em nível nacional, por questões de necessidade de reforço ou informações privilegiadas sobre determinada região, mas muito raramente adoecem. Há o acompanhamento semanal de um veterinário, mas graças a alimentação reforçada, estímulo mental e treino físico constantes, os animais vivem com uma qualidade de vida exemplar.

Paula Paixão

Paula Paixão

Repórter

Paula é estagiária do Diario de Pernambuco desde janeiro de 2017

Lorena Barros

Lorena Barros

Repórter

Lorena é jornalista formada pela Universidade Federal de Pernambuco e faz parte do CuriosaMente desde maio de 2016

Thalyta Tavares

Thalyta Tavares

Fotógrafa

Igo Bione

Igo Bione

Fotógrafo